Longa vida ao novo rei: Camelot 3000, de Mike W. Barr, Brian Bolland e Tatjana Wood

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

Prólogo: a Comic Art Convention de 1973 e o início de uma nova era

O fandom dos quadrinhos americanos começou a surgir de forma mais organizada nos anos 60. Era um grupo ainda incipiente, mas formado por leitores fiéis e dedicados. Formado pelo tipo de gente que preferia viajar dezenas de quilômetros para encontrar uma loja de quadrinhos do que correr o risco de perder um gibi porque o dono da banca do bairro comeu mosca.

Foi nessa época que começaram a pipocar pelos EUA as lojas de quadrinhos. Elas não eram apenas um ponto de venda: também eram um hub social. De forma bastante lógica, os donos de lojas começaram a organizar eventos itinerantes, caçando público por todo o país — mais ou menos como os fãs de ficção científica já faziam há alguns anos.

A Comic Art Convention, em Nova Iorque, foi uma das precursoras. Ela era realizada desde 1968 em algum um hotel da cidade [até 1972, no Statler Hilton Hotel; a partir de então, no Commodore Hotel]. Distribuía prêmios [o Alley Award], contava com convidados especiais [o que, por si só, já era uma ideia radical: no primeiro ano o convidado foi Stan Lee; no segundo, Hal Foster] e, principalmente, possibilitava que os lojistas vendessem gibis aos montes.

Em 1973, Ed Summer viu nisso uma oportunidade. Ele era o dono da Supersnipe Comic Book Euphorium, uma das primeiras comic-shops de Nova Iorque. O que ele fez foi, na semana anterior à convenção, procurar a empresa que distribuía quadrinhos na região e comprar os gibis que chegariam às bancas da cidade naquela semana. Todos os eles: Summer queria ser o único vendedor de Nova Iorque com as hqs que seriam lançadas na cidade durante a convenção.

A sua ideia, como qualquer um que conhece um fã de quadrinhos deve ser capaz de presumir, foi um sucesso. Bob Beerbohm, outro pioneiro do mundo das lojas de quadrinhos, descreve o resultado como “um banquete para piranhas, como uma vaca caindo no Rio Amazonas”.

O furdunço não passou despercebido para Phil Seuling, o organizador da convenção. Ele viu o enxame no estante de Ed e somou dois e dois. Aquilo poderia ser sistematizado em proveito dos fãs e das editoras — e do intermediário adequado: ele mesmo.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos
Phil Seuling, na esquerda da foto, encontra uma oportunidade de negócios.
[Comic Art Convention de 1974, foto de John A. Mozzer]

A distribuição dos gibis era um dos problemas das editoras de quadrinhos. Existiam os problemas intrínsecos de se lidar com a venda de publicações de baixíssimo custo: tanto os donos dos pontos de venda tradicionais [bancas, farmácias e supermercados] quanto os distribuidores poderiam preferir expor à venda ou distribuir revistas nas quais as suas margens de lucro eram maiores. Nesse caso, o gibi produzido e impresso nem chegaria ao alcance dos leitores de quadrinhos.

Além disso, as tiragens eram excessivamente grandes. No caso da Marvel, uma editora particularmente bem sucedida, apenas um terço dos gibis impressos e distribuídos costumava ser vendido.

Diminui-las, no entanto, não era uma opção. Encontrar um distribuidor para tiragens mais baixas, por si só, já poderia ser difícil. Além disso, não havia como dirigir a distribuição de uma determinada série para um determinado ponto de venda no qual ela tivesse um desempenho melhor; diminuir a tiragem poderia desabastecer exatamente o ponto de venda em que a revista era um sucesso.

Os problemas decorrentes do excesso de tiragem não se resumiam ao desperdício [o custo de produzir, imprimir e distribuir um gibi que não seria vendido]. Como as hqs chegavam às bancas em consignação, os gibis não vendidos deveriam ser recolhidos pela sua respectiva editora. Isso criava um problema logístico: não existia qualquer vantagem em operar a distribuição reversa apenas para estocar as revistas em um depósito [que, por si só, geraria um custo adicional] ou para descartá-las diretamente.

A solução que fora encontrada para esse dilema também era problemática. As editoras simplesmente pediam para que os próprios donos das bancas descartassem as revistas que não eram vendidas. Esse sistema, no entanto, funcionava basicamente na forma da confiança. Não havia como garantir que os exemplares não seriam vendidos por fora. O dono da banca poderia embolsar o valor da venda e simplesmente informar à editora que o gibi fora destruído.

Pra piorar, existem fofocas no sentido de que muitas das distribuidoras eram controladas por mafiosos. De fato, distribuir revistas é uma excelente forma de lavar dinheiro. Mais ainda se os exemplares que não são vendidos não retornam para as editoras.

O lógica do negócio não era pensada para os quadrinhos: ninguém quer comprar uma revista de notícias da semana passada. Ao contrário de uma hq antiga, ela nao tem valor nenhum.

Com o sucesso da ideia de Ed Summer, Phil Seuling enxergou uma alternativa. Ele poderia seria a ponte entre as lojas de quadrinhos e as editoras; cada loja informaria a série e o número de exemplares nos quais tinha interesse, comprometendo-se a abraçar eventual encalhe. As editoras não precisariam mais se preocupar com os gibis encalhados ou com as falcatruas da distribuição tradicional. Os donos de lojas se tornariam fontes confiáveis de acesso aos gibis, e poderiam formar um estoque de edições antigas.

Nos meses seguintes à Comic Art Convention, Seuling apresentou a sua proposta tanto para a Marvel quanto para a DC. Em troca da solução para os problemas de distribuição que as editoras enfrentavam pediu 50% de desconto sobre o preço de capa para as revistas [que ele repassaria, por sua vez, como 40% de desconto para as lojas]. O negócio era tão bom que a Marvel, a primeira a aceitar a proposta, de cara ofereceu para Seuling um desconto de 60%. Mesmo assim, a sua margem de lucro por exemplar ainda seria maior que no sistema de distribuição tradicional.

O que se seguiu foi um boom. No início da década de 70, existiam 25 lojas especializadas em quadrinhos nos EUA. No final da década, elas já eram três mil. No início dos anos 80, quando os prognósticos mais negativos das décadas anteriores diziam que ocorreria a implosão das editoras de hqs, uma de cada duas vendas da Marvel acontecia em uma loja especializada. E, no final das contas, isso 70% de sua receita.

Não é de se estranhar, portanto, que as editoras enxergassem no mercado direto o seu futuro. Também é lógico que elas fossem adaptar a sua produção ao novo público. A criança descompromissada que comprava gibi com troco saiu de foco, substituída por jovens adultos de aproximadamente vinte anos de idade, engajados e críticos, com interesse mais sofisticado, instruído e diversificado.

Em 1973, Phil Seuling tinha 39 anos de idade; Ed Summer, 26. Eram os veteranos da turma. Bob Beerbohm montou o seu primeiro estante em uma convenção de quadrinhos em 1967, aos 15 anos de idade; em 1973, portanto, tinha 21 anos. Steve e Bill Schanes, fundadores da editora e distribuidora Pacific, abriram a sua primeira loja de quadrinhos em 1974. Eles tinham 18 e 20 anos de idade. Chuck Rozanski criou a Mile High Comics no porão da casa dos seus pais aos 13 anos de idade, em 1969. Em 1973, ainda não era nem maior de idade. Bud Plant, uma das primeiras pessoas que Seuling procurou para ser um de seus distribuidores regionais, montou a sua primeira [de sete] loja de quadrinhos em 1968, aos 16 anos de idade.

Eram jovens que não se interessavam especificamente por gibis de super-heróis, mas pelas diversas formas pelas quais o nerdismo se manifesta. Ed Summer é o mais impressionante nesse sentido. Eu poderia falar sobre a sua amizade com Ray Bradbury, a sua colaboração com Brian DePalma [no filme Fantasma do Paraíso] ou de sua participação no filme Conan, o Bárbaro. Mas vou deixar que essa foto fale por mim:

Você pode se achar um cara descolado, mas nunca será tão legal quanto Ed Summer [direita] apresentando o seu amigo Frank Frazetta [centro] para seu outro amigo George Lucas [direita] [fonte]

Phil Seuling, quando foi convidado para o The Mike Douglas Show em 1977, se fez acompanhado de uma cosplay de Red Sonja [ok: o interesse dele podia ser por uma fantasia que não é a heroica].

Mike Douglas, Phil Seuling, Wendy Pini, Jamie Farr [fonte]

Beerbohm, ao longo de sua vida, escreveu artigos para revistas de rock. Também é historiador e fez uma ponta no filme do Gato Fritz. Plant, que era seu amigo, também era editor: publicou gibis de terror de Jan Strnad, e comix de fantasia heroica.

O mercado direto era o futuro. Esse era o seu público. Agora, a Marvel e a DC precisavam descobrir o que eles gostariam de ler.

Camelot no ano 3000: das mulheres-aranhas às katanas de luz

Ao contrário do que se costuma dizer, Camelot 3000 #1 não foi o primeiro gibi da nem da DC, nem da Marvel, a ser distribuído exclusivamente no mercado direto. A Marvel lançou Dazzler #1 no início de 1981. A DC, Madame Xanadu Special #1, de Steve Englehart e Marshall Rogers [com uma história curta complementar de J. M. DeMatteis e Brian Bolland], alguns meses depois.

Também não é a primeira hq que tem por público alvo jovens adultos: a coleção Marvel Graphic Novel iniciou no início de 1982 [com A Morte do Capitão Marvel, de Jim Starlin].

Camelot 3000, no entanto, é a primeira série que foi calculada para ser distribuída no mercado direto. Não era uma história de um personagem já existente, periférico ou não. Era uma criação nova, calculada para atender à demanda de um novo público: Mike W. Barr costuma dizer que o processo que levou ao seu lançamento passou pela análise de uma empresa de consultoria externa, contratada precisamente com o objetivo de ajudar a projetar um lançamento exclusivo para o mercado direto.

Isso é perceptível em algumas características da série. Primeiro, Camelot 3000 é uma mistura convenções de vários gêneros diferentes. É, evidentemente, um gibi de ficção científica: não apenas pelas naves e pelos alienígenas, mas pelo esforço empregado em construir um universo futurista crível e distópico. Mas é um gibi de ficção científica que incorpora elementos da fantasia heroica do tipo capa e espada, como a natureza primitiva do mundo alienígena, a vilã feiticeira-sexy aracnídea, e, evidentemente, capas e das espadas:

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

Segundo: é uma tentativa de emular Guerra nas Estrelas, o grande hit do mundo nerd do final dos anos 70. Camelot 3000 é praticamente um Guerra nas Estrelas que trocou a influência de westerns e filmes de samurai por uma mistura de Conan, o Bárbaro com Príncipe Valente. Merlin tem até mesmo a excentricidade de Obi-Wan Kenobi.

Terceiro: Camelot 3000 não é um gibi infantil. A sua primeira edição começa citando T. S. Elliot [ainda que se preocupe em identificá-lo como um poeta] e foi publicado sem a aprovação do Comics Code Authority. De fato, em alguns momentos parece desafiar as suas regras de forma deliberada, especialmente em relação a sexo e violência.

Existe um grande NÃO no Comics Code sobre ferimentos de saída.
É por isso que o sai da Elektra consegue atravessar uma caixa torácica, mas não o tecido das costas de sua roupa.

Tanto Mike W. Barr quanto Brian Bolland e a própria DC Comics, no entanto, perceberam que o mercado direto apresentada uma oportunidade para algo mais do que surfar na onda de outros sucessos e mostrar umas bundas.

A editora, em primeiro lugar, fez duas grandes concessões a Brian Bolland. A primeira delas foi a tolerância com os seus atrasos. Camelot 3000 foi publicado com uma periodicidade [lendariamente] irregular. Ainda que fosse anunciada como uma maxissérie mensal de doze edições, entre as duas últimas transcorreram nove meses. No total, ela foi publicada ao longo de três anos.

Além disso, a série também é famosa por ter sido impressa, de forma pioneira, em papel Baxter. Esse tipo de papel se tornaria o top de linha para quadrinhos nos anos 80. A sua qualidade é muito superior à do newsprint [papel jornal] que era utilizado para a impressão das séries mensais, e valoriza tremendamente o traço do desenhista.

A primeira dessas concessões somente foi possível pela forma de distribuição do gibi. As editoras estavam contratualmente obrigadas a pagar multas para as distribuidoras em caso de atrasos. Mesmo quando a hq era finalmente distribuída, na banca poderiam preferir nem expô-la a venda por não lembrar quando fora distribuída a edição anterior. E o novo fandom preferia esperar por um gibi desenhado com calma por Bolland do que receber pontualmente um fill-in desenhado por outra pessoa.

O trabalho de Bolland, é claro, justificou plenamente essas concessões. Camelot 3000 combina virtuosidade, naturalismo e dinamicidade de uma forma que provavelmente ainda não havia sido vista nos quadrinhos americanos.

Bolland cursou a faculdade de artes e tem, consequentemente, treinamento formal. Isso se traduz na naturalidade do seu traço: as figuras são invariavelmente anatomicamente corretas e a perspectiva está sempre ajustada. Mas ele também é controlador com o seu trabalho. Mesmo nas edições que foram arte-finalizadas por Terry Austin, um dos melhores inkers dos quadrinhos americanos, Bolland estourava os prazos por querer desenhar o máximo possível a lápis — e, assim, diminuir o impacto do arte-finalista no resultado final.

Xerox da página desenhada a lápis [no canto esquerdo, tem o xerox do esboço preliminar]…
…e a página publicada.
Xerox da página a lápis [fonte]…
…e a página publicada.
O Artur do terceiro quadrinho não está arte-finalizado [fonte]…
…página publicada.

O controle, portanto, se traduzia em esmero. E o esmero, nas mãos de um cara treinado para desenhar de forma natural, virou textura e cenários hiper-elaborados. O resultado é um desenho que lembra o trabalho dos quadrinistas mais virtuosos do período pré-Marvel: Joe Kubert, Carmine Infantino, até mesmo Alex Raymond.

Existe aqui, no entanto, uma crítica a se fazer à edição. É uma crítica que se estende à Deluxe Edition da DC, e não está restrita, portanto, à Edição de Luxo da Panini que seguiu o formato daquela. Compare essa página no desenho original, na versão originalmente publicada pela DC e na Edição de Luxo:

Deluxe
Original

Acredito que seja perceptível que, na edição Deluxe, as cores e, especialmente, os pretos estão mais apagados.

Não consegui descobrir exatamente o que deu errado. Existem várias teses [nos EUA, essa é uma crítica razoavelmente comum à edição Deluxe]. Algumas pessoas falam da troca de papel: o Baxter no qual Camelot 3000 foi originalmente impressa não é mais fabricado. Outras dizem que o problema esteve na digitalização dos fotolitos, necessária para a impressão no formato Deluxe. Particularmente, eu não sei nem se essa frase faz sentido.

Comparando as páginas, porém, parece claro que o gibi não foi recolorido, mas que a colorização está mais fria. Também me parece claro que o resultado final é pior:

Deluxe
Original

Pra te dar uma ideia do que foi o desenho do Bolland, estou usando nessa resenha, sempre que possível, imagens da edição original.

No entanto, e voltando ao trabalho de Bolland, o desenhista não permite que esse virtuosismo deixe o desenho estático. E ele faz isso como o bom discípulo de Neal Adams que ele é: dificilmente usa layouts ou quadrinhos regulares, ângulos retos e transições que não sejam do tipo ação para ação. Ao contrário: ele transforma a oração de Percival em uma tarefa física, que explode os limites do quadrinho.

Esse, aliás, é um recurso diretamente saído da gramática e Jack Kirby que Bolland utiliza com alguma frequência. Outro é a distorção da perspectiva: desenhar figuras em primeiro plano em um tamanhomaior do que o normal pelas regras da perspectiva, para dar a impressão que elas estão pulando para fora da página.

Finalmente, a publicação do gibi no mercado direto também abriu possibilidades narrativas que impactaram o trabalho tanto de Mike Barr, quanto de Brian Bolland.

Normalmente, os gibis eram publicados nos EUA sob uma mesma cabeceira de numeração contínua e longuíssima. Isso era acontecia por um alguns motivos. Os contratos, primeiro, eram assinados com as distribuidoras conforme a cabeceira da série, e não conforme o seu conteúdo. Assim, a distribuidora se comprometia a entregar a série Super-X, independentemente dela ser protagonizada pelo Super-Y.

Além disso, nas bancas, conforme se presumia, se preferiam séries testadas pelo tempo. Se só houvesse espaço para um gibi, por exemplo, e o dono da banca tivesse que escolher entre Porquera-man #567 ou Super-watchmen #1, escolheria Porquera-man #567: É um gibi que vem sendo vendido há 567 meses. Super-watchmen #1 seria distribuída, mas talvez nem saísse da caixa no ponto de venda.

É por isso que, até então, minisséries eram raras e novas ideias costumavam ser testadas em cabeceiras já estabelecidas. World of Krypton, que é considerada a primeira minissérie dos quadrinhos americanos, só foi lançada em 1979.

Ao ser distribuída no mercado direto, Camelot 3000 pôde ignorar essas limitações.

A DC aproveitou a oportunidade para ir além. Camelot 3000 não era apenas uma série nova. Era uma história com início, meio e fim, mais longa do que a de um gibi ou de uma minissérie. Era uma maxissérie: uma narrativa não apenas completa, mas também complexa. Se você pensar em uma edição de uma série mensal como um conto, e uma minissérie como uma novela, Camelot 3000 seria um romance.

A parte pesada para viabilizar isso caiu no colo de Bolland. O mercado direto possibilitava o lançamento de um romance em quadrinhos no sentido comercial. Produzi-lo de forma narrativamente funcional era outra história.

O próprio Barr costuma contar em entrevistas uma anedota que é ilustrativa em relação a isso. Originalmente, a série seria protagonizada pelo rei Artur, Merlin e mais doze cavaleiros [o que, por si só, já é uma redução: uns 150 cavaleiros passaram pela Távola Redonda]. Foi Bolland que lhe alertou que, mesmo que ele conseguisse desenvolver a personalidade de 14 heróis, ele nunca conseguiria desenhá-los: cada cena de ação seria um pesadelo para o quadrinista inglês. Daí que Barr tenha reduzido o número de cavaleiros revividos no futuro a seis.

Mesmo com a redução do número de personagens, Bolland teve que dá zero sacrifícios. Ainda que a sua narrativa seja espetacular, e que ele utilize aqueles dois recursos saídos do manual do Rei, a narrativa de Camelot 3000 deve pouco a Jack Kirby. Eu já comentei que ele não usa quadrinhos regulares; mas, agora mesmo, o que nos interessa é que a transição entre os quadrinhos só é fluída como nos gibis de Kirby em casos excepcionais.

Isso não acontece por limitação técnica. Em momentos pontuais, uma mesma ação se desdobra em vários quadrinhos, inclusive de forma audaciosa, o que mostra que Bolland seria perfeitamente capaz de fazê-lo:

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland
Majestade! De perna aberta e mostrando a pistola! :O

Existem alguns recursos narrativos em operação nesse splash-page duplo que sugerem movimento. Os três quadrinhos que mostram um plano detalhe da mão de Artur agarrando o cabo da espada intermedeiam o presente e o passado: eles tem por consequência lógica tanto a ação do jovem Artur quanto a do Artur do futuro. A ação do Artur do futuro, no entanto, é muito mais dinâmica. As linhas de movimento unem ela ao terceiro quadrinho e a aceleração da velocidade [três quadrinhos pra pegar o cabo, um quadrão pra empunhar a espada] sugerem um movimento extremamente brusco. Brusco o suficiente, inclusive, para romper os limites do próprio quadrinho [que o pomo extrapola].

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

Mas a regra é que ela seja fragmentada, até beirando a ilógica:

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos
Tem tanta coisa acontecendo no quinto quadrinho que ele é quase um organigrama. E o exército alienígena aparece do nada.

Isso acontece porque a narrativa visual é expositiva: a principal função do conteúdo do quadrinho é transmitir informação, e impressionar o leitor. Veja essa sequência, por exemplo:

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

Seria a sequência de luta mais tediosa de todos os tempos: grade regular, plano médio, ângulo reto, alternância entre duas câmeras que estão em ângulos opostos… Mas esses são recursos narrativos que você usa para mostrar um diálogo — o equivalente ao corta de um rosto para o outro do cinema. Foram utilizados por Bolland, portanto, porque ele quer que você leia a cena pela conversa: pela informação objetivamente transmitida.

Isso também é algo que se percebe no roteiro. Ele se vale de atalhos e coincidências oportunas para transmitir uma grande quantidade de informações, mesmo que sacrificando a lógica interna da narrativa. O exemplo mais claro disso é a bola de cristal de Morgana: por si só, ela já é um atalho no roteiro; ainda por cima, funciona e deixa de funcionar quando é mais conveniente.

Mas o exemplo mais importante é Tom Prentice. Ele não é um personagem: ele é um plot device com rosto [ou meio rosto]. Ele está lá como um avatar do leitor: até o seu nome, formado por uma homenagem ao escritor de A Morte de Artur [o livro que consolidou a lenda do rei Artur], Thomas Malory, e por uma palavra cuja sonoridade lembra “apprentice” [aprendiz], denuncia isso.

Esses atalhos narrativos eram o preço a ser pago para que Camelot 3000 não fosse maxi apenas no número de edições.

Você não faz, no entanto, um romance em quadrinhos que seja uma continuação digna do mais famoso romance de cavalaria de todos os tempos apenas transmitindo muita informação. Para isso, você precisa que essa informação diga alguma coisa.

O que nos leva à pergunta seguinte: o que Camelot 3000 tem a dizer?

Camelot 3.0: De Geoffrey of Monmouth e Thomas Malory a Mike W. Barr e Brian Bolland

O Rei Artur, Merlin, e os Cavaleiros da Távola Redonda, como os personagens de uma saga que está integrada na cultura popular que são, já apareceram direta ou indiretamente em diversos gibis. Etrigan, o demônio criado por Jack Kirby, é irmão de Merlin. Merlin também participa da origem do Capitão Britânia, escrita por Chris Claremont. Claremont voltaria ao mito arturiano em La Morte de Jessica [Spider-Woman #41]. A história não apenas faz uma referência ao livro de Thomas Malory em seu título, como também tem Morgana Le Fay como vilã.

Ao contrário desses gibis, no entanto, Camelot 3000 não utiliza os personagens da tradição arturiana de forma estática. Barr e Bolland foram além. Eles não queriam produzir apenas uma continuação cronológica das histórias originais, mas usar os seus elementos para contar, em uma perspectiva contemporânea, uma história surpreendentemente sofisticada: uma história sobre o vazio materialista, o poder dos símbolos e o sacrifício pessoal como forma de transcendência.

Camelot 3000 pode transcorrer no terceiro milênio, mas é um terceiro milênio surpreendentemente parecido com o século XX. Ao mesmo tempo, esses elementos contemporâneos preservam as características essenciais daqueles que a já estavam presentes nas histórias originais do rei Artur.

Isso é mais perceptível no contexto em que transcorre a história. A invasão alienígena, por exemplo, é uma versão em quatro cores da segunda guerra mundial: o gibi parte de uma versão futurista da Batalha da Inglaterra; Prentice sonha em se juntar à resistência francesa; e o triângulo Guinevere-Lancelot-Artur reproduz a dinâmica Ilsa-Laszlo-Rick de Casablanca [com a diferença nada desprezível que dessa vez o Laszlo se ferra].

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos
De todos os castelos em todos os asteroides em todo o universo: ela entrou no meu.

Ao mesmo tempo, a horda de alienígenas oriunda de um planeta selvagem que invade Terra lembra uma das forças invasoras descritas por Geoffrey of Monmouth em Historia Regum Britanniae. Esse livro, no entanto, opera na escala do século XII: os invasores vêm da Irlanda. Geoffrey of Monmouth não é um zé na história de Artur. Entre 1130 e 1150, com Historia Regum Britanniae, Prophetiae Merlini e Vita Merlini, ele deu a partida no cânone arturiano.

Por outro lado, a humanidade, em Camelot 3000, é comandada por uma ONU ditatorial. Isso, por si só, já é uma ideia bastante contemporânea. Mas ela não está só. Os líderes dos países que formam o “Conselho de Segurança” da ONU do terceiro milênio são paródias de líderes do século XX do mundo real. O Presidente Marks parece uma mistura de Lyndon Johnson com Ronald Reagan. A Secretária-Geral Feng lembra Jiang Qing, viúva de Mao Tsé-Tung [e que carregou a culpa pelo fracasso da Revolução Cultural depois de sua morte].

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

O Premier Syerov é um evidente burocrata soviético: ele normalmente é associado a Brezhnev, mas talvez isso seja só porque ele é o líder soviético mais parecido com um burocrata comunista de todos. O Supremo Rakma, finalmente, é uma evidente paródia do ditador ugandês Idi Amin.

A submissão da humanidade a um império mundial consumido por divergências internas, no entanto, não é uma situação muito diferente da que se encontra a humanidade em A Morte de Rei Artur, de Thomas Malory.

Originalmente chamado de The Whole Book of King Arthur and His Noble Knights of The Round Table, o livro foi escrito por Malory no século XV com o objetivo de reunir em uma narrativa coerente todas as histórias relacionadas ao rei e os seus cavaleiros. Normalmente quando se fala sobre a história original do rei Artur, se está falando desse livro. Foi ele que consolidou as histórias que surgiram depois do pontapé inicial de Geoffrey of Monmouth.

Nele, Malory substitui os inimigos pagãos e sarracenos [“alienígenas”] do livro de Geoffrey of Monmouth por outros reis cristãos. A humanidade de Camelot 3000 é a cristandade de A Morte de Artur.

Em um de seus capítulos [O Conto do Rei Artur e o Imperador Lúcio], Artur entra em guerra com o próprio Império Romano. É um conflito que Camelot 3000 parece usar como analogia até mesmo em detalhes específicos. Nele, a guerra entre o Império e o reino de Artur inicia pelo agir de um representante daquele, Lucius Tiberius. No gibi, o “Conselho de Segurança” da ONU é manipulado por Jordan Matthew [vilão que, posteriormente, se revela como a reencarnação de Mordred]. Entre os aliados de Tiberius está Ali Fatima, rei anacronicamente islâmico da Espanha. Entre os alienados de Matthew está Morgana Le Fay, rainha usurpadora do planeta de origem dos invasores alienígenas.

No entanto, ainda que esses elementos da história sejam análogos, eles são utilizados em Camelot 3000 de outra forma. Ao contrário do que ocorre no livro de Malory, os líderes da humanidade no terceiro milênio exercem o seu domínio, inclusive sobre a vida interior de seus súditos, graças ao vazio espiritual de seus dominados.

A vida da humanidade no mundo de Camelot 3000 transcorre de forma medíocre e material. A vinculação disso com a desesperança reinante é exposta de forma bastante explícita no momento em que Artur extrai a Excalibur da bigorna. É o momento em que as pessoas da Terra, “pela primeira vez na vida de muitas delas”, “têm um herói”.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

Um dos cavaleiros da Távola Redonda está na história para evidenciar isso: Percival.

Em Camelot 3000, o rei Artur conjura seis cavaleiros da lenda original. Eles encarnam nos corpos de pessoas do futuro em que a história transcorre. Percival, especificamente, encarna em um dissidente político que é transformado em um neo-humano. Os neo-humanos são monstros irracionais que formam a tropa de choque da ONU do futuro.

Na tradição arturiana, Percival é um dos grandes personagens. Duas são as suas características: a inocência e a virtude. Já se acreditou que a sua origem fosse persa. O seu nome original, dentro dessa ideia, seria Parsifal — palavra cujo significado é “santo tolo”. É por isso, por exemplo, que o nome da peça de Wagner é precisamente Parsifal. Em Perceval ou le Conte du Graal, escrito no final do século XII por Chrétien de Troyes, ele é o cavaleiro que encontra o Santo Graal [papel no qual é substituído na tradição, posteriormente, por Galahad].

Diante dessas características, o significado de sua encarnação em Camelot 3000 se torna claro. “Dissidência política” é a expressão da novilíngua do mundo do gibi que define aquele que não vivem para a matéria. Diante das características históricas do personagem, você pode projetar que ela consiste , no seu caso, na perspectiva transcendente. “Livre” dela, Percival se transforma em um monstro violento e irracional. O processo que lhe transforma em um neo-humano é um batismo profano: não serve para apagar o pecado original, mas a sua virtude.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

Dentro desse mundo materialista, os verdadeiros vilões da história [Mordred e Morgana Le Fay que manipulam os líderes da humanidade] oferecem uma perspectiva sobre o tema da manipulação monopolística dos símbolos com o objetivo de subjugar a humanidade.

Morgana Le Fay é um dos personagens arturianos mais interessantes. Ainda que ela esteja associada às lendas arturianas desde o seu início [é uma das personagens de Vita Merlini, de Geoffrey of Monmouth], a teoria dominante é que ela tem a sua origem em três divindades célticas [Morrigan, Macha e Modron]. Como boa divindade pagã, é uma personagem ambígua: em A Morte de Artur, por exemplo, é ao mesmo tempo uma vilã e a responsável por escoltar o rei em sua jornada final para Avalon.

Nas histórias seguintes a A Morte de Artur, Morgana foi se consolidando apenas como uma vilã. Ainda que ao longo do século XX a sua ambiguidade original esteja sendo restaurada [e inclusive revertida no sentido contrário: As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, publicado em 1979, apresenta o personagem na clave da segunda onda do feminismo], é essa a tradição que Barr e Bolland seguem.

Assim, como deusa celta, Morgana era uma Deusa da Soberania: uma forma de personificação do território que consolidava o poder do pretenso rei através de uma relação sexual ritualística [uma história mitológica cuja ligação simbólica com a evolução natural renderia uma palestra de Jordan Peterson de trezentas horas de duração].

Em Camelot 3000, ela mantém esse papel, mas para exercê-lo de forma perversa. Assim, ela tem por animal de estimação um homem que não foi capaz de satisfazê-la e que, através de um feitiço, foi reduzido à forma de um primata. Por outro lado, ela se transformou em líder dos alienígenas invasores usurpando o lugar da “mãe-alienígena” — a sua versão espelhada:

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

Nada disso afasta da Morgana do gibi o seu aspecto mágico. Mas até como feiticeira ela é maligna. Compare, por exemplo, a cena do gibi em que você descobre a podridão que Morgana esconde sob sua capa…

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

…com a apresentação de Duessa [que seria alguma coisa como a fada da falsidade em The Faerie Queene, o épico de cavalaria que Edmund Spenser escreveu no final do século XVII]:

Her neather partes misshapen, monstrous,
Were hidd in water, that I could not see,
But they did seeme more foule and hideous,
Then womans shape man would believe to be.

Como dá para perceber, as características da Morgana de Camelot 3000 ainda são as da deusa pagã, ainda que resumidas à sua faceta negativa [por exemplo: a sua sexualidade é opulenta ao ponto de ser agressiva, mas também é insidiosamente corrupta]. Ela não representa, portanto, a matéria. A vilania está em como ela exerce a sua divindade: Morgana domina o planeta alienígena ao chegar ao “seu local mais sagrado: fonte de energia mítica oriunda do próprio planeta”, destruindo a “tendência natural à magia” da raça alienígena, e direcionando-lhes “para a ciência”, para assim percorrer, sozinha, “a senda arcana daquele mundo”. Noutras palavras: ela pretende monopolizar a visão transcendente e, assim como os líderes da terra, impor aos seus súditos uma visão puramente “científica”.

Não é um agir muito diferente do de Mordred.

Na tradição arturiana, Mordred é o filho bastardo e incestuoso de Artur e da própria irmã. Conforme é narrado em Camelot 3000, Artur de fato tenta matá-lo em sua infância. Não encontrei nenhuma referência na tradição ao suposto estupro da mãe de Mordred por Tristão; imagino que isso tenha sido uma concessão de Barr e Bolland ao sexo e à violência. De qualquer forma Artur mata, por via das dúvidas, todas as crianças nascidas em maio, no que se tornou conhecido como The Massacre of the May Day Babies, diante da profecia de Merlin no sentido de que ele seria morto por seu filho [por outro lado. Ele é, portanto, alguma coisa como o pecado original do Rei Artur: ele sobrevive ao massacre e causa a queda de Camelot, conforme fora profetizado por Merlin.

Essa história se repete, basicamente em Camelot 3000 [o gibi tem o mesmo tom fatalista da profecia de Merlin], mas com um acréscimo: Mordred rouba o Santo Graal das mãos de Lancelot.

A busca pelo Santo Graal é uma das partes mais importantes da história do Rei Artur. Conforme a lenda, não se trata apenas do cálice utilizado por Cristo na última ceia: também foi utilizado por José de Arimatéia para preservar o seu sangue, um símbolo da essência, durante a crucificação. Na tradição arturiana, portanto, a busca pelo Santo Graal é um símbolo para a busca pelo próprio cristianismo: representa a tentativa do Rei Artur e dos Cavaleiro da da Távola Redonda de se converter totalmente e abandonar o paganismo de Morgana, da Dama do Lago e de Merlin [que também é uma figura ambígua: um manipulador filho de um demônio, que encontra seu fim nas mãos de uma divindade pagã derivada da Dama do Lago e semelhante à própria Morgana].

A parte transcendente dessa história aparece em Camelot 3000. Em parte, isso acontece como uma repetição da história: no gibi, é de Lancelot que Mordred rouba o Graal; na tradição, Lancelot também deixa escapá-lo [no que é, simbolicamente, uma punição pelo pecado de trair Artur com Guinevere]. Também acontece com base no simbolismo: Percival, por exemplo, se recupera de sua transformação em um neo-humano por força do Graal. Em seguida ele transcende, desaparecendo em uma nuvenzinha de fumaça.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

É nesse contexto que deve ser entendida a vilania de Mordred em Camelot 3000. Ao alcançar o Graal, o que ele faz é transformá-lo em uma armadura. Em outras palavras, ele instrumentaliza o símbolo da transcendência — submete-a, assim, à sua utilidade material.

Mas Camelot 3000 não é uma história sobre transcendência versus vazio espiritual. Esse é apenas o contexto no qual transcorre o arco do seu protagonista, o rei Artur. É ele que completa o tema [materialismo, símbolos e transcendência], que, por sua vez, lhe dá sentido.

Isso pode parecer estranho, considerando o que eu disse sobre Mordred e que o rei Artur passa a série usando a Excalibur para distribuir espadadas em alienígenas. A Excalibur, na tradição arturiana, é evidentemente um símbolo da legitimidade e do poder do rei: lhe foi entregue por uma deusa pagã [a Dama do Lago] que é uma versão galesa e assexuada da Deusa da Soberania celta como reconhecimento de sua realeza [em um processo cujo simbolismo foi brilhantemente parodiado em Monty Python: Em Busca do Cálice Sagrado].

Existe, no entanto, uma diferença. A Excalibur não é um cálice: é uma espada. É, portanto, um instrumento. Isso é muito pertinente para um símbolo de poder, já que poder é precisamente a capacidade de agir no mundo. Utilizá-la, portanto, não desvirtua o seu caráter simbólico: ao contrário, o reforça. Essa, pelo menos, é a ideia do seu uso em Camelot 3000: com o transcorrer da história, Excalibur deixa de ser utilizada apenas conforme o seu propósito específico [passar alienígenas pelo fio], e mais como uma representação de poder.

Daí, por exemplo, que o Rei Artur consiga utilizá-la para recarregar as baterias da nave que leva ele e os seus cavaleiros para o planeta dominado por Morgana. Ali, Excalibur não é mais uma espada: ela é a capacidade do rei de fazer coisas. Ou seja: o seu poder.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

No gibi, o arco da espada, se é que se pode falar dela nesses termos, é parecido com o do próprio rei Artur. No início da série, o Rei Artur não tem que lidar com o drama de sua nova existência da mesma forma que os demais Cavaleiros da Távola Redonda: ele ainda é ele mesmo, como se tivesse acordado de um longo sono.

Isso, no entanto, contribui para o fatalismo da série. Diante da nova traição de Lancelot e Guinevere, ele parece especialmente consciente de que a história está se repetindo na sua frente.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

Como eu já disse, o fatalismo, por si só, não é uma novidade nas histórias arturianas. Elas foram consolidadas, no final das contas, sob o título de A Morte de Artur. A ideia de que a sua história é uma que se repete também não. Ela está presente já no título de The Once and Future King, de T. H. White, livro que é a versão moderna mais conhecida da história de Artur [base, por exemplo, do filme da Disney, A Espada era a Lei].

É uma sutileza que a tradução habitual do título do livro em português, “O único e eterno rei”, não capta. Mas, de certa forma, ela já está presente em A Morte de Artur. White tirou a expressão da obra de Malory. Nele, se narra que na tumba do rei Artur existe a inscrição “rex quondam, rex futurus” — “rei um dia, rei no futuro”.

A diferença está em que Camelot 3000 une essas duas pontas: a repetição e a fatalidade. Mas também sugere que a repetição é necessária e que a fatalidade tem um sentido. Merlin, por exemplo, agindo na melhor tradição de profeta manipulador, dá um empurrãozinho para que Artur se case com Guinevere. Ele não faz isso porque acha que assim a traição será evitada; ele faz isso porque sabe que assim ela estará garantida:

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

Camelot 3000 é a jornada de rei Artur rumo a esse entendimento. É a sua busca pelo significado de seu iminente destino trágico.

O cavaleiro Tristão está na história para que o leitor entenda onde o rei Artur deve buscar esse sentido. O romance entre Tristão e Isolda é uma das lendas arturianas mais conhecidas. É uma história de amor frustrado: Tristão é sobrinho do rei Marcos da Cornualha, para onde deve escoltar a princesa irlandesa Isolda, futura esposa de seu tio. No curso da viagem, no entanto, Tristão e Isolda consomem por acidente [ou não, conforme a versão] uma poção de amor que deveria ser utilizada apenas por Isolda para garantir a felicidade de seu casamento com o rei Marcos. Os dois, então, se apaixonam perdidamente: o tema da história é o conflito interno de Tristão, dividido entre o seu amor por Isolda e o seu dever como cavaleiro, súdito e sobrinho do rei.

Também é uma das mais histórias arturianas com o maior número de versões. Os poetas franceses Béroul e Thomas d’Angleterre escreveram, no século XII, um rei Marcos que sofria com o conflito. Ele está dividido entre o seu amor por Isolda e pelo seu sobrinho, e o seu dever de punir o crime que eles cometeram. Nessa versão, Tristão e Isolda formam um casal quase malicioso, que se diverte em enganá-lo. Mas existe uma outra versão em que Marcos abandona Isolda para ser estuprada em uma colônia de leprosos.

Em Camelot 3000, Tristão reencarna em uma mulher. Isso, no entanto, não é apenas um truque politicamente correto, nem uma erotização politicamente incorreta: é a forma que Barr e Bolland encontraram de deslocar o centro do conflito de Tristão. Na hq, ele não está mais dividido entre o seu sentimento por Isolda e o seu dever como cavaleiro. Ele está dividido entre aquele e o papel que ele mesmo se atribui. O conflito, assim, se torna puramente interno. Não interessa mais quem é seu tio ou quais são as suas obrigações com terceiros; o que interessa é aquilo que ele espera dele mesmo.

Por outro lado, o cavaleiro Kay, irmão de Artur, está na história para mostrar que esse destino está nas mãos do próprio rei. Na tradição arturiana, Kay é o cavaleiro-mala que gera discórdia entre os seus pares. Em Camelot 3000, no entanto, ele revela que agia dessa forma com um propósito: é um auto-sacrifício. O seu objetivo era se transformar em um bode expiatório para, assim, garantir a união da Távola Redonda.

“Esse Kay sabe das coisas”.
–René Girard, 1983

É verdade que, logo nas primeiras edições, o rei Artur é desvinculado da Inglaterra: os Cavaleiros da Távola Redonda que ele reúne vem de diversas partes do planeta e a sua Nova Camelot está localizada em um asteroide. Mas isso é porque ele não está atrelado a uma nacionalidade específica que limite o alcance do seu simbolismo. O final do gibi vai muito além disso: nele, o rei Artur realiza esse potencial.

Isso ocorre em uma cena entupida de significados: o rei Artur usa Excalibur para provocar uma explosão nuclear [o símbolo do poder promovendo uma alteração absoluta na realidade]. O resultado não apenas a morte de Artur e Morgana, mas a desmaterialização do próprio Graal. A sugestão é que ele se tornou, como Excalibur e o próprio rei Artur, em um símbolo.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos - Camelot 3000, de Mike W. Barr e Brian Bolland

A explosão é provocada pela divisão do núcleo do átomo de uma pedra. Ao promovê-la, o rei Artur diz: “Há muitos anos, eu removi Excalibur de uma pedra. Hoje eu a cravarei de volta”. O personagem entende o significado de sua história, e, consequentemente, a concretiza. Ele assegura o sentido à sua tragédia executando-a com as próprias mãos. É um sacrifício pessoal redentor. Também é o final do seu arco pessoal e o início de seu significado universal: o gibi termina com seres alienígenas bizarros empunhando a Excalibur.

Existe uma grande discussão sobre a efetiva existência do Rei Artur — o chamado debate sobre a historicidade do personagem. Depois de ler Camelot 3000, você ainda não vai saber se ele de fato existiu. Mas, como ele em sua versão em quadrinhos, vai saber que isso não importa. Que a Excalibur, o rei Artur e o Santo Graal não são poderosos por terem existido concretamente no mundo real, mas por tê-lo transcendido.

Epílogo: a Comic Art Convention de 1973 e o fim de uma era

A Comic Art Convention de 1973 é lembrada, hoje em dia, pelo que aconteceu nos seus bastidores. Seuling era o organizador do evento quando percebeu o potencial da ideia de Ed Summer. Ele não era uma das atrações.

A convenção, no entanto, contou com um célebre convidado: Fredric Wertham.

Wertham, como vocês devem saber, é o psicólogo que escreveu Seduction of the Innocent. O livro, publicado em 1954, expunha de forma organizada uma tese que Wertham já defendera em artigos de revistas: que os gibis eram um mal social e uma das causas para o crescimento da criminalidade juvenil nos EUA.

Hoje em dia, pode parecer uma tese esdrúxula. Mas esse não era o caso dos anos 50. Em meio ao turbilhão social causado pela ascensão da cultura jovem, o livro de Wertham canalizou uma desconfiança geral que existia contra os quadrinhos. Era, no final das contas, uma linguagem jovem, consumida por jovens, e que não prezava precisamente pela sutileza.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

O poder de tração do assunto foi suficiente para redirecionar o foco de um subcomitê do Senado americano criado para investigar a criminalidade juvenil. Sob o comando de Estes Kefauver, que viria a ser candidato a vide-presente dos EUA em 1956 [na chapa democrata que perdeu para Dwight Eisenhower], o subcomitê foi redirecionado para investigar os próprios quadrinhos.

Aquilo era uma crise que poderia engolir o mero, alguns editores pensaram. Eles não estavam errados. Antes mesmo do subcomitê doSenado, alguns estados [Nova Iorque, Connecticut, Maryland] e dezenas de cidades aproaram leis restringindo ou até mesmo proibindo a venda de quadrinhos. A solução encontrada foi criar uma Motion Picture Association of America para hqs. Uma associação que seria responsável por analisar os gibis publicados pelas editoras filiadas e assegurar, com o seu selo, que o seu conteúdo era adequado para crianças. O resultado foi o Comics Code Authority, o CCA.

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

E o resultado do CCA foi a completa reformulação dos quadrinhos americanos. As regras do CCA eram muito mais restritivas do que as da MPAA. Elas inviabilizavam a publicação de gibis policiais e de terror, dois gêneros que estavam de moda até aquele momento. A EC Comics, editoria que publicava quadrinistas como Wally Wood e Harvey Kurtzman, quebrou. Toda a sua produção era de gibis policiais, de terror, de guerra e de ficção-científica. Ela nunca conseguiria se adaptar a regras que proibiam até mesmo o uso da palavra “terror” no título de uma série.

Como intelectual público que protagonizou o debate, Wertham se transformou no rosto de todo o processo. Até hoje o seu nome é praticamente sinônimo de CCA.

Não existem muitos registros sobre como foi a sua participação no evento. Os comentários, no entanto, são no sentido de que foi um massacre. Exposto às crianças que ele pretendera salvar, agora jovens adultos, Wertham teria sido sistematicamente vaiado. Se viu obrigado a abandonar a sua própria apresentação sem ter conseguido falar. Ele nunca mais apareceria em público, nem escreveria mais sobre quadrinhos.

Wertham, no entanto, não foi convidado para ir a convenção para que os fãs de quadrinhos pudessem participar de um linchamento. Ele fora convidado porque, naquele mesmo ano, lançara um novo livro: The World of Fanzines. Um livro que celebrava o espírito da nascente cultura fandom que tornou possível a convenção na qual ele foi execrado como um “exercício construtivo e saudável da vontade criativa”.

Não é que ele tenha mudado de ideia. The World of Fanzines opera com base na mesma lógica de Seduction of the Innocent.

Em Seduction of the Innocent, Wertham argumentava que a sociedade era violenta. Os quadrinhos eram “apenas” uma forma particularmente grosseira de cultura de massa que apresentava às crianças formas pelas quais elas poderiam catalisar a violência que existia em seu entorno. Isso, por sua vez, era resultado da ganância de seus editores, que estavam dispostos a publicar qualquer coisa que vendesse.

O problema, portanto, era a indústria. De fato, o livro chega a apresentar os próprios quadrinistas como vítimas desse sistema. Eles queriam, conforme Wertham, escrever boas histórias. Mas eram obrigados pelos seus patrões a produzir gibis apelativos de sucesso comercial.

The World of Fanzines, por outro lado, defende que o fandom incipiente rompe com esse esquema. Se ele é menos violento, isso é apenas uma das consequências positivas decorrentes do seu modo de produção. Conforme Wertham, os fanzines substituíam os editores movidos a ganância e que exploravam crianças e movidos a ganância por fãs movidos a paixão que dialogam de forma horizontal com outros fãs. A produção em massa foi substituída por uma escala artesanal quase que movimentada na base do escambo.

Esse não é o único nuance da obra de Wertham que foi engolido pela história. As suas ideias de sobre a cultura de massa foram perceptivelmente influenciadas por Theodor Adorno. Para Wertham, a criação do CCA era uma derrota e equivalia a entregar o galinheiro para as raposas [ele defendia a criação de um órgão federal para controle dos gibi na linha do FDA]. Ele também afirmava que a causa da criminalidade juvenil era social e fazia criticas sistemáticas ao punitivismo penal. Argumentava que a seminudez habitual das mulheres negras dos quadrinhos era uma forma de diminuí-las. Acusava o Super-Homem de fascismo. Tudo isso foi esquecido: Wertham é rotineiramente chamado de fascista, racista e macartista.

Diante disso, o próprio Wertham deve ter sido o primeiro a ficar assombrado com a recepção que recebeu na Comic Art Convention. Como era possível que aqueles jovens criativos e liberados quisessem linchá-lo? Duvido que ele tenha se afastado da vida pública por se sentir ofendido. Ele devia estar é confuso.

Wertham deveria estar confuso porque ele tratava gibis como um manual de instruções. Se Seduction of the Innocent prova alguma coisa, é isso: Wertham era incapaz de entendê-los como algo além de estímulo pavloviano aos sentidos. Ele sugere a possibilidade de se censurar os contos dos Irmãos Grimm; ele faz pouco caso dos críticos que falam em páthos e da catharsis nas hqs de terror. Se ele não era capaz de enxergá-los em uma história em quadrinhos de quatro cores, como poderia reconhecê-los na história de sua própria vida?

Rei Artur, Morgana Le Fay, Phil Seuling, Fredric Wertham e a nova era dos quadrinhos

A sua morte, em 1981, lhe tirou a oportunidade de suprir essa falha. É um tema tratado em muitas histórias em quadrinhos, mas em poucas com a mesma habilidade e clareza do que Camelot 3000, que só começou a ser publicado em 1982.

Seria o gibi perfeito para que ele entendesse que não fora imolado pelos nuances de suas ideias concretas, mas como um símbolo dos efeitos que essas ideias produziram no mundo real. Para que ele entendesse a importância de uma narrativa arquetípica. Para que ele entendesse que fora sacrificado porque os fãs de quadrinhos já tinham desenvolvido os seus códigos, as suas hierarquias e os seus heróis. Que para ter a sua história, eles precisavam de apenas mais uma coisa: um único e eterno vilão.

P. s. confessional

O cânone arturiano é formado por uma cacetada de obras. Para escrever essa resenha, não li nem aquelas que são expressamente mencionadas no texto. Lá pela metade de A Morte de Artur, me dei conta que não conseguiria fazê-lo e que, mesmo que conseguisse, o esforço não faria sentido. No fim, eu não precisaria apenas ler os livros; também teria que interpretá-los para, só então e partindo do duvidoso pressuposto que eu realmente entendi alguma coisa, descobrir se eles eram pertinentes ou não em relação a Camelot 3000.

O que eu fiz, então, foi atalhar. Fui ler o que pessoas mais inteligentes do que eu, capazes de dizer coisas como “Morgana Le Fay é uma versão de uma deusa celta”, escreveram sobre os pontos específicos do cânone que interessavam para a resenha. Vou deixar aqui o registro das obras consultadas não como uma forma de me livrar de eventual garrancho interpretativo [que, te garanto, foi culpa minha], mas como forma de agradecimento.

The Camelot Project, organizado pela University of Rochester
The Arthurian Handbook, de Norris J. Lacey
Consider the place of faith, religious or otherwise, in the Arthurian tradition, de Anna Papadaki
The Myth of Morgan La Fay, de Kristina Perez
The Expression of Catholic Culture in Sir Thomas Malory’s Le Morte D’Arthur, de Robert J. Kearns
Camelot 3000 and the Future of Arthur, de Charles T. Wood
Morgan Le Fay: Shapeshifter, de Jill M. Herbert
The Future King: Camelot 3000, de Dominick Grace

Camelot 3000 Edição de Luxo

Camelot 3000 – Edição de Luxo
Mike W. Barr, Brian Bolland e Tatjana Wood
[Panini, 2010]