Eternos, de Neil Gaiman e John Romita Jr.: Eram os deuses super-heróis?

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Eternos
Neil Gaiman, John Romita Jr., Danny Miki, Tim Townsend, Tom Palmer, Klaus Janson, Jesse Delperdang, Matt Hollingsworth, Dean White e Paul Mounts
[Salvat, 2014]
Joe Quesada entregou os Eternos para Neil Gaiman com um objetivo claro: integrar os personagens de Jack Kirby, criados no auge de sua fase épico-cósmica, no Universo Marvel. É um fato que pode ser percebido dentro [o Homem de Ferro é um dos principais coadjuvantes da minissérie, que faz contínuas referências à saga Guerra Civil] e fora do gibi [Gaiman falou em diversas entrevistas sobre a missão.
É perceptível que se trata do ponto de partida de uma série mensal ambientada no universo regular: na trama, spoilers, os Eternos vivem como humanos normais graças a ilusão criada por um deles [o Duende, o eterno pré-adolescente que quer se tornar mortal para envelhecer]. É um plano conveniente para tirar a cronologia dos personagens [em especial as tentativas anteriores de relançá-los] do caminho: você não se lembra dela, eles também não. O final da minissérie é aberto [dois Eternos, Makkari e Ikaris, parte em busca daqueles que ainda não “despertaram” da ilusão do Duende]. A história tem suas elipses, pontas soltas que um futuro escritor de série regular teria prazer em amarrar.
Em tese, não é um pedido absurdo para se fazer a Gaiman: os Eternos são seres superpoderosos, de personalidade variada [frequentemente oposta], que influenciou o desenvolvimento da humanidade, que ignora a sua verdadeira natureza — foram vistos, ao longo da História, como mitos e semideuses. Eles podem ter sido criados pelos Celestiais, seres cósmicos gigantescos que um dia retornarão à Terra para julgar os humanos [foram vistos, ao longo da história, como deuses] e que também criaram os Desviantes [a contraparte maligna dos Eternos]. Mas parecem primos dos Perpétuos.
Não é de se estranhar, portanto, que Gaiman apoie os seus Eternos em uma influência de Sandman: o escritor de ficção científica New Wave Roger Zelazny [de quem ele é, inclusive, um vocal admirador].
A referência mais óbvia em Sandman e Eternos à obra de Zelazny é à série de livros conhecida como As Crônicas de Amber. Nela, Zelazny também narra a história de uma família imortal, os nove príncipes de Amber que dão título ao primeiro livro da saga.
Em Sandman, essa influência se traduz no uso combinado de elementos fantásticos e outros modernos, tudo com pretensões literárias: no primeiro livro das Crônicas de Amber, o protagonista é preso em uma masmorra medieval em uma versão fantasia de capa e espada do mundo platônico. Lá, fuma um cigarro industrializado: a Terra onde ele vivia, é apenas uma das várias “Sombras de Amber” — o mundo onde as coisas “são”. Como em Sandman, nas Crônicas de Amber a narrativa acompanha os conflitos internos entre os membros dessa família.
Conflitos internos entre os semideuses protagonistas [que são praticamente uma família] também é um dos pontos principais de Eternos: a relação entre eles é disfuncional e de disputa de poder [o vilão, que criou a ilusão que levou à amnésia dos demais, é um Eterno; outro, Druig, está mais preocupado em tornar-se o ditador de uma ex-república soviética do que em ajudar os demais].
De resto, as influências de As Crônicas de Amber em Eternos são outras: os personagens de Amber são a origem de mitos e fábulas e, de certa forma, “guias” da humanidade. Em The Guns of Avalon, segundo livro das Crônicas, descobrimos que os princípios de Amber são a origem da lenda do Rei Arthur. É algo de Kirby que Gaiman manteve:
Existem referências mais diretas: tanto Nine Princes in Amber [primeiro livro das Crônicas] quanto Eternos começam em um hospital. A dica sobre os superpoderes de um dos imortais é a sua inexplicável recuperação médica. O ponto de partida da história é um imortal que não se lembra de sua verdadeira natureza e vive como um mortal. O nome “mortal” dos protagonistas é semelhante; em ambos os casos, uma corruptela de seu verdadeiro nome: Corwin-Curly em Nine Princes in Amber; Makkari-Mark Curry em Eternos.
A proposta, no entanto, tem um problema: quando Kirby criou os Eternos, o que ele tinha em mente era Eram os Deuses Astronautas?, o “clássico” da picaretagem-paranoica-histórica de Erich von Däniken.
No livro, Däniken cogita que os deuses do passado são, na verdade alienígenas [ou humanos do futuro: o homem gostava de manter a mente aberta…] de uma civilização avançada, tecnicamente super-desenvolvida, mestres de uma tecnologia que, para os humanos primitivos, pareceria milagrosa. Não é de se estranhar que Kirby tenha feito disso um gibi: é especulação cósmica, é ficção científica empolgante, é uma ideia grandiosa — é Jack Kirby em 1976.
O livro não é uma referência oculta para a série original. É quase que um derivado direto: no editorial da primeira edição, Kirby faz referência a diversos elementos de Eram os Deuses Astronautas?
…o título da série, originalmente chamada de Return of the Gods, usava a mesma fonte do livro de Däniken:
A influência não é apenas conceitual, mas também estética. A aparência dos Eternos e dos Celestiais deve muito à arte de civilizações amplamente citadas por Däniken no seu livro. A começar pelas pré-colombianas:
Os nomes dos personagens [Makkari, Iraris, Zuras, Sersi, Ajak…] parece uma versão civilizações mesopotâmicas para o nome de personagens de mitos gregos. Para ficar nos nomes sumérios e acádios [“akkadians”, em inglês] que são citados por Däniken: Aruru, Enkidu, Uruk, Ziusudra, Sirius… Tem também os egípcios Sakkara e Zoser.
A diferença está no uso de esteroides. Kirby transformou os alienígenas tecnologicamente avançados de Däniken em Celestiais, seres gigantescos e superpoderosos que criaram os Eternos e os Desviantes [que foram “interpretados” pelos humanos como demônios]. Pode ser que ele estivesse tentando fazer que os seus leitores sentissem com os Celestiais aquilo que, conforme Däniken, os humanos primitivos sentiram com os alienígenas-cientistas, ou pode ser que Kirby estivesse sendo Kirby. Mas o fato é que Eram os Deuses Astronautas? não opera nessa escala:
A ESCALA KIRBY

Não é por acaso que os Eternos não estavam encaixados no Universo Marvel: existe uma incompatibilidade aí. Conforme se diz, o próprio Kirby foi o primeiro a ver isso: um dos motivos para o cancelamento prematuro da série original [dezenove edições e um anual] seria a sua resistência em misturar as duas coisas.

É que os Celestiais, no final das contas, são os responsáveis pela vida inteligente na Terra; vão retornar para nos julgar em uma espécie de Juízo Final. Representam, ainda, uma visão de mundo materialista: “os deuses são alienígenas” é uma explicação cientificista [o próprio livro de Däniken tem uma tara pelo desenvolvimento técnico-científico] para o sobrenatural. A graça do Universo Marvel é que ele de certa forma reproduz o “nosso” universo: mesmo Thor, Hércules e Mefisto são “reduzidos” a uma escala aceitável. A graça dos Celestiais está na sua grandiosidade: reduzi-los para que possam encaixar no menor denominador comum é destruí-los. E poucas pessoas entendem que o “nosso” universo é o mesmo de Eram os Deuses Astronautas?, onde eles podem manter o seu tamanho.
É um problema que Zelazny não resolve para Gaiman: o universo de Amber também é incompatível com o de Eram os Deuses Astronautas?. Talvez por isso que ele tenha feito dos Celestiais [que são, no final das contas, o cerne do problema] uma nota de rodapé em Eternos: o primeiro plano é para os próprios Eternos e os seus conflitos internos [o despertar de Makkari e Ikaris; a conspiração de Druig para se tornar um ditador; o plano de Duende…].
Apenas um deles tem alguma relevância na história [mesmo assim, ele está adormecido]. Gaiman faz dele uma espécie de Lúcifer: é um Celestial que caiu em desgraça ao defender os Desviantes da destruição, que passaram adorá-lo como um messias. Não é uma ideia que seja muito desenvolvida: no fim, os Eternos estão lá para cumprir a sua programação e defendê-lo — serve, portanto, para dar uma camada de ambiguidade a mais para os mocinhos.
John Romita Jr. também não ajuda. Tirando um spread, na primeira edição [falo mais sobre ela depois: spoiler, a culpa é do colorista], ele desenha os Celestiais como super-heróis gigantes. Os capacetes pré-colombianos sumiram, a imponência rochosa também. Veja como esse Celestial desenhado pelo Romitinha é mais parecido com o Homem de Ferro [da mesma minissérie] do que com um ídolo Inca:
Vou fazer uma comparação concreta: na capa da edição #7 da série original, o Celestial está no meio de uma ação, mas Kirby desenha ele com várias manchas negras e traços contínuos, meio arrendondado. O movimento, ainda, é sutil. Por outro lado, os humanos em primeiro plano se movimentam de forma exagerada [repare nas posturas], e são usados diversos traços para retratá-los. Isso faz com que o Celestial pareça se mover com uma vagarosidade harmônica, quase que em tempo geológico, enquanto que os humanos parecem formigas frenéticas:
QUASE TUDO JÁ ESTAVA NA PÁGINA ARTE-FINALIZADA

Agora, compare a capa de Kirby com essa página do Romitinha:

É um Celestial caminhando na direção de um templo, no qual está apoiando a sua mão, comparado com sete Celestiais destruindo uma cidade e massacrando uma multidão. O que te deixou mais impressionado, a capa ou o spread?

Talvez a página que melhor exemplifique a dificuldade de Romitinha em adequar o seu registro seja essa:

É a página na qual dois Desviantes contam a história do Celestial/”Lúcifer” que protegeu o seu povo, retratada em “hieróglifos”. As aspas são exatamente o problema: o que Romitinha desenha não tem nada a ver com hieróglifos. A começar pelo uso de perspectiva: ela não era usada. Mesmos os desenhos mais complexos em hieróglifos seguem a lógica de uma escrita: o objetivo não é retratar de forma realista um personagem [por exemplo], mas “empilhar” símbolos que “contam” quais são as suas características. Romitinha ignorou isso, desenhou uma página de gibi simplificada em uma parede e mandou a impressão de credibilidade histórica para o beleléu.

Não ajuda que a minissérie tenha sido desenhada por uma linha de produção. Eternos tem cinco arte-finalistas [Danny Miki, Tim Townsend, Tom Palmer, Klaus Janson e Jesse Delperdang] e três coloristas [Matt Hollingsworth, Dean White e Paul Mounts]. Não é nem que cada edição tenha sido arte-finalizada e colorida pela mesma pessoa: a edição #6, por exemplo, foi arte-finalizada por Miki, Delperdang, Palmer e Janson, além de colorida por Hollingsworth e Mounts. É impossível manter um padrão no traço assim:
COMPARE ESSA PÁGINA COM QUALQUER
OUTRA DA RESENHA
Nem tudo é horror, no entanto. Que Romitinha não seja uma boa escolha para desenhar Celestiais não faz com que ele seja um desenhista ruim: o cara sabe narrar um gibi até no piloto automático. Perceba, por exemplo, como Curry parece enjaulado no início da primeira edição [acredita que é um mortal, tem flashbacks de sua verdadeira natureza]:
A colorização também ajuda em alguns momentos. Exemplo um: nessas páginas, Curry, na sua vida mortal, está no escuro. Ike Harris [Ikaris, o primeiro Eterno a desconfiar de sua verdadeira natureza, responsável por abrir os olhos de Curry] é a única fonte de luz da cena:
Não sei quem coloriu essas páginas aí de cima. A primeira edição tem como coloristas Hollingsworth, White e Mounts. Pode ter sido qualquer um dos três. A página seguinte, também da primeira edição [é o spread sobre o qual eu falei antes], é de Hollingsworth [conforme o seu site]. A colorização faz com que os Celestiais pareçam o que eles deveriam parecer:
É um espetáculo apocalíptico e primitivo: o céu é roxo, se aproxima uma tempestade sinistra e as cores quentes e as fontes de iluminação fracas fazem com que pareça iluminado por fogo. A página original é mais sem graça. Em defesa dela, no entanto, se pode dizer que dá para os Celestiais uma textura rochosa. A arte-final é de Miki e o grande problema é mesmo o design dos três Celestiais:
Não é de se estranhar que Romitinha tenha transformado os Celestiais em super-heróis: faz trinta anos que ele desenha os seus personagens com esse jeitão [pense no Justiceiro: o que ele desenha não é um homem normal armado]. Também não é de se estranhar que Gaiman também tenha sabotado o sense of wonder kirbyano.
Talvez por se ver como um escritor inteligente demais para escrever um gibi de linha inspirado na obra de um picareta meio brega Gaiman não apenas correu de Däniken em direção a Zelazny, mas também deu para a história uma cara irônica e metatextual. Os Eternos, pra começo de conversa, tiveram a sua miticidade reduzida:
ROMITINHA TENTANDO SER FRANK MILLER EM
SIN CITY COM CERTEZA É POUCO MÍTICO

Quando Curry confronta Ikaris, que lhe tentava convencer de sua verdadeira natureza, ele apresenta todos os furos lógicos da sua história… que são os furos lógicos do conceito kirbyano. É quase que um debate metatextual entre Kirby e Gaiman, escrito por esse último: “Se esses seus Desviantes eram tão poderosos e se multiplicavam tão rápido, chegando a haver milhões deles… desconsiderando a ausência de fósseis… por que não fizeram tudo de novo?”; “Você disse que havia apenas cem eternos. Vocês poderiam ter cruzado com os humanos? E você disse que podiam ter relações sexuais uns com os outros. Disse que tinha um primo, que Zuras teve uma filha… Então me explica: por que vocês não povoaram a Terra? Você disse que a sua gente não morre, não fica doente. Na loteria genética, vocês são os que voltam pra casa de carro novo e com cem milhões de dólares no bolso”. Tem até um jab explícito a Däniken: “se o Homem-Aranha me dissesse que descolou os seus poderes lendo Eram os Deuses Astronautas?, acho que também ia achar que era papo”.

O gibi também tem dois vilões brutamontes meio desastrados [Gelt e Morjak], uma constante na obra de Gaiman [Sandman: Brute e Glob; Lugar Nenhum: Croup e Vandemar; Deuses Americanos: senhor Wood e senhor Stone], que aqui parecem um pouco mais bobos. É uma das coisas que faz com que a história esteja cheia de piadinhas [normalmente irônicas]:
Não estou dizendo que Gaiman é arrogante. Escrever histórias modernas e irônicas e talvez o que ele faz de melhor: em Eternos, os diálogos são inteligentes, várias das piadas são sutis e engraçadas [humor britânico, né], e as críticas de Curry são válidas. Druig, o Eterno que quer ser ditador, é truculento de uma forma que tem um pé na realidade, combinação que faz dele um personagem mais interessante.
Até os super-heróis autorizados pelo governo, que inserem a minissérie no meio da Guerra Civil, ganham um nível interpretativo a mais. Eles protagonizam um reality show [“American Next Super-Hero”, “O Novo Super-Herói da América” na tradução da Salvat, que perdeu a American Next Top Model]. É uma ideia meio batida que ganha um twist: o programa é uma propaganda imbecilizante do controle de super-heróis voltada para crianças e adolescentes : “não é só uma boa ideia. É a lei”. O comercial caberia em Starship Troopers:
O que eu estou dizendo é que Kirby não transformou estelionato em espetáculo sendo irônico. Quando ele leu sobre deuses astronautas, Kirby pensou em onomatopeias, seres gigantescos e leitores impressionados. Gaiman pensou que não era uma ideia coerente com o registro fóssil. [RESENHAS[QUADRINHOS]

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