Shade, The Changing Man, de Steve Ditko: Dr. Ficção Científica

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The Steve Ditko Omnibus v. 1, starring Shade, The Changing Man
Steve Ditko, Michael Fleisher
[DC Comics, 2011]
O que será que Steve Ditko achou do sucesso do filme do Dr. Estranho?
Ainda que não exista nenhuma entrevista dele sobre o assunto [aliás, sobre qualquer assunto], e que seja possível que um cheque com a quantidade adequada de dígitos do lado de lá da vírgula influencie a opinião de qualquer um, o NEW FRONTIERSNERD tem um palpite: ele achou uma porcaria. É a conclusão à qual se chega lendo Shade, The Changing Man.
Uma das séries lançadas durante a DC Explosion, em 1977, Shade é um dos últimos gibis mainstream de super-herói mainstream de Ditko. Para que você tenha a perspectiva: Mr. A foi criado no final dos anos 60. Ainda que os diálogos sejam escritos por Michael Fleisher [que, criador de Jonah Hex, estava longe de ser um qualquer na DC], o próprio já reconheceu que trabalhava na série no modo piloto automático [o que, de qualquer forma, fica claro lendo os diálogos redundantes e sem graça]. É, portanto, Ditko em estado quase puro.
A série segue as aventuras de Rac Shade, agente de segurança da futurista Meta-Zone, uma dimensão separada da Terra [a Earth-Zone] por uma área intermediária [a Zero-Zone]. Shade foi preso na Meta-Zone por força de um complô: foi injustamente condenado por traição, responsabilizado por um atentado que causou a invalidez de seus sogros [respeitados cidadões metanos].
Ao conseguir escapar fortuitamente para a Earth-Zone, Shade recorre à M-Vest para investigar o complô que levou à sua condenação. A M-Vest é uma arma secreta metana: uma espécie de maiô que faz com que Shade possa levitar, lhe deixa quase invulnerável e, mais importante, altera a percepção que as pessoas têm de sua aparência física. A sua forma passa a projetar os medos das pessoas, tornando-o monstruoso:
A conexão entre Shade e o Dr. Estranho pode não ser óbvia, mas é direta: Shade é o Dr. Estranho em versão ficção científica. 
VIU? TEM ATÉ OS PREDIOZINHOS TORTOS
Tem algumas semelhanças óbvias. O cerne do poder dos dois está em influenciar as mentes mais frágeis. Como nas histórias do Dr. Estranho, Shade é um fugitivo que transita entre diferentes dimensões. A Zero-Zone, zona intermediária entre a Terra e a Meta-Zone, é a Dark Dimension de Shade:
Compare os vilões de Shade com os do Dr. Estranho:

Shade, no entanto, substitui o ocultismo por… OVNIs. Não é uma troca fortuita, nem se trata de uma incompatibilidade: OVNI é a evolução do ocultismo na cultura barata. É algo especialmente verdadeiro no caso do Ditko: entre Dr. Estranho e Shade há uma “conversão” para o Objetivismo, a filosofia materialista de Ayn Rand que nega, expressamente, a existência do sobrenatural [daí a necessidade de se buscar um outro fundamento para o absolutismo da moral].

Ao se tornar objetivista, é compreensível que a mente teimosa de Ditko tenha procurado uma forma de traduzir o ocultismo para algo compatível à sua visão de mundo. É possível até mesmo traçar o caminho que lhe levou a Shade. Em Strange Tales #118, de 1964, o Dr. Estranho enfrenta um demônio que é, essencialmente, um alienígena que “assombra” a população de uma pequena cidade da Bavária. É John Alva Keel em quadrinhos: Keel é um ufólogo que se tornou conhecido por defender, precisamente, que os seres folclóricos são, na verdade, extraterrestres.

Keel era uma espécie Giorgio Tsoukalos do século passado. Foi sucedido por J. Allen Hynek e Jacques Vallée. Os dois tem pretensões mais sérias: Hynek trabalhou para o governo americano, e Vallée… é francês. Em 1976 foi publicado o livro Edge of Reality, que reúne uma conversa entre os dois sobre o estado da ufologia na época, as evidências concretas existentes e especulações mais ou menos fantasiosas. No livro, ao mesmo tempo em que Vallée se incomoda que o fenômeno OVNI seja tratado como ocultismo em livrarias, e não como ciência, ao mesmo tempo em que reconhece a existência de uma conexão [ainda que, para fazê-lo, trate o ocultismo em termos científicos].
Entre as especulações de Hynek e Vallée no livro estão diversos pilares de Shade, The Changing Man. Hynek e Vallée destacam que diversos OVNIs são tripulados por humanos [como os metanos]: eles não são necessariamente seres de outro planeta, sendo possível que sejam humanos de outra dimensão [daí que eles sejam considerados como os precursores da Hipótese Interdimensional: estamos em território nerd tarja preta aqui, seja bem-vindo]. Hynek especula que a viagem interdimensional pode ocorrer através de uma “projeção astral”, o que reforça a relação ocultismo-OVNIs, ou através de uma terceira dimensão que agiria como um “buffer”, um dos elementos da história de Shade.
A aparição de alguns vilões metanos copiam algumas características de OVNIs discutidos por Hynek e Vallée: The Form, a vilã da edição #2, é uma mancha com consciência própria, parecida com as luzes coloridas que as pessoas entrevistadas por Hynek e Vallée enxergaram.
Me parece mais do que crível que Ditko, ao se tornar objetivista, tenha usado Edge of Reality para livrar o Dr. Estranho do seu ocultismo, traduzindo-o para a explicação materialista [e Ayn Rand friendly] de moda na época. De fato, ele foi além: os metanos mantém na Terra uma instituição de caráter religioso, a Occult Research Center [ou ORC] com o objetivo exclusivo de propagar a ideia de que os avistamentos de metanos são fenômenos sobrenaturais — para assim desacreditá-los, fazendo que os humanos descartem tudo, o avistamento original inclusive, como uma bobagem ridícula.
É um elemento que deixa a história tão paranoica e tão… Ditko, que eu chego a me emocionar. É o que diferencia ele de Jack Kirby, que aplicou um truque parecido em Os Eternos. Ao substituir o sobrenatural pelos Deuses Astronautas de Erich Von Dänicken, Kirby não poderia se importar menos com explicar o mundo real: daí que ele tenha usado um mistificador deslumbrado, e não alguém com as credenciais científicas de Hynek e Vallée. Procurava, apenas, um artifício para deixar o leitor deslumbrado com a sua grandiosidade: uma grande revelação apoiada sobre o que quer que estivesse na moda no momento, melhor ainda se é algo que coloca uns robozões na parada. Deu a coincidência que estavam na moda Deuses Astronautas.
Ditko não faria algo assim. Ele não faz as coisas por acaso, um dos motivos pelos quais a relação de Shade com a ufologia, e dessa com o Objetivismo, não podem ser ignoradas, mas para refletir a sua visão de mundo.
Também para te inspirar a segui-la. Por isso que o protagonista de Shade é um herói-herói, nem um pouco ambíguo. Encarna uma série de valores: é perseguido e incompreendido, e a sua principal virtude é a convicção em fazer o que é certo. Impossível não pensar no próprio Ditko e o seu cabeça-durismo. A integridade de sua consciência em situações adversas é quase outro superpoder de Shade: ele é o único metano que não enlouqueceu ao entrar na Area of Madness.
Já os vilões são maus-maus. Invariavelmente querem dominar a Terra, a Meta-Zone ou os dois, e os vilões principais agem de forma conspiratória: é Ditko na pretensão [tudo projeto de ditador] e na forma [paranoia]. Por fim, tem a própria linguagem narrativa. A ausência de ironia na composição dos personagens é algo que se transfere para a forma em que Ditko conta a história: não há qualquer truque de linguagem que possa confundir o leitor.
É um gibi extremamente denso, porque tudo serve para transmitir informação da forma mais rápida possível: cada página tem, normalmente, 6 quadrinhos e 3 linhas narrativas. Cada gibi tem 17 páginas e entre 3 e 5 linhas narrativas. Das nove edições [o omnibus inclui uma edição que foi produzida, mas não publicada, quando a DC Explosion virou DC Implosion], tem um vilão próprio que é despachado na mesma história, sem relação com a trama principal.
Pra viabilizar isso, Ditko usa alguns recursos: coros que ilustram que uma situação é controversa;…
…abundam as coincidências, porque não interessa como aconteceu, mas o que aconteceu; tanto a iluminação quanto a colorização nem tentam ser realistas, servindo apenas para dar ênfase e teatralidade às ações [o que o colorista da capa do omnibus não entendeu, aliás]; a transição é sempre do tipo ação para ação [não existe margem para contemplações] e o desenho é abstrato só para condensar informações e fazer a história andar…
O mais perto que essa linha reta narrativa tem de uma curva é a identidade secreta de Sude, o principal vilão da série. Na edição #5, Ditko insinua que ele é o pai de Mellu, a mocinha, sogro de Shade, para depois revelar que se trata de sua mãe [o que, aliás, deixa a história ainda mais direta: é o uma mistura de arquétipo de Bela e Fera e síndrome de Elektra; infelizmente não é resolvida, porque a série acaba sem fechar a linha narrativa].
Fica parecendo, no entanto, que Ditko fez um desvio apenas para incomodar. Existe a tese de que Ditko deixou a série do Homem-Aranha por não concordar em fazer de Norman Osborne a identidade secreta do Duende Verde: conforme se argumenta, a visão do mundo em preto e branco de Ditko não permitiria que ele aceitasse que o pai de um mocinho é o vilão da história.
Que ele tenha feito a mãe da mocinha a vilã da série em um momento no qual o seu objetivismo era ainda mais hardcore faz parecer que Ditko quis deixar esse pessoal com cara de bobo — o que, de novo, quase me emociona.

Tanta informação [e tanto texto: Fleisher devia estar cobrando por palavras] poderia ficar um pouco massante, é verdade. Ditko tenta contrabalançar isso com a intensidade: Shade. Não apenas na trama, que, oscilando entre traições, corações partidos e dominação mundial, é exagerada como o drama existencial de um adolescente…

… mas também na linguagem: já deu para perceber pelas postagens que ilustram a resenha que a colorização é berrante ao ponto de deixar um diretor de carnaval ultrajado; o desfile de vilões faz com que as cenas de ação sejam emendadas umas nas outras; até a The Form, que supostamente não tem forma [ironia, suponho], é suficientemente definida para manter o fluxo hormonal.

Nada, nada, nada disso foi parar no filme do Dr. Estranho. Se foi ao cinema, Ditko viu o personagem que ele transformou em um herói de sci-fi paranoica, disposto a morrer sendo visto como um traidor na defesa do que acreditava ser certo em uma história extremamente pessoal, virar, pelas mãos de um diretor intercambiável, o protagonista de uma aventura orientalista-pop engraçadinha, genérica e horror dos horrores, relativista. Objetivamente, viu uma porcaria[RESENHAS[QUADRINHOS]


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