O Homem de Ferro de Gene Colan: Transistores detonados, realismo detonante

Essential Iron Man, vol. 2

Stan Lee, Roy Thomas, Archie Goodwin e Gene Colan
[Marvel, 2006]

O Homem de Ferro não é o trabalho mais marcante de Gene Colan na Marvel da Era de Prata — Daredevil e Tomb of Dracula, discutivelmente o Dr. Estranho, estão na frente. O que diz muito sobre Gene Colan: em dois anos, entre Tales of Suspense #73 [janeiro de 1966] e Iron Man #1 [maio de 1968], o artista se tornou um dos principais desenhistas do personagem — a armadura do período, amarela, vermelha e cheia de círculos [aí do lado, na capa do gibi], por exemplo, é A Armadura Clássica do Homem de Ferro. E como ele fez tudo isso? A resposta curta é SENDO MUITO MESTRE. A longa: com uma proposta estética que dava para uma versão turbinada da espetacularidade que você espera de uma aventura de super-heróis uma CASCA realista.

Essa proposta escorre de todos os elementos do gibi. De cara, pode ser percebida nos próprios desenhos de Colan. O seu traço tem um quê realista: as figuras humanas e as expressões faciais não são caricatas como as de Steve Ditko e Jack Kirby, a iluminação não atende [apenas] à necessidade dramática, existe uma preocupação com a textura e o caimento das roupas [perceba que os tecidos tem dobras e sombras e se comportam, bom, como tecidos], as armas, os carros e os prédios, foram desenhados com o aparente auxílio de referências fotográficas, etc.

Ao mesmo tempo, a maioria dos quadrinhos [especialmente nas cenas de ação] tem algum elemento em primeiríssimo plano, muitas vezes uma mão ou um pé, em uma perspectiva forçada que distorce a anatomia dos personagens. Cenas comuns tem o seu ritmo subitamente acelerado, o enquadramento favorece ângulos inusitados e inclinados e a composição de página é irregular [ainda que, com o passar do tempo, se torne mais repetitiva e os quadrinhos passem a ter quase sempre ângulos retos]. A armadura do Homem de Ferro tem plugues e medidores que parecem os de uma máquina de verdade — só que feita de borracha:

FUNK DO HOMEM DE LATA

Isso se torna especialmente BEM SUCEDIDO nas histórias arte-finalizadas por Frank Giacoia, não por acaso um dos parceiros preferidos do próprio Colan. Giacoia tem uma arte-final pesada, que deixa o traço de Colan em alguns momentos parecido com o de John Buscema [ao menos, no preto e branco do Essential, o formato reedição modo bastantão da Marvel]. O seu estilo impressionista ajuda que as cenas de ação sejam mais impactantes.

Compare, por exemplo, esses dois quadrinhos, um de Giacoia e outro de Jack Abel [os dois principais colaboradores de Colan nessas histórias]. Perceba como a arte-final de Abel [à esquerda] é muito mais detalhista, hachurada e completa [e o resultado, mais estático], enquanto que, no quadrinho de Giacoia, o Homem de Titânio quase desaparece por trás das linhas de impacto:

Esse realismo espetacular também pode ser visto na trama. Estruturalmente analisadas, as histórias desenhadas por Colan são quase idênticas: surge um vilão, o Homem de Ferro tem que derrotá-lo. É uma aventura heroica reduzida à sua essência: o confronto se justifica quase que por si só, a motivação dos vilões é anedótica [com freqüência, vingança por uma derrota anterior] e eles são apresentados quase que como forças da natureza.

Como pintar isso com realismo? Bom, em primeiro lugar, desmitificando um pouco o heroísmo: o Homem de Ferro passa 3/4 do tempo rastejando pelo chão, com os “transistores” detonados. Dois: o texto, ou algum detalhe na arte, nos informa que aqueles vilões que mais parecem montanhas são robôs high-tech. O dragão de Tales of Suspense #79, por exemplo, é um SUBMARINO:

 

EVIDENTEMENTE. NÉ.

E três: a vibe INTRINGA INTERNACIONAL. A maioria dos vilões enfrentados pelo Homem de Ferro é comunista: temos agentes soviéticos [o Homem de Titânio], chineses [Mandarim, ainda que, como o seu próprio nome indica, ele não esteja alinhado com o governo chinês e o Partidão], cubanos [Crusher] e vietnamitas [Half-face]. Só que é um COMUNISMO ESTÉTICO e apenas NOMINAL: está lá para dar realismo à aventura, da mesma forma que a origem tecnológica de Ultimo, o robô forjado no interior de um VULCÃO.

Half-face, o “Tony Stark vermelho”, ilustra isso perfeitamente: a esperança vietnamita na forma de engenheiro armamentista, ele está protegido por um exercito de roupas e armas fidedignas… dentro de um CASTELO EUROPEU MEDIEVAL no meio da FLORESTA DO VIETNAM, onde ele é uma espécie de versão atualizada do Dr. Silvana.

 

COERÊNCIA GEOGRÁFICA.
O CONTRÁRIO DE.

Outro exemplo: o senador Byrd, a sua comissão e o seu objetivo de estatizar a armadura do Homem de Ferro. É uma subtrama que tem por objetivo reforçar o realismo da história, tanto pela sua sonoridade “mundo real” [o splash-page de abertura de Tales of Suspense #84, com um Tony Stark rodeado de microfones, é eloqüente nesse sentido], quanto por destacar a fragilidade [anti-heróica] do Homem de Ferro [e, consequentemente, o “realismo” do personagem].

A ligeireza que evidencia o seu caráter acessório se vê no desdobramento e na resolução: Stark decide entregar-se em Tales of Suspense #81 já que “ninguém tem o direito de desafiar os desejos do seu governo” [um bom exemplo de como o confronto comunismo x Estados Unidos é apenas nominal]. No fim, o senador Byrd reconhece em um quadrinho que a comissão era desnecessária e desaparece para nunca mais voltar.

Não é a única subtrama que se presta para dar determinada característica à história. Lee/Colan também fazem isso com o triângulo amoroso formado por Happy Hogan, Tony Stark e Pepper Potts. Só que o objetivo aqui não é reforçar apenas o realismo, mas também o lado romântico: por um lado, o triângulo serve de FUNDAMENTO para uma história de dor de cotovelo [anti-heróica] de Tony Stark [combinado com apelo ao BAIXO VENTRE IMPÚBERE: o homem PASSA O RODO, mas com censura livre]; por outro, TRIÂNGULO AMOROSO. De novo, o seu papel é acessório: assim que Potts se decide por Hogan [e temos a história dor de cotovelo], o casal desaparece.

Mas me desvio. Olhe para essa página:

É a quarta página de Tales of Suspense #93: o Homem de Ferro de Gene Colan, ladeado por um helicóptero de combate, chega ao Vietnã. Pense em que como Kirby teria desenhado exatamente a mesma coisa [se você for pouco criativo, olhe para Tales to Astonish #82, que faz parte desse mesmo Essential]. Colan e Stan Lee trabalharam juntos com o personagem por dois anos [até Tales of Suspense #98; a edição seguinte, além de Iron Man #1, foi roteirizada por Archie Goodwin, que operou conforme as suas próprias regras]. Pegue essa sua página mental, compare com essa aí de cima, e você vai entender exatamente o que eles quiseram fazer.