Um Conto de Batman: Faces, de Matt Wagner e Steve Oliff: Batman vs. Foucault

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Um Conto de Batman: Faces
Matt Wagner e Steve Oliff
[Editora Abril, 1993]
Batman: Xamã, de Dennis O’Neill e Ed Hannigan, pode ter sido o primeiro Legends of the Dark Knight [a série criada no início dos noventa para trazer para os quadrinhos o público de Batman: O Filme, com arcos auto-contidos e desvinculados da cronologia] e o segundo Um Conto de Batman. Mas o arco que encapsula perfeitamente aquilo que você espera de uma LENDA [também de um CONTO] DO BATMAN é Faces, de Matt Wagner.
Publicado no Brasil como uma minissérie quinzenal em agosto de 1993, a história de Faces começa com Duas Caras fugindo do Asilo Arkham. Dois anos depois, um cirurgião plástico é assassinado em uma festa a fantasia para ricaços. Bruce Wayne está lá, tratando de comprar uma ilha caribenha de Paul D’Uberville, em um negócio intermediado por Nelson Wren, corretor de imóveis. Na festa, Wren é seduzido por Manon Barbé, prima do Comte de la Enance, que também está interessado na ilha. Entre o umbigo de fora e o sotaque francês, é um personagem que grita “femme fatale”.
Mais cirurgiões plásticos são assassinados; desaparecem alguns freaks [aberrações de circo]. Tudo é parte de um grande plano: Duas Caras quer desviar a atenção de Batman e comprar a ilha por baixo dos panos, inclusive chantageando D’Uberville — ele mesmo um freak enrustido. Lá, ele quer construir uma utopia — “Aberrações Unidas” ou “Ilha dos Monstros”, uma pátria para os freaks.

Como outros Legends of the Dark Knight, Faces transcorre no início da carreira do Batman. Isso você percebe pela ausência de Robin, e pela personalidade do Morcegão. Uma das coisas que Frank Miller lhe deu foi um arco maior: no início da carreira, ele era jovem e bem-intencionado, mas ingênuo e falho [pense em Batman: Ano Um]. No fim, ele é velho, ranzinza, amargurado e imbatível [pense em O Cavaleiro das Trevas]. O Batman de Faces está, definitivamente, na primeira categoria:
Mas isso só é um enquadramento vago. É o início da carreira de Batman, certo, mas em que ponto estamos? Enquanto que em Ano Um sabemos até mesmo os dias em que a história transcorre, Faces não nos dá qualquer marco temporal concreto. Na verdade, até suprime eles: não é o primeiro confronto entre Batman e Duas Caras: no início, ele já está preso e já tem um modus operandi conhecido e recorrente. Pode ser, portanto, o terceiro, quarto, quinto… enfrentamento. E, de qualquer forma, o resto da história transcorre dois anos depois dessa fuga [que nós não sabemos quando aconteceu].
Também não sabemos em que período da História a estória transcorre: não parece ser o presente [ou o presente do momento em que o gibi foi publicado], como no caso de Ano Um. A Gotham de Faces [que foi originalmente publicado em 1992] parece uma megalópole Art Decó [mais ou menos como em Batman: The Animated Series], algo como um futuro distópico imaginado por alguém dos anos 3, como se a história fosse ambientada em um passado irreal: o passado de um “era uma vez”.
Com o seu urbanismo alienante [os prédios tem pés-direitos gigantes, não há ninguém nas ruas] e o seu céu que vai do vermelho ao roxo [cor normalmente utilizada para retratar vilões; aliás, a colorização de Steve Oliff é muito boa, e exerce uma função evidentemente narrativa: nesse caso, mostra o entardecer e o início da noite], a Gotham não é uma cidade específica, mas um tipo de cidade: uma cidade anos 30, moralmente decadente e dominada pela corrupção.
MOSTRANDO O CENÁRIO E EVITANDO PATRULHAS.
NÃO ESPERE A MESMA CONDESCENDÊNCIA NO TEXTO:
NELE, O SPOILER CORRE SOLTO

Os personagens também são típicos. Ele não é apenas um milionário: ele é um aristocrata. D’Uberville também. Veja como Wayne é mais elegantes que o resto dos convidados da festa à fantasia:

E, como Wagner mostra de forma muito inteligente nesta página, como os dois [Wayne e D’Uberville] são mais aptos do que Wren:
Parte disso é a ascendência pulp do Batman, ressaltada por causa da ambientação nos anos 30. Outra, é que os personagens representam determinados valores. Wayne é um poço de virtudes: heroico, elegante, reservado, mais capaz do que uma pessoa normal. É um aristocrata virtuoso — ele pode estar gastando trinta milhões de dólares em uma ilha, mas é um anti-Paris Hilton.
Wren contrasta com tudo isso: é um alpinista social, desajeitado e invejoso. Não se dá conta de que é um homem pequeno envolvido em uma grande trama [daí que não acredite na própria “sorte” de ter seduzido Manon Barbé]. Quando ele decide tomar o controle do jogo, Wagner retrata a sua situação [um homem pequeno e orgulhoso, que está entrando sozinho em um esquema que lhe supera] com um só quadrinho:

Wagner frequentemente coloca ele ao lado de outro personagem, na mesma posição mas em quadrinhos diferentes. Wren é invariavelmente a figura mais desalinhada. Do lado dele, o Batman parece ainda mais confiante:
Um recurso parecido é utilizado para fazer dele uma espécie de transição entre o Batman e o Duas Caras. Percebam como, nessa mesma sequência, a camisa amarela “diminui” o quadrinho de Wren, reforçando a ideia de que ele está pressionado pela situação:
No fim, ele precisa confrontar a sua própria deformidade “moral”. Duas Caras também, mas ele é mais inequivocamente mau. Ele não é um Duas Caras que alterne entre sensatez e vileza. Quem está no controle é o vilão: ele joga a moeda para decidir que vai matar, não se vai matar ou não — o seu lado Harvey Dent se manifesta como insegurança, não como alternativa. O seu lado deformado nunca foi tão vermelho [o normal é que seja roxo, a cor dos vilões, como em Batman Forever]: o próprio Wagner já falou que foi uma tentativa de deixá-lo mais diabólico.
A cara é diabólica, o plano é de leitor de Foucault: ele se vê como salvador de um povo [“meu povo”, ele diz] perseguido por uma sociedade que impõe um padrão de normalidade opressor [ao serviço do qual está Batman, o hipócrita que o culta o rosto “enquanto ‘corrigia’ os atos de outros!”]. Faces faz até mesmo um paralelo entre freaks e homossexuais.
D’Uberville, o rico e elegante proprietário da ilha na qual Duas Caras quer construir a sua utopia, se obriga a vendê-la ao ser chantageado: ele é uma aberração “dentro do armário”. Como ele diz, a sua vida é uma farsa para salvar as aparências: “pode imaginar minha posição nos círculos sociais se um fato destes viesse a público?”
Manon Barbé, a femme fatale, se revela [para horror de Wren], uma mulher barbada que suportou “trratamentos com cerra, eletrrólise” pela “aprrovação libidinosa de homens como você” [os erres repetidos são a forma que o tradutor não creditado do estúdio Art & Comics encontrou de emular o sotaque francês da personagem]:
É TIPO AQUELA CENA DE TRAINSPOTTING, SE O BEGBY NÃO FOSSE UM MANÍACO
Ou seja: em Faces, Duas Caras é um revolucionário que quer libertar os freaks das imposições da “normalidade”, uma farsa imposta por hipócritas [o Batman] e aproveitadores [os cirurgiões plásticos que ele assassina: “mercadores de beleza! Que tipo de sociedade torna esses homens ricos e respeitados? O tipo do qual o meu provo precisa se proteger, se abrigar!”]. A resposta é “dizer bom voyage ao mundo da elegância… e olá ao da igualdade…”.

Oliff fez uma escolha interessante para diferenciar os lados de Duas Caras. O lado direito, que é o lado “bom”, é elegante e, as vezes, desalinhado. O lado “mau” veste uma estampa geométrica rígida, retratada de forma a não seguir as dobras da própria roupa. Pode ser uma tentativa de mostrar que a elegância não é rígida, enquanto que o lado mau de duas caras é sistemático — o que, no contexto da história, faz sentido.

Mas também pode ser uma tentativa de mostrar que Dent era um Wren antes de ter o seu rosto desfigurado e que a sua nova personalidade tem uma brutalidade simplória: Em Faces, o fervor revolucionário de Duas Caras não é simpático. Ele não é um vilão que, a pesar dos pesares, revela uma verdade que a sociedade não pretende reconhecer: a moral da história é que Duas Caras é mesmo um oportunista ressentido — um Wren que ficou maluco.

O seu plano naufraga porque a sua fundamentação teórica se revela furada: os soldados do seu exército de freaks desaparecidos não se sentem oprimidos pela normalidade. Eles gostam ela. Eles gostam principalmente da parte mais “opressiva” dela: família, propriedade, trabalho, etc.

Como Wren, ele também termina a história enfrentando os seus demônios: no caso, um outro “Duas Caras” que tem uma vida normal, e que faz com que o ressentimento do vilão se revele em sua plenitude [percebam como o lado Harvey “toma conta” no momento em que o vilão duvida de si]:
É uma história, como você pode ter percebido, com uma mensagem. Além disso e da ambientação, ou por consequência disso e da ambientação, Faces tem uma terceira característica: a narrativa está preocupada em transmitir a mensagem, e não com o seu realismo. Wagner, por exemplo, não se importou com furos no roteiro ou com coincidências incríveis que solucionam problemas dramáticos.
Isso não é propriamente um defeito, mas uma característica a se ter em conta para entender o propósito da história. Assim, a fuga de Duas Caras da prisão acontece toda ela em off, entre os quadrinhos: você não precisa se importar com o estratagema que ele usou para abrir a cela, apenas aceitar que ele fugiu. Matar cirurgiões plásticos não ajudou em nada na promoção do plano do Duas Caras; mas ajudou a expor a sua motivação.

O clímax do enfrentamento do herói e do vilão acontece em um dirigível, que desaba em uma floresta… e a metros de distância de um circo, que tem entre as suas atrações um freak que espelha a deformidade do vilão e que está disposto a confrontá-lo pelas suas ações. Não faz sentido desde o ponto de vista da verossimilhança; é necessário para desmoralizar Duas Caras.

Faces é um gibi noir [a começar pelos elementos que formam a sua ambientação temporal imprecisa], com momentos de terror, que aposta no climão. Duas Caras reúne um exército de freaks que lembram os do filme de Tod Browning [que é bem sinistro]. Toda a história transcorre à noite, a cidade parece uma abstração. As cenas de ação são frequentes, mas curtas [nenhuma sequência de luta tem mais do que uma página]. A iluminação das cenas é feita para construir ambientação é não é nem um pouco realista:

O QUARTO NÃO TEM LÂMPADA, O PRÉDIO É UM ARRANHA-CÉUS,
É DE NOITE. DE ONDE VEM ESSA LUZ?

Mas isso não impede que ele seja um gibi BRINCALHÃO. Existem momentos violentos e sinistros, mas elas convivem com outros engraçados — as vezes, na mesma página. O primeiro cirurgião plástico assassinado por Duas Caras está em uma festa a fantasia [sinistro], vestido de demônio [sinistro] e tem o seu rosto devorado por ácido [sinistro]. Ele é atendido por um médico fantasiado de Pato Donaldo:

A AUTORIDADE DA FALA, A SERIEDADE DO CASO, A ROUPA DE PATO DONALD:
O NOME DISSO É PIADA

Esse humor, as vezes, é puramente narrativo:

TÓIN

E utiliza artifícios cômicos que você esperaria ver em um gibi da Disney:

IMAGINE ISSO AQUI TOCANDO NO FUNDO

O epílogo final, no entanto, não tem nenhuma graça: um Wayne reflexivo diz que ele não é tão diferente assim do Duas Caras. É uma comparação que a história já tinha feito: Batman é uma espécie de freak; a sua origem também é um trauma fatídico. A isso, Alfred responde que o Batman não mata ninguém.

Não, Alfred, a diferença não é essa: a diferença é que Wayne não é medíocre e não foi dominado pelo ressentimento, e isso faz dele uma pessoa melhor. Faces é um conto de Batman que tem por objetivo de ensinar essa lição. Talvez você devesse lê-lo. [RESENHAS[QUADRINHOS]

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