A Queda da Grande Babilônia: Berlim, de Jason Lutes

Berlim, de Jason Lutes

A ruína da República de Weimar desde o ponto de vista de René Girard. Uma narrativa metafórica. O mapa imaginativo de uma cidade. A vida de três pessoas comuns. Berlim, de Jason Lutes, soma tudo isso… com balões de pensamento.

1.
O potencial
está lá

Jar of Fools, de Jason Lutes [1993-1994]

Quem vê o belo tijolo que é a edição integral de Berlim, de Jason Lutes, lançada pela Drawn & Quarterly [e, no Brasil, pela Veneta nos próximos meses] não imagina a aflição causada nos leitores pela sua longa publicação original.

As quatro primeiras edições foram lançadas ao longo de dois anos, a contar de abril de 1996, pela minúscula editora canadense Black Eye Productions. Essa era uma editora que nasceu e morreu na década de 90. Ainda que nela tenham sido publicados gibis de quadrinistas que hoje em dia são conhecidos [foi lá, por exemplo, que Ed Brubaker publicou o encadernado de a sua autobiografia em quadrinhos, A Complete Lowlife], a Black Eye era pouco mais do que um CNPJ que publicava hqs auto-editadas pelos próprios quadrinistas. 

A Black Eye já fora a casa da hq anterior de Lutes, Jar of Fools. É a melancólica história de um grupo disfuncional formado por um mágico desempregado, o seu mentor senil, a sua namorada depressiva, um pequeno golpista e a sua filha. Esse gibi, por sua vez, foi originalmente serializado, de forma semanal e entre 1993 e 1994, no jornal The Stranger. O The Stranger , na época, era um semanário alternativo gratuito, criado em 1991 e lido principalmente por universitários [ainda que hoje em dia seja um dos principais jornais de Seattle, tendo inclusive publicado uma matéria ganhadora do prêmio Pulitzer em 2011]. A edição encadernada de Jar of Fools somente saiu pela Black Eye porque Lutes conseguiu financiá-la através da Xeric Foundation — a entidade sem fins lucrativos criada por Peter Laird, co-criador das Tartarugas Ninja, para ajudar quadrinistas em início de carreira.

Jar of Fools, de Jason Lutes

Com o encerramento das atividades da Black Eye, Lutes e Berlim migraram para a editora Drawn & Quarterly. Não é uma editora minúscula como a Black Eye. A D&Q foi a primeira casa de diversas das atuais estrelas dos quadrinhos alternativas americanos, como Joe Matt, Seth, Joe Sacco e Chester Brown. Mas ainda assim é uma editora pequena: fora criada em 1990, por Chris Oliveros, de apenas 23 anos, e lutava para manter-se à frente de seus credores [inclusive em relação ao royalties dos próprios quadrinistas].

Lá, Lutes conseguiu manter uma regularidade, ainda que lenta: novamente, foram 4 edições em 2 anos, além de um encadernado com as 8 edições iniciais — Berlin: City of Stones, lançado em 2000. Mas esse ritmo ficaria ainda mais agônico nas edições seguintes. O próximo encadernado, Berlin: City of Smoke, com as edições 9 a 16 da série regular, somente foi lançado em 2008. Finalmente, as 5 últimas edições sairiam ao longo de… 10 anos: Berlin n. 22, o terceiro encadernado com as edições 17 a 22, Berlin: City of Light, e a edição integral em capa dura: tudo isso somente foi publicado em 2018.

Berlim, assim, foi originalmente publicado em 22 edições de aproximadamente 30 páginas, lançadas ao longo de 22 anos: na média, uma por ano. Cada edição dessas corresponde a um capítulo da obra final.

Pra quem tem uma edição integral na mão, parece tranquilo. Mas existia um público que acompanhou todo esse trajeto. Jar of Fools já contava com a admiração de Scott McCloud. O gibi é utilizada como exemplo de domínio de ritmo e de caracterização em Desvendando Quadrinhos. Berlim foi um sucesso imediato de público e crítica: já em 1997, a série foi indicada ao prêmio Ignatz, na categoria de Outstanding Series. A indicação seria renovada em 2001. Ainda no final dos anos 90, a série já foi lançada na Espanha [em 1999, pela editora Factoria de Ideas]. No início dos anos 2000, na própria Alemanha [em 2003, pela Carlsen Comics]. Os dois primeiros encadernados venderam, juntos e contando as reedições, mais de 100 mil exemplares. 

Eu mesmo descobri Berlim em uma edição avulsa em 1999, e passei a acompanhá-la, com considerável ansiedade, através dos encadernados americanos com o lançamento do primeiro em 2000. A perspectiva pessoal talvez ajude a compreender o que significa uma média de uma edição por ano, por 22 anos: quando descobri Berlim e comprei o primeiro encadernado, estava no ensino médio. Li o segundo um ano depois de concluir o ensino superior. O terceiro, quando já tinha oito anos de experiência no meu segundo emprego como diplomado.

Não existiam muitas alternativas para satisfazer essa ansiedade. Lutes não tem dez hqs em seu currículo. Além de Berlim e Jar of Fools e de nem meia dúzia de histórias curtas publicadas aqui e ali [entre elas a excelente Rules to Live By, publicada pela Dark Horse na coletânea Autobiographix], Lutes desenhou The Fall e escreveu Houdini: The Handcuff King.

O primeiro foi lançado em 2001: é um magnífico conto noir, roteirizado por Ed Brubaker, de aproximadamente 50 páginas. O segundo, em 2007: é, de novo, um conto magnífico, mas agora para jovens leitores, sobre o início do entretenimento de massa e o fim de uma era, desenhado por Nick Bertozzi. Tem umas 100 páginas.

The Fall, de Ed Brubaker e Jason Lutes

Essa agonia é, de certa forma, deliberada.

Lutes decidiu fazer Berlim em 1994, ano em que ele iniciou as pesquisas necessárias para retratar a vida na Alemanha dos anos 30 de forma fidedigna. Essa decisão, em primeiro lugar, teve a forma de uma desistência.

Como bom leitor de quadrinhos que era, Lutes desistiu de acompanhar hqs em duas oportunidades. A primeira delas foi como leitor. Depois de uma infância entre gibis de caubói desenhados por Jack Kirby e álbuns de Asterix e Tintin [o seu pai era professor universitário de literatura francesa] e uma adolescência de revista Heavy Metal, Lutes entrou para a curso de Belas Artes da Rhode Island School of Design. Deixou, na época, de ler quadrinhos: o seu objetivo era produzir Art-ê.

Como acontece com diversos quadrinistas que traçam essa trajetória, por sua vez, o curso de Belas Artes fez com que Lutes desistisse… das Belas Artes. Ainda que a Rhode Island School of Design seja uma instituição de prestígio, e que Lutes, conforme ele mesmo, tenha aprendido muito por lá, o diploma que ele obteve em 1991 parece ter sido no curso de desilusão: “o curso de artes está cheio de artistas que se especializam na arte do papo furado”, diria ele em uma entrevista para o The Comics Journal.

Decepcionado com as Belas Artes, Lutes se mudou para Seattle com o objetivo de trabalhar na Fantagraphics [a principal editora de quadrinhos alternativos dos EUA]. É um desses casos em que lágrimas são derramadas por preces atendidas. Lutes foi colocado para trabalhar no Eros Comix, o selo de pornografia hardcore em quadrinhos que era, como ele descobriu, o que sustentava a editora no seu dia a dia.

“Essa foi provavelmente a grande desilusão. Esse era o feijão com arroz. Não eram os irmãos Hernandez: ainda que eles gerassem dinheiro para a empresa, eles não a mantinham de pé. Nem o Daniel Clowes. Caras como Pete Bagge não eram aqueles que traziam o dinheiro que sustentava a Fantagraphics. Então isso era uma grande parte.

Naquela época e hoje em dia eu não tinha problemas com pornografia per se. Lembro que Talk Dirty do Matthias Schultheiss foi um excelente gibi da Eros. Foi uma das boas coisas que a Eros fez. É excelente, de verdade. Mas a maioria das coisas era… uma porcaria. E isso era deprimente. É uma coisa publicar pornografia e ganhar dinheiro com isso, mas publicar pornografia RUIM…”

Essa decepção levou Lutes a uma decisão. Essa decisão se manifestou, de novo, como desistência:

“O tipo de quadrinhos sobre os quais nós estamos falando são financeiramente, como é a palavra?, inviáveis; não existe recompensa imediata; é um meio incrivelmente intensivo em relação ao tempo, porque você faz tudo sozinho. Todas essas coisas contribuem para o fato de que o meio tem sido muito limitado”. 

Mas essa desistência é complexa. Ela também é o reconhecimento de um potencial:

“O tempo todo que eu passei empolgado com os quadrinhos, e investigando eles, e envolvido com eles, sentia que tinha alguma coisa lá que eu estava tentando alcançar, que eu sei que está lá. Vislumbrava isso no trabalho de outros cartunistas, e eventualmente eu vou provar a satisfação de eu mesmo conseguir fazê-lo. Não sei se mais alguém percebe isso na outra ponta… mas é tremendamente empolgante saber que o potencial está lá. Agora mesmo, sei que o potencial está lá. A questão é alcançá-lo e usá-lo”.

Lutes deixou o emprego na Fantagraphics, começou a lavar pratos e fazer quadrinhos tentando alcançar esse potencial. Formou um pequeno grupo com outros quadrinistas, como Tom Hart, Jon Lewis e Ed Brubaker [recém chegado a Seattle, também na tentativa de se tornar quadrinista]. Eles discutiam as suas páginas, avaliavam-se criticamente, ajudavam-se na auto-edição de gibis.

A escala era amadora. Mas Lutes, aos 28 anos, decidira que se tornaria um starving artist: viveria de miojo em um quitinete, mas destaparia o potencial dos quadrinhos nem que fosse apenas para ele mesmo.

Em diversas entrevistas, Lutes diz que, quando decidiu começar a fazer Berlim, só sabia de duas coisas sobre o projeto: que ele teria 600 páginas, publicadas ao longo de 14 anos, e que a história seria ambientada na República de Weimar.

Ele não sabia falar ou ler alemão. Não conhecia o país. Decidiu ambientar a sua história na Alemanha dos anos 20 depois de ver uma propaganda para um livro de fotografias chamado Bertolt Brecht’s Berlin e de assistir o filme Cabaret, com a Liza Minnelli.

Lutes não sabia muita coisa sobre Berlim. Mas sabia que, qualquer que fosse o assunto que o seu projeto terminasse por abordar, poderia ser expresso através da linguagem dos quadrinhos.

2.
A gênese imbecil
dos ídolos sangrentos

Os Pilares da Sociedade, de George Grosz [1926]

O plano original de Lutes era concluir Berlim em 14 anos: o cálculo é que ele conseguiria produzir uma página por semana. Essa previsão, surpreendentemente, se revelou otimista. A hq, como já foi comentado, foi concluída em 2018, 22 anos depois do início de sua publicação.

Esse fato, por sua vez, repercutiu de forma importante na recepção crítica da conclusão da hq. A história de Berlim transcorre entre os anos de 1928 e 1933. Trata-se do período em que ruiu a República de Weimar, o sistema de governo implementado na Alemanha após a abdicação e exílio do imperador Guilherme II, como consequência da derrota na Primeira Guerra Mundial.

Esse também é o período em que Hitler e o Partido Nazista [Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, ou NSDAP] chegaram ao poder. A última página de Berlin: City of Smoke [o volume 2 da série] mostra o anúncio do resultado da eleição de julho de 1932, a primeira grande vitória desse partido em uma eleição federal. Com pouco mais de um terço dos votos totais, dobrou o número de cadeiras ocupadas no parlamento e se tornou o principal partido do Reichstag [ainda que sem conquistar a maioria].

Por outro lado, 2018 é o ano seguinte ao do primeiro da presidência de Trump nos EUA. Também é o ano seguinte ao da manifestação Unite the Right em Charlottesville.

Isso, por sua vez, condicionou a percepção que Berlim recebeu da crítica por ocasião de sua conclusão. A hq foi celebrada como uma peça de propaganda anti-fascista. Essa interpretação por vezes era implícita, mas frequentemente explícita. Em uma determinada entrevista, perguntaram diretamente para Lutes se Berlim era uma forma de dizer “It’s ok to punch a nazi”. 

É verdade que esse ponto de vista é cronologicamente indefensável. Berlim, como dito antes, foi primeiramente publicado em fascículos mensais a partir de abril de 1996. Quase três quartos da história foram concluídos com o lançamento do segundo encadernado, em 2008.

O nazismo, de fato, não é nem mesmo uma presença constante na hq. A história acaba antes de Hitler se tornar chanceler da Alemanha. O governo nazista, em Berlim, é mais uma promessa ominosa do que uma realidade: em entrevistas, Lutes o compara com a ameaça de guerra nuclear nos anos 80; a “very dark future”.

Isso, de fato, é perceptível de forma mais óbvia na primeira página do gibi. Nela, a protagonista da história, uma jovem estudante de arte chamada Marthe Müller, chega à cidade de trem em um compartimento que divide com um jovem nazista dormente — esse é o status do nazismo na história: um jovem dormente.

Berlim, de Jason Lutes

Suásticas, pro outro lado, somente começam a aparecer de forma recorrente na página 97 do terceiro encadernado, Berlin: City of Lights. Antes disso, ela são até mesmo deliberadamente omitidas:

Mas também é verdade que Berlim não é uma hq apolítica. Como eu disse, a história transcorre entre 1928 e 1933, em Berlim. Esse é o período de ruína da República de Weimar, ou seja, da tentativa de se implementar um sistema democrático na Alemanha pós-Primeira Guerra. No primeiro volume da série, City of Stones, o massacre de Blutmai tem um papel importante. Trata-se de um acontecimento histórico e um exemplo de brutalidade policial. A morte de Gustav Stresemann e as eleições de julho de 1932, por outro lado, são acontecimentos importantes do segundo volume, City of Smoke.

O nazismo, finalmente, pode ser uma ameaça dormente. Mas é uma ameaça existente, e a sua iminência é constantemente sugerida. Na capa das edições individuais, por exemplo, existe o que parece ser apenas duas barras pretas que formam um “V”. 

Berlim, de Jason Lutes

Mas a capa, na verdade, é dupla. Com a capa aberta, é possível perceber que essas barras pretas são parte dos braços de uma suástica.

Esse mesmo recurso reaparece na capa da edição integral americana [infelizmente, não utilizado na versão da Veneta]:

A melhor forma de interpretar o papel que esses acontecimentos têm em Berlim, no entanto, não é como uma analogia ao momento presente. A melhor forma de interpretá-los é através das ferramentas que nos fornece o filósofo francês René Girard: aqueles acontecimentos não nos são apresentados por Lutes de para fazer de Berlim uma hq atual. Eles nos são apresentados para fazer de dela uma hq eterna.

Como se sabe, Girard diz que o comportamento humano é mimético: tomamos outras pessoas por modelo e imitamos o seu comportamento. Desejamos o que elas desejam precisamente porque elas o desejam. 

No momento em que esse desejo se projeta sobre o mesmo objeto, a imitação se torna rivalidade: não há mais imitador e modelo, mas apenas antagonistas. A crise se instala quando essa situação se espalha pela sociedade sem encontrar métodos de controle institucional que sejam suficientes para contê-la: o próprio objeto de desejo é destruído, e o comportamento que passa a ser reproduzido é a própria rivalidade.

Essa rivalidade conflagrada, por sua vez, destrói as diferenças [crise de indiferenciação], e, consequentemente, a hierarquia estabelecida [crise de hierarquia]. A resolução arcaica para essa crise exige o sacrifício de um inocente, que a personifique, pelas mãos da multidão.

Em Berlim, Lutes faz referências a todas as etapas desse processo.

2.1 Berlim em crise

Em Berlim, Lutes nos mostra uma sociedade em crise, tanto pela indiferenciação, quanto pela consequente destruição da hierarquia estabelecida.

Isso aparece de forma anedótica logo no primeiro capítulo. Ao chegar em Berlim, Marthe se surpreende ao observar um pedinte veterano da Primeira Guerra Mundial. Kurt Severing, jornalista berlinense que ela conheceu no trem que lhe trouxe a cidade e co-protagonista da história, não percebe essa distinção: trata o veterano como um pedinte comum. Existe, nisso, indiferenciação; e, como sabemos pela percepção de Marthe, crise de hierarquia: um soldado veterano da Primeira Guerra Mundial, símbolo da ordem germano-prussiana pré-Weimar, não deveria estar nessa situação.

O próprio título do primeiro encadernado, City of Stones, é um exemplo disso. Ele é uma referência a um belo monólogo de Kurt Severing, no final do terceiro capítulo. Nele, Kurt expressa através de uma metáfora a possível dissolução de hierarquia que ele contempla. Berlim pode se tornar um muro, no qual cada pedra é colocada “com cuidado e com propósito”, ou uma “pilha de pedras”.

Também existem outros elementos menos pontuais. De novo, o título do segundo encadernado, City of Smoke, parece, mas dessa vez por si só, uma referência à indiferenciação: a fumaça tem um caráter etéreo e desprovida de forma. Isso, por sua vez, retrata o próprio tema das histórias desse volume. Elas nos mostram a vida noturna da Berlim da época, concentrando-se na ambiguidade sexual e na ascensão do Jazz. Esse último fenômeno, por sua vez, é apresentado como um desafio à hierarquia:

Berlim, de Jason Lutes

Esse caráter etéreo e desprovido de forma também é o da própria ameaça nazista. Já comentei a ausência de suásticas, cuja forma é apenas sugerida. Mas essa sugestão as vezes se manifesta na grade de quadrinhos, como se o nazismo fosse uma lógica em formação.

Ao longo da história, mas principalmente no primeiro encadernado, Lutes ressalta em diversas oportunidades a violência da polícia de Berlim. Na hq, isso tem o seu auge no retrato que Lutes faz do Blutmai — o assassinato de diversos simpatizantes do Partido Comunista Alemão [Kommunistische Partei Deutschlands, ou KPD] durante uma manifestação convocada para o dia 1º de maio de 1929 e proibida pelo governo.

Existe, nisso, uma evidente perda de sentido: a polícia deveria usar a força de forma pontual para proteger os seus cidadãos, e não de forma indiscriminada para persegui-los. De forma a caracterizar o caráter hierárquico dessa disfunção, ela é apresentada como um conflito geracional: os policiais jovens, mais violentos, se impõem aos veteranos.

Mas o interesse de Lutes não está em simplesmente censurar o comportamento da polícia. Ele monta um quadro complexo ao citar um personagem histórico como o responsável pela organização da repressão à manifestação: Bernhard Weiss.

Foto de Emil Orlik.
[fonte]

Weiss era, ele mesmo, uma vítima da crise de indiferenciação. Como explica Daniel H. Magilow, na sua resenha de Berlim para o The American Historical Review

“Como judeu, Weiss era alvo frequente da virulência nazista, mas como integrante do Deutsche Demokratische Partei [DDP], partido de esquerda pró-República de Weimar, ele era para a esquerda radical um ‘social-fascista’, cúmplice do sistema de exploração da burguesia”.

Ao colocar uma figura como Weiss, que passaria para a história como o grande adversário de Goebbels em Berlim, no centro da repressão que causou a morte de manifestantes comunistas no Blutmai, Lutes está enfatizando a situação do indivíduo submetido à crise da República de Weimar.

Nesse mesmo sentido, a principal história de City of Stones é a de Gudrun Braun, uma mãe de família. No curso do encadernado, no entanto, essa família é dissolvida. Os motivos são ambíguos: existe uma desavença política [Gundrun demonstra um interesse periférico nas ideias comunistas, o seu marido, Otto Braun, é um simpatizante nazista], mas a própria atribui a separação ao desemprego.

Com a separação, Gundrun se torna responsável pelas filhas do casal. Otto, pelos filhos. Uma das filhas, Sylvia, se tornará uma militante de um grupo paramilitar comunista ao longo da série; Otto e seus filhos, camisas-marrom do Partido Nazista. A dissolução da unidade familiar é outro exemplo de crise hierárquica: é a falência da instituição social mais básica. 

O interesse de Gundrun pelo comunismo como ideia não se torna mais do que periférico. Ela se envolve com o movimento por encontrar em uma comuna uma alternativa para o seu problema habitacional. Ou seja, para substituir a sua família, atraída por conveniência. Integrar a comuna, dissolver-se na sua multidão, é a alternativa disponível para a sobrevivência. Em O Bode Expiatório, René Girard fala que a crise de indiferenciação provoca…

“o enfraquecimento de instituições normais e favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer uma pressão decisiva sobre elas”.

Só por isso, a história de Gundrun Braun já seria importante. Mas Lutes também faz com que ela seja uma da vítima anônima da repressão no Blutmai.

Gundrun, como acontece com quase todos os protagonistas de Berlim, é uma pessoa comum: a crise da República de Weimar dissolve a sua família e, de certa forma, a sua própria individualidade ao integrá-la em uma multidão. Ela, de fato, morre sem compreender: participou da manifestação recebendo garantias de seus vizinhos de comuna de que a polícia não interviria, conforme informações recebidas — o diálogo em que isso lhe é assegurado é intercalado com cenas dos policiais recebendo instruções para reprimir a manifestação. Essa repressão é organizada por Weiss: o chefe de polícia que é acusado pelos comunistas de ser nazista, e pelos nazistas de ser judeu.

Em Berlim não há hierarquia, diferenças ou diálogo. Há, apenas, dissolução na massa. A cidade está em chamas e as pessoas morrem sem saber o porquê.

2.2 A escalada para os extremos

A escalada para os extremos é uma ideia desenvolvida por Girard em Rematar Clausewitz: Além da Guerra. Nesse livro, ele comenta, com Benoît Chantre, Da Guerra, o conhecido ensaio escrito por de Carl von Clausewitz. Para explicá-la, Girard cita o seguinte trecho do livro do militar:

“Como o uso da força física na sua integralidade não exclui de modo nenhum a colaboração da inteligência, aquele que se utiliza sem piedade desta força e não recua perante nenhuma efusão de sangue ganhará vantagem sobre o seu adversário se este não agir da mesma forma. Por esse fato, ele dita a sua lei ao adversário, de modo que cada um impele o outro para extremos nos quais só o contrapeso do lado adverso traça limites.

Numa palavra: mesmo as nações civilizadas podem ser arrebatadas por um ódio feroz. […] Repetimos, pois, a nossa afirmação: a guerra é um ato de violência e não há nenhum limite para a manifestação dessa violência. Cada um dos adversários executa a lei do outro, de onde resulta uma ação recíproca, que, enquanto conceito, deve ir aos extremos”.

Essa escalada, por sua vez, é decorrente do surgimento de uma rivalidade mimética e a consequente crise de indiferenciação: a transformação de uma mediação externa [em que sujeito, modelo e objeto são independentes e bem definidos] em mediação interna [em que modelo e sujeito se confundem e o objeto é destruído]. 

Michael Kiwan em Teoria Mimética –  Conceitos Fundamentais, explica a origem dessa transformação:

“Quando a distância entre o sujeito e o modelo é maior, não havendo perigo de entrarem em competição (quer porque o modelo é um personagem fictício, quer porque há barreiras sociais ou culturais suficientes entre eles), Girard fala de mediação ‘externa’. Quando o sujeito e o modelo ocupam o mesmo espaço social, existindo a possibilidade de competirem entre si, temos o mais perigoso tipo de mediação, a mediação ‘interna’”.

É importante perceber que os rivais que participaram da escalada ainda respondem ao princípio mimético. Nas palavras de Clausewitz, “cada um dos adversários executa a lei do outro”. Ou seja, eles se imitam, em um processo que, nas palavras de Girard, “faz com que os adversários fiquem cada vez mais semelhantes”.

A escalada para os extremos, portanto, acentua a rivalidade; mas a reciprocidade assemelha o comportamento dos rivais. Assim, e de novo conforme Girard diz em Rematar Clausewitz, a reciprocidade “só pode ser percebida por um olhar exterior ao conflito, porque quem está dentro dele deve sempre crer na própria diferença”.

Esse processo aparece em Berlim de pelo menos duas formas. A primeira, mais óbvia e constante, é a rivalidade entre comunistas e nazistas. Lutes faz com que seja perceptível a reciprocidade que serve de motor para a disputa. Ela é apresentada de forma crescente e espelhada. As diferenças entre os dois grupos são internas, percebidas apenas pelos próprios rivais.

Assim, o discurso de Goebbles, líder nazista em Berlim, no final do capítulo 14, é semelhante ao de Ernst Thälmann, líder do partido comunista alemão, no início do capítulo 15. São discursos ao ar livre, em um evento fúnebre, que têm por objetivo incitar as massas:

Os paramilitares nazistas e comunistas, que se enfrentam em frequentes distúrbios de rua, se comportam de forma violenta e espelhada:

O espelhismo, finalmente, também se apresenta na vida de Gundrun, a mãe de família que de certa forma protagoniza os oito primeiros capítulos de Berlim. O seu marido é um simpatizante nazista que se chama Otto Braun. Após a separação do casal, Gundrun se muda para a comuna e se envolve com o movimento comunista por influência de um simpatizante chamado Otto Schmitd. É o mesmo nome; um palíndromo.

O extremismo dessa disputa, por outro lado, nos é mostrado por Lutes através de acontecimentos históricos. 

Assim, Kurt Severing vislumbra na morte precoce de Gustav Stresemann o fim da República de Weimar. Stresemann, do Partido do Povo Alemão  [Deutsche Volkspartei, ou DVP] foi Ministro das Relações Exteriores da Alemanha entre 1923 e 1929 e um dos responsáveis pelo sucesso inicial da república. O Plano Dewes, que tirou a Alemanha da crise inflacionária de 1923, lhe é atribuído e lhe garantiu o Prêmio Nobel da Paz de 1925. Ele poderia fazer do DVP uma alternativa viável e não-extremista ao NSDAP: um partido nacionalista pró-Weimar, que disputaria o poder com a DDP dentro dos limites do regime. Com a sua morte, essa alternativa foi perdida.

Da mesma forma, é no contexto de primazia do extremismo, decorrente da morte de Stresemann, que Lutes mostra, no final de City of Smokes, o resultado da eleição de julho de 1932. Como foi antes comentado, nessa eleição o NSDAP conquistou 230 das 608 cadeiras do parlamento alemão, o Reichstag. Parte desses votos seria dirigida ao DVP se Stresemann não tivesse morrido. Os comunistas do PKD, por outro lado, também aumentaram a sua presença de 77 para 89 cadeiras. Os dois partidos, portanto, ocupavam 319 das 608 cadeiras do parlamento: 52%. 

Ou seja, a eleição de 1932 fez, pela primeira vez na breve história da República de Weimar, que o Reichstag fosse majoritariamente formado por partidos que se opunham à sua existência, seja por considerá-la um regime infiltrado por traidores e judeus, seja por considerá-la um instrumento de opressão burguesa controlada por sócio-fascistas. Era o país entre dois extremos que competiam entre si pela destruição do suposto objeto de desejo [a liderança da República].

Lutes não nos mostra apenas a escalada para os extremos no âmbito político de Berlim. Mais pontual, mas também instigante e de forma a ilustrar a escalada em um espectro mais abrangente, ele também a exemplifica em relação à arte.

O capítulo 2 do primeiro livro de Berlim inicia com Marthe assistindo uma aula na Academia das Artes de Berlim [Akademie der Künste]. Logo ela se dirige para o terraço do prédio com os seus colegas, oportunidade em que eles iniciam uma discussão que opõe dois movimentos artísticos: o Expressionismo e a Nova Objetividade.

A existência dessa rivalidade, novamente, é um fato histórico. Guilherme II, imperador alemão entre 1888 e 1918, era um entusiasta das artes. Ele mesmo era um artista amador, autor de pequenos quadros, pintados de forma detalhada e objetiva, de barcos de guerra. Durante o seu império, teve a pretensão de conduzir e definir o que seria a arte alemã. Ela deveria ser grandiosa, nacionalista, militarista, triunfalista, neo-barroca. Enfim, condizente com o status que pretendia associar ao próprio Império Alemão. O estilo tornou-se conhecido como arte guilhermina.

O Kaiser Guilherme II, por Max Koner [fonte]

Foi como oposição a arte guilhermina que o Expressionismo surgiu. Ele era, em palavras do próprio Guilherme II que seriam tristemente repetidas no futuro, “arte degenerada” e “um perigo para a juventude”. Era a primazia do espírito expressada através de um estilo marginal, pacifista e apocalíptico.

O poeta expressionista Jakob van Hoddis exemplifica muito bem algumas dessas características. Van Hoddis era um autor marginal: de fato, passou parte considerável de sua vida internado em instituições psiquiátricas e era, como diversos outros artistas expressionistas, judeu. A sua obra mais conhecida é o caótico poema Weltende [O Fim do Mundo]. Publicado em 1911, ele é uma sequência de observações cataclísmicas fragmentadas que não seguem um nexo lógico perceptível. Na tradução de Claudia Cavalcanti:

O chapéu voa da cabeça do cidadão,
Em todos os ares retumba-se gritaria.
Caem os telhadores e se despedaçam
E nas costas — lê-se — sobe a maré.

A tempestade chegou, saltam à terra
Mares selvagens que esmagam largos diques.
A maioria das pessoas tem coriza.
Os trens precipitam-se das pontes.

Outros expressionistas eram anti-guilherminos de forma ainda mais explícita. Franz Pfemfert, editor do semanário Die Aktion, publicava obras de escritores franceses e russos mesmo após o início da Primeira Guerra Mundial [em 28 de julho de 1914]. Nas palavras do escritor francês Romain Rolland, citado pelo crítico Lionel Richard, também francês, no livro Del expressionismo al nazismo:

“o exemplo mais assombroso de este amplo diletantismo nos é apresentado pela Die Aktion de Berlim, dirigida por Franz Pfemfert. Este semanário já publicava, em setembro de 1914, obras francesas e russas. Em outubro de 1914, homenageia a Péguy, publicando o seu retrato na capa. Em novembro de 1914, apresentava a Francis Jammes e André Gide”.

Uma parte considerável do movimento, por sua vez, é definida pela oposição sistemática. Nas palavras do poeta Johannes R. Becher [citado no mesmo livro de Lionel Richard]:

“Não nos contentávamos com procurar novas variações insólitas que corrigissem as expressões usadas; a nossa atitude contestatória nos impulsionava, de forma grotesca para não dizer ilógica, a destrinchar o próprio idioma, sob o pretexto de que estava nas mãos dos opressores e dos belicistas; considerávamos proibidas as rimas absolutas e o que se costumava usar, de forma provocadora, era a assonância; era uma honra pecar contra as regras da gramática que desde a escola eram alvo do nosso ódio”.

No entanto, com a derrota alemã na primeira guerra, a arte guilhermina tornou-se imediatamente obsoleta: a destruição da guerra e a abdicação de Guilherme II, mais parecida com uma fuga, evidenciaram a farsa de seu triunfalismo. O Expressionismo, por outro lado, surgiu como o estilo artístico da Alemanha derrotada: um estilo apocalíptico para uma sociedade que vira o fim do mundo. 

Mas o Expressionismo não era um novo projeto estético coerente e uniforme. Era a denominação que se dava para uma série de artistas que concordavam, apenas, na necessidade de se construir um novo paradigma para as artes, agora de caráter subjetivo.

Nas célebres palavras de Ernst Ludwig Kirsnher, um dos precursores do movimento [participou do grupo Die Brücke, criado em 1905], “qualquer um, que expresse diretamente e sem dissimulação, o que lhe impulsiona a criar, é um de nós”. Como explica Norbert Lynton, no livro Conceptos de arte moderno [organizado por Nikos Stangos], os expressionistas…

“esperavam encontrar na nova arte que defendiam, em contraposição ao realismo e ao idealismo vazio do século XIX, o que eles chamavam de Durchgeistigung, que cada ação estivesse carregada de sentimento espiritual, de alma”. 

A ausência de um projeto estético coerente se tornou ainda mais evidente com o novo status do movimento. Nas palavras de Peter Gay, em Weimar Culture: “eles eram rebeldes com uma causa, mas sem um objetivo definido ou concreto”. Antes unido pela causa anti-guilhermina, durante a República de Weimar o Expressionismo rapidamente se fragmentou em diversos “ismos”, formados por artistas que ainda buscavam a multiplicidade de pontos de vista, a revolta, e a busca por um novo paradigma estético. 

Agora, no entanto, esses movimentos se apresentavam como anti-expressionistas: o Expressionismo era, no final das contas, a nova concepção vigente. O movimento dadaísta ilustra esse paroxismo perfeitamente. Conforme manifesto assinado por diversos artistas que lhe são associados [Tristan Tzara, George Grosz, Hugo Ball], transcrito no livro de Lionel Richard:

“Por acaso o expressionismo culminou a nossa ânsia por uma arte que desse oportunidade aos nossos mais vitais interesses? Não, não, não! Por acaso os expressionistas culminaram a nossa ânsia por uma arte que fizera arder em nossa própria carne a essência da vida? Não, não, não! Sob o pretexto de representar a vida interior, os expressionistas se reuniram na literatura e na pintura como uma geração que desde hoje aspira avidamente a receber as honras da história da literatura e da história da arte, e que apresenta a sua candidatura para um glorioso reconhecimento por parte da burguesia. 

Contra a atitude estético-ética! Contra a abstração sem sangue do expressionismo! Contra as mentes literárias e as suas teorias que pretendem melhorar o mundo!”

Essa situação, no entanto, fez surgir um paradoxo. Diversos desses movimentos anti-expressionistas eram formados por ex-expressionistas: van Hoddis, hoje, é considerado um precursor do surrealismo; Tristan Zara e Hugo Ball abriram a Galerie Dada com a ajuda da revista Der Sturm, semanário que competia com a Die Aktion pela posição de principal revista expressionista [as duas se diferenciavam pela ênfase: a primeira era mais artística; a segunda, política].

Esse paradoxo, no entanto, era interno. As divergências não costumam ser externamente percebidas. Dentre os estilos artísticos, o Expressionismo se tornou um dos mais difíceis de se definir: frequentemente é apresentado como “o estilo da República de Weimar”.

Assim, Lotte H. Eisner dedica parte considerável de A Tela Demoníaca para diferenciar filmes efetivamente expressionistas daqueles que apenas são assim considerados. Principalmente a partir de 1933, e de forma bastante trágica, todos eles seriam novamente agrupados pelos nazistas no rótulo “arte degenerada”. Van Hoddis faleceu em um campo de concentração em 1942; Kirchner teve as suas obras banidas e se suicidou em 1938, na Suíça. Até mesmo Emil Nolde, precursor do movimento expressionista que foi filiado ao partido nazista, foi perseguido e censurado. É como se Expressionismo fosse sinônimo de arte moderna alemã, de forma a englobar até mesmo aqueles que a ele se opuseram nos anos 20.

É diante dessa contradição entre percepção externa e divergências internas que a oposição que Lutes faz entre Expressionismo e Nova Objetividade deve ser entendida. 

A Nova Objetividade [Neue Sachlichkeit] é um dos movimentos de oposição ao Expressionismo surgidos na Alemanha dos anos 20, que enxergava na “primazia do espírito” dos expressionistas uma afetação burguesa. 

Ao mesmo tempo, e de novo conforme Lynton, “é difícil traçar linhas de separação bem definidas entre a obra de [Max] Beckmann, Otto Dix e outros, e as obras figurativas da Die Brücke”. Não por acaso, ele os incluiu no ensaio relativo ao Expressionismo. No seu Weimar Culture, Gay também se refere a esses artistas dentro do seu capítulo “A Revolta do Filho: os Anos do Expressionismo”. Ou seja, são tratados como uma variedade daquilo ao que em tese se opunham. 

Isso não é perceptível apenas na forma pela qual a Nova Objetividade é descrita como um movimento em manuais de arte. Também é perceptível na biografia de Beckman, Dix e George Grosz, os três principais artistas que lhe são associados.

Gay, no seu livro, trata a recusa do primeiro ao Expressionismo como um paradoxo: “um dos maiores pintores de todos os tempos, que tem uma dívida evidente à visão Expressionista, repudiava esse rótulo para si mesmo com orgulho; ainda em 1922, no meio dos anos Expressionistas, ele descartou ‘esse negócio de Expressionismo’ como um assunto ‘meramente literário e decorativo’”.

O verdadeiro nome de Grosz, por sua vez, é Georg Ehrenfried Groß; George Grosz é uma alcunha adotada para desvincular-se da Alemanha e associar-se a um internacionalismo apátrida. É, evidentemente, um repúdio à Germania guilhermina.

Finalmente, Dix era um veterano da Primeira Guerra Mundial com considerável experiência na linha de combate: participou da Batalha do Somme e recebeu a Cruz de Ferro em 1918. Mas é evidente o sentimento anti-guerra de suas primeiras obras. Elas tratam a experiência através de imagens escuras e disformes, como um pesadelo. Essa também é uma estética facilmente associável ao Expressionismo.

Tropa de ataque avança sob gás, de Otto Dix [1926]

É a essa contradição que Lutes faz referência ao citar o conflito entre Expressionismo e a Nova Objetividade em Berlim. Talvez por ser mais conhecida, ele deixe implícita a associação externa entre os movimentos; é o conflito interno que ele trata de forma expressa. É o contrário do que ele faz ao tratar da relação entre comunistas e nazistas: nessa rivalidade, ele dá por pressuposto que o leitor conhece a divergência interna entre os movimentos e nos mostra, de forma explícita, a semelhança externa.

Ao enfatizar que a rivalidade que existe entre nazistas e comunistas e a que existe entre Expressionismo e Nova Objetividade ocupam o mesmo espaço [as ruas de Berlim, o corpo de estudantes da Academia de Artes], bem como a competição existente entre os grupos, Lutes nos mostra uma mediação interna. Ao mostrar esses grupos em conflito, ele nos diz que essa mediação interna já se transformou em rivalidade mimética.

Assim, portanto, Lutes traça um panorama completo da escalada para os extremos. Ele nos mostra como ela se apresenta na política e na arte. Destaca como ela é percebida externa e internamente. Nos mostra as suas origens como mediação interna e a sua transformação em rivalidade — e nos mostra como essas rivalidades forneciam o combustível do fogo entrópico da própria República de Weimar.

É o cenário, conforme Girard, para o sacrifício de um bode expiatório.

2.3 O Bode Expiatório

A violência que a escalada para os extremos suscita exige uma válvula de escape. Ela surge quando a reciprocidade do comportamento dos extremos faz com que eles se unam contra uma vítima. Essa vítima é o bode expiatório. Sobre ele se projeta a culpa pela crise;  contra ele é dirigida a violência da sociedade.

Essa perseguição, por sua vez, canaliza o conflito para fora da sociedade. Permite, assim, que ele seja resolvido. Não por acaso, o bode expiatório pode se transformar em salvador: o seu sacrifício permite que a harmonia social seja restabelecida. 

De todas os elementos girardianos de Berlim, esse talvez seja o mais importante — pela sua relativa ausência. No livro O Bode Expiatório, Girard descreve as características que favorecem a identificação pela turba daqueles que vão responder pela crise da sociedade. Elas não estão presentes em nenhum personagem da hq. Berlim não nos mostra o fim de sua crise: na hq, o mecanismo do bode expiatório não é executado.

Existem, no entanto, imolações desleixadas, líderes dispostos a usar sacrifícios para construir uma nova sociedade e, principalmente, vítimas inocentes.

Dois personagens, Theo Müller e Horst Wessel, e uma família judia, os Schwartz, nos mostram isso.

a) Theo Müller

Theo Müller é o irmão mais jovem de Marthe Müller, co-protagonista de Berlim. Ele somente aparece na história em três oportunidades. Quando Marthe está a caminho de Berlim, Kurt lhe pergunta se ela tem medo da cidade. Marthe, então, se lembra de um soldado, que depois descobriremos ser Theo. A forma pela qual Lutes nos mostra a lembrança de Marthe é engenhosa: ele está “na cabeça” de Marthe.

A posição da figura de Theo, por outro lado, lembra O Chasseur na Floresta [Der Chasseur im Walde], belo quadro de Caspar David Friederich, de 1814:

O Chasseur na Floresta, de Caspar David Friederich

Reencontramos Theo no delírio de um soldado veterano bêbado, ainda no primeiro volume de Berlin. Nesse delírio, descobrimos que esse soldado presenciou a morte de Theo em uma batalha da Primeira Guerra Mundial, três dias depois de alistar-se.

Finalmente, Theo reaparece em um fragmento de conversa de Marthe com Kurt. Nessa oportunidade, descobrimos, apenas, que ele era seu jovem irmão, falecido em combate, fato que lhe motivou a deixar a sua cidade natal [Colônia].

Como se vê, Theo aparece em Berlim em poucas oportunidades [menos de 25 quadrinhos, em um gibi de mais de 500 páginas]. Mas essas oportunidades são extremamente carregadas de simbolismo.

Theo, em primeiro lugar, personifica a própria Alemanha que foi à guerra: existe um evidente impulso romântico/nacionalista no fato dele ter se alistado no mesmo dia em que atingiu a idade legal para fazê-lo. 

Por outro lado, a ingenuidade dessa decisão é enfatizada por Lutes em pelo menos dois momentos. Primeiro, ao fazer de Theo o irmão mais jovem de Marthe. Segundo, ao colocá-lo, na batalha, do lado de um veterano que, em seu delírio, não se abala nem com a morte cruenta de sua própria mãe. Trata-se, nos dois casos, de um contraste que enfatiza a sua inexperiência. Theo se alistou no exército por estar disposto a sacrificar a sua vida pela Alemanha, sem saber que sacrifícios são cruentos, não gloriosos.

Ao repetir a imagem de O Chasseur na Floresta, por sua vez, Lutes enfatiza a inevitabilidade do destino fatal de Theo. No quadro de Friederich, um cavaleiro francês sem rosto [o chasseur do título] se torna insignificante diante da majestosidade romântica da floresta negra alemã. Lutes, por outro lado, faz de Theo um soldado alemão sem rosto pronto para enfrentar a escuridão da guerra. Ao fazer isso, Lutes também gera empatia pelo cavaleiro francês [inimigo da Alemanha naquela oportunidade]: ele é um duplo de um jovem soldado alemão.

Finalmente, Theo morre ao abandonar a relativa segurança de uma trincheira, contra os conselhos do soldado veterano, para resgatar um amigo que se alistou com ele. Ele se ofereceu, portanto, em sacrifício. 

Entre a ingenuidade e o sacrifício, é possível atribuir a sua morte o caráter da imolação de um cordeiro — ou seja, o sacrifício do bode expiatório. No entanto, é evidente que o mecanismo não produz o resultado esperado: a crise persistiu, como vemos em Berlim.

Não está claro, na hq, porque isso aconteceu. É possível que seja pela ausência ruptura entre a vítima e a comunidade. Em tese, o crime cometido por Theo consistiria em ir à guerra contra a voz da experiência. Mas isso não é percebido em sua cidade natal, Colônia, onde os veteranos não são culpabilizados, nem em Berlim, onde tentam esquecê-los.

O que Lutes quer nos mostrar, portanto, não é isso. No segundo capítulo de A Violência e o Sagrado, e a partir da análise da tragédia A Loucura de Hércules, de Eurípides, trata, Girard trata exatamente das consequências de uma imolação desleixada: o sacrifício “perde seu caráter de violência santa, para se ‘misturar’ à violência impura, tornando-se seu cúmplice escandaloso, seu reflexo ou até mesmo uma espécie de detonador”. 

Com sua morte, assim, Theo não redimiu, aos olhos da sociedade, os seus crimes: a sua morte é o agravante da crise. Através de Theo, portanto, Lutes nos mostra que a origem da crise de Berlim não é política. Ela é a crise que acontece quando uma sociedade sacrifica em vão os seus filhos, e quando os filhos se entregam em sacrifício sem saber o que estão fazendo.

b) Horst Wessel

Wessel é outro personagem real de Berlin. Ele era um integrante da Sturmabteilung [a SA], a tropa paramilitar do partido nazista, que foi assassinado por Albrecht Höhler, integrante da Roter Frontkämpferbund [RFB], a tropa paramilitar do partido comunista, em fevereiro de 1930. 

Em 1929, Wessel escreveu uma marcha para a SA. A música se tornaria conhecida como Horst Wessel Lied, A Canção de Horst Wessel. Depois de sua morte, ela foi adotada, primeiro, como hino da SA, depois do NSDAP e, finalmente, da própria Alemanha. Isso, por sua vez, não aconteceu por acaso. Goebbles fez de Wessel, que tinha apenas 23 anos, um mártir e de sua marcha, um símbolo: fez dele um jovem universitário, poeta, germânico e militante, assassinado em uma emboscada por comunistas. 

No final do segundo volume de Berlim [City of Smokes], Lutes nos mostra o discurso de Goebbles no funeral de Wessel. É perceptível o esforço em santificá-lo: “os seus restos mortais”, ele diz, “abandonaram a luta e o conflito”…

“…Mas eu consigo sentir quase que fisicamente a ascensão do seu espírito, que vive entre nós. Um dia, em uma Alemanha alemã, trabalhadores e estudantes, marchando juntos, cantando a sua canção, a canção que ele escreveu em um momento de êxtase, de inspiração! A canção que fluiu dele, que nasceu de sua vida e que é um testemunho dessa vida. Os camisas-marrom cantam ela por todo o país! Em dez anos, crianças vão cantá-la nas escolas, trabalhadores nas suas fábricas, soldados em sua marcha. A sua canção vai fazer dele imortal. É assim que ele viveu, é assim que ele morreu, como um andarilho entre dois mundos, entre ontem e hoje, entre o que foi e o que será!”

É perceptível que Goebbles trata Wessel como um bode expiatório que deve ser santificado após o seu sacrifício. Ele ocupava um status social incomum [“andarilho entre dois mundos”], marginalizado pela sua nobreza [é o que Girard chama de “marginalidade de dentro”]. A sua morte é associada à construção de uma hierarquia harmônica. 

Tudo isso, evidentemente, é propaganda. 

É possível encontrar em Berlim a sugestão de que Wessel foi a resposta nazista a Rosa de Luxemburgo [dentro, portanto, da ideia de reciprocidade da escalada para os extremos]. O quadrinista, em diferentes oportunidades, nos mostra que essa é santificada pela militância comunista como um bode expiatório cujo sacrifício evidencia a natureza injusta da sociedade e deve ser utilizado como estímulo para construção de uma nova ordem social.

No caso de Wessel, Lutes nos mostra explicitamente que essa santificação é falsa. Wessel, como Lutes nos mostra no início do capítulo que termina com seu funeral, mora de aluguel em um cortiço. Divide o quarto com a sua namorada, que talvez seja uma prostituta, e que ele trata de forma violenta. A namorada, por sua vez, sugere que ele seja violento por ser sexualmente impotente. O constrangimento de Wessel diante dessa acusação parece confirmar a hipótese. 

A senhoria do cortiço interrompe uma discussão do casal para cobrar o aluguel. Ela é simpatizante do comunismo, e o próprio Wessel, que não tem como pagá-la, lhe acusa da contradição inerente a ser uma senhoria comunista. Mais por despeito do que por qualquer outra coisa, ela pede para dois brutamonte que o cobrem [“espero que não o machuquem muito”, ela pensa]. Os dois brutamontes são comunistas, mas isso, de novo, é apenas a forma pela qual eles procuram confusões. Eles executam Wessel porque é isso que brutamontes fazem.

Theo, como nós vimos, não exerce a função de um bode expiatório porque o seu sacrifício passa despercebido. Ele é apenas um jovem ingênuo que morreu em vão. Wessel, como Theo, também é jovem, ingênuo, e está disposto em oferecer-se em sacrifício. Mas a sua ingenuidade consiste em transformar frustração sexual em violência, e somente pode ser considerado inocente diante dos motivos aleatórios que de fato levaram à sua morte.

O seu sacrifício, finalmente, somente é funcional no discurso de Goebbles. Isso ocorre porque Goebbles, no púlpito, se comporta como um sacerdote pagão: sabe que precisa de um sacrifício para conjurar a nova ordem, nem que para isso precise dar pele de cordeiro para um lobo.

O sacrifício de Wessel, portanto, é explicitamente apresentado como uma farsa. Ele é funcional, no sentido de que a sua morte levaria à formação de uma nova ordem, terrivelmente injusta.

A sua função na história, portanto, é novamente criticar o mecanismo. É através de sua morte que Lutes nos mostra como o sacrifício, mesmo que seja voluntário através da renúncia da própria individualidade em favor de uma causa, apenas alimenta um mecanismo mentiroso que logo passará a promover sacrifícios não-voluntários.

c) A família Schwartz

Entre os principais personagens de Berlin está David Schwartz, um garoto judeu, paperboy do semanário comunista AIZ, fã de Houdini e Buster Keaton. Ele é o filho de Berthold e Abigail Schwartz, casal que mantém uma loja de objetos usados, e neto de Abraham Gochman. É o único personagem de Berlin que é apresentado no contexto de sua família, que é, por sua vez, caracterizada pela sua religião.

As características dos integrantes da família enfatizam a sua relação com a experiência histórica judaica. Assim, ao avô, Lutes deu um nome associável a um judeu asquenazita e um comportamento ortodoxo. Por outro lado, o nome do pai de família é evidentemente alemão: Berthold Schwartz. Ainda que Schwartz seja um sobrenome comum entre judeus, é relativo a judeus alemães. O seu comportamento, por outro lado, é mais pragmático do que o de seu sogro.

David, finalmente, combina um nome judeu com o sobrenome alemão, Schwartz. O seu ídolo, porém, é Houdini [que é, inclusive, uma espécie de padrinho de Buster Keaton: foi colega de trupe circense dos pais do cineasta e, conforme a lenda, é responsável por apelidá-lo de “Buster”]. Filho de um rabino, nascido Erik Weisz, Houdini foi o primeiro judeu a ser um ídolo de massa nos EUA [um dos temas, inclusive, de Houdini: The Handcuff King]. Mas o fez como escapista, e sob um nome gentio, Harry Houdini. 

Se você interpretar a família Schwartz como uma representação da experiência judaica, fica fácil associá-la ao bode expiatório de Girard. De fato, o primeiro exemplo de texto de perseguição analisado no livro O Bode Expiatório, de Girard, é um poema de Guillaume de Machaut do século XIV em que judeus são bodes expiatórios. Assim como o nazismo é uma ameaça implícita em Berlin, o Holocausto também o é.

Ao caracterizá-los em Berlim, Lutes também atribui à família algumas marcas vitimárias [características que fazem com que a vítima da perseguição seja percebida pela turba como responsável pela crise].

Talvez o exemplo mais claro seja o comércio administrado por Berthold Schwartz. Ele mantém uma loja de antiguidades. Lutes nos mostra, especificamente, ele adquirindo um brasão dos serviço postal imperial. É uma águia imperial, um símbolo arcaico do Império Alemão. Pavel, o catador que está fazendo a venda, é outro personagem frequente da hq: é um mendigo judeu comunista. 

Ainda que Berthold esteja agindo de forma ingênua ao adquiri-la, o seu agir seria facilmente transformável em um sinal por uma turba em busca de culpados. Diante da relação que ele mantém com Pavel, ele pode ser considerado um usureiro explorador do proletariado por comunistas. Ao mesmo tempo, pode ser visto como um parasita que se aproveita das ruínas do Império por nazistas.

De todos os personagens recorrentes de Berlim, no entanto, a família Schwartz é a única que claramente deixa a Alemanha no final da hq: eles abandonam o país e migram para os EUA quando percebem o início da perseguição aos judeus.

É a resolução mais piedosa da hq. Como eu já comentei, Berlim vive à sombra do Holocausto e a sensação de alívio ao vê-los escapar é ineludível. Essa sensação de alívio é compreensível porque Lutes não tratou a família Schwartz apenas como “os judeus”, mas também como indivíduos. Não é por acaso que eles formem uma família, e que a diferença entre os seus integrantes/diferentes gerações seja enfatizada em termos pessoais.

O sentido desse ato de piedade de Lutes, por sua vez, nos é dado pela perspectiva formada por Theo Müller e Horst Wessel. Essa perspectiva nos permite traçar uma linha que também está presente na obra de Girard. 

Conforme Girard, o advento do cristianismo, especialmente através da Paixão de Cristo, desmascarou o mecanismo do bode expiatório: “o funcionamento das religiões arcaicas”, ele diz em Rematar Clausewitz

“exige a ocultação de seu assassinato fundador, que se repetia indefinidamente nos sacrifícios rituais, e que assim protegia as sociedades humanas de sua própria violência. Ao revelar o assassinato fundador, o cristianismo destruiu a ignorância e a superstição indispensáveis a essas religiões”. 

Em outras palavras, diz Girard que o mecanismo do bode expiatório é útil para conter a violência, mas se sustenta no assassinato de inocentes e, portanto, na mentira e na continuidade da violência. 

É isso que Lutes também pretende denunciar. Em primeiro lugar, em Berlim não há um bode expiatório que possa ser sacrificado para afastar a crise. Não pela falta de candidatos, mas por ser o próprio mecanismo intrinsecamente falho e injusto. Enquanto que o sacrifício de Theo agrava a crise e o de Wessel, é propaganda fascista, o eventual sacrifício da família Schwartz seria terrivelmente cruel. E Lutes se esforça para que você assim o perceba.

3.
Certamente falso,
possivelmente verdadeiro

Os Atores, de Max Beckmann [1942]

Até agora, tratei de Berlim com base nos acontecimentos históricos que ela retrata, ou nos fatos que a sua narrativa nos apresenta. É uma análise basicamente objetiva: a República de Weimar era assim; os personagens da hq são esses; eles interagem dessa forma. 

Isso, no entanto, esconde a grande limitação da interpretação de Berlim como uma analogia ao momento presente: o seu caráter reducionista. Como ficção histórica, Berlim é mais ficção do que história. Não é um exposição de fatos sobre a Alemanha dos anos 20 e 30, exposta de forma objetiva; é uma história sobre a vida de pessoas comuns em um momento de crise, apresentada através de símbolos.

Como eu disse, poucos personagens reais aparecem na hq. Hitler é um deles; mas também é aquele cuja participação é mais efêmera. Goebbles aparece com mais frequência. Mas ele era o líder do Partido Nazista em Berlim, e está lá mais para dar verossimilhança à história do que qualquer outra coisa. As figuras reais mais proeminentes, por outro lado, não são políticos. O principal é o jornalista Carl von Ossietzky, mas a cantora e dançarina Josephine Baker e, principalmente, o poeta Joachim Ringelnatz também são importantes para a história.

Isso é algo que se pode vislumbrar no próprio fato de que aqueles acontecimentos históricos foram articulados de uma forma que pode ser explicada pelas ideias de Girard. Se a hq, como eu tentei te convencer na segunda parte desta resenha, é uma história sobre crise que desmascara o mecanismo do bode expiatório, é fácil supor que ela opera em termos míticos, através de símbolos. 

Assim, Lutes não explicita as origens as consequências do momento histórico que presenciamos. Tampouco existe um narrador onisciente para nos informar, em terceira pessoa e de forma objetiva, o que está acontecendo. De fato, nos dois primeiros volumes, a única informação extra-diegética que o leitor recebe é o mês e a data em que a narrativa de cada capítulo transcorre. No terceiro volume, Lutes não nos informa nem isso. 

Os acontecimentos, portanto, tem um grau de abstração.

Além disso, a história nos é contada, com frequência, através de delírios e sonhos. O exemplo da morte de Theo é o mais notável: trata-se de uma sequência de diversas páginas que nos fornece uma informação importante para a história a partir do pesadelo de um mendigo. 

É um pesadelo, não suficiente, surreal. A presença e morte grotesca da mãe do veterano durante o sonho, e a indiferença deste diante do fato, nos é apresentada de forma natural e ao mesmo tempo absurda. Só pode ser interpretada em termos simbólicos: ela representa a desumanização do soldado pela guerra; a morte subsequente de Theo, ao tentar resgatar outro soldado, nos mostra que essa desumanização é necessária para a sobrevivência na trincheira.

Esse caráter surreal, por sua vez, não é nem mesmo exclusivo das sequências oníricas. Em diversas oportunidades acontecimentos factuais nos são apresentados através de uma linguagem elusiva e não objetiva. 

Ainda em City of Stones, por exemplo, existe uma sequência que nos mostra a repressão violenta a uma revolta militar. Trata-se, ao que tudo indica, da revolta dos marinheiros no natal de 1918 no Stadtschloss, em Berlim; portanto, de um fato histórico. Mas essa revolta nos é apresentada em contraste à passividade dos moradores de Berlim e ao seu constrangimento em pisar na grama do palácio em que ela ocorre. Esse contraste entre a violência e o grandeur da revolta e a efemeridade da sujeição à normalidade é, como o pesadelo do mendigo, surreal.

Essa lente interpretativa, portanto, não deve ser aplicada apenas às sequências que são explicitamente oníricas. Lutes também utiliza símbolos para ampliar o significado de cenas mundanas. Com isso em mente, tudo na hq, que é essencialmente formada por uma concatenação de cenas mundanas, ganha um significado adicional. Vejamos, como exemplo, este quadrinho da primeira página da hq:

Ele nos mostra uma cena evidentemente mundana: Marthe divide a cena com um jovem nazista dormente, enquanto alguém se prepara para entrar no compartimento de trem em que ela está.

Mas, a cena tem, em primeiríssimo plano, Marthe. Ela é a protagonista da página [aparece em 4 dos 7 quadrinhos que a formam, enquanto que o jovem nazista aparece em apenas 2]. Esses dois fatos nos convidam a interpretar a cena desde o seu ponto de vista. 

A partir da fração de seu rosto que o quadrinho nos mostra, partem as linhas que formam a mobília do compartimento do trem, em direção ao ponto de fuga, onde se encontram com o jovem nazista. 

A forma pela qual isso é desenhado, ainda que seja perfeitamente natural [no sentido de que reproduz a natureza na forma pela qual ela se apresenta visualmente], nos sugere o espaço que o jovem nazista ocupa na mente de Marthe. O desenho, portanto, não nos mostra apenas a ação externa; ele também nos mostra a percepção que Marthe tem do nazismo: pequeno, ao fundo, dormente.

Essa possibilidade interpretativa não se manifesta apenas dessa forma tão sutil. Ao procurar pelo significado simbólico daquilo que nos é apresentado como ordinário, é possível uma série de objetos recorrentes que aparecem em Berlim se revelam como especialmente significativos. Dois deles são especialmente importantes para entender o que Lutes quer nos dizer com a crise da República de Weimar: trens e muros.

3.1 Trens

O primeiro símbolo recorrente de Berlim sobre o qual é pertinente refletir também é o primeiro a aparecer na hq. De fato, é literalmente o que aparece no primeiro quadrinho de sua primeira página. 

Aqui, Lutes não usa o trem apenas como meio de transporte de sua protagonista. Ele também o faz de uma forma que é adequada à linguagem de sua história: como uma grade de quadrinhos. Cada janela do trem é um recorte narrativo e o leitor, ao vislumbrar o que ocorre dentro dela, se sente como o voyeur de um momento privado.

Esse é um recurso narrativo que ele voltará a usar através das janelas do prédio de Berlim: a hq, é uma imensa coleção de espiadas pela janela dos outros.

Mas o uso de trens em Berlim vai muito além desse recurso narrativo. O seu significado é complexo e, para entendê-lo, precisamos voltar para a Inglaterra do século XIX, quando esse meio de transporte entrou no imaginário humano.

a) Chuva, Vapor e Velocidade – O Grande Caminho de Ferro do Oeste, de Joseph Mallord William Turner

A primeira linha pública de trens movidos a locomotiva entrou em funcionamento, na Inglaterra, em 1825. Já na década de 40, era um meio de transporte difundido e popular. A primeira grande obra de arte a tê-la de protagonista é de 1844, Chuva, Vapor e Velocidade – O Grande Caminho de Ferro do Oeste, de Joseph Mallord William Turner.

Chuva, Vapor e Velocidade - O Grande Caminho de Ferro do Oeste, de Joseph Mallord William Turner

Além do prodígio técnico [como costuma ser habitual, a forma pela qual Turner pinta a luz é, por si só, magnífica], a pintura faz da locomotiva um símbolo do conflito entre harmonia pastoral e modernidade industrial. Para fazer isso, Turner pintou um céu idílico e tranquilo, além de diversas figuras bucólicas que rumam ao fundo da imagem. Elas estão à esquerda do quadro. Na ordem, a ponte, o barco, as moças às margens do rio. 

Isso, por sua vez, contrasta com o lado direito do quadro: a violência da velocidade da locomotiva, o caos do vapor, a exposição dos passageiros no vagão de terceira classe, sem teto. Nos trilhos em frente à locomotiva existe uma pequena lebre, parcialmente apagada pelo tempo. Ela corre pela sua vida. 

Esse contraste tem um contexto. Em The Moral of Landscape, capítulo XVII do terceiro volume de Modern Painters, o crítico de arte John Ruskin se refere ao transporte por trem com evidente desgosto. Para ele, a locomotiva é uma ruptura vulgar com a calma harmonia da apreciação da natureza:

“…toda viagem se torna sem graça na mesma proporção de sua velocidade. Viajar de trem eu nem considero viajar; é apenas ‘ser enviado’ para um lugar, e quase não se diferencia de ser transformado em um pacote.

[…] Uma pessoa que verdadeiramente ama viajar aceitaria trocar um dia dessa alegria por uma hora de viagem de trem da mesma forma que alguém que ama comer aceitaria, se fosse possível, concentrar a sua janta em um comprimido”.

William Powell Frith, na obra A Estação Ferroviária [de 1863], nem vê o conflito. A obra, uma pintura de gênero ambientada em uma estação de trem, foi um sucesso imediato. Como corresponde a uma pintura de gênero, é uma celebração da vida ordinária. É como A Boda Camponesa, de Pieter Bruegel, mas no mundo da tecnologia a vapor.

A Estação Ferroviária, de William Powell Frith

Turner, no entanto, rompe com esses dois pontos de vista. A sua locomotiva não é um cenário para a vida ordinária, como no quadro de Frith. Ela também não é desagradável como aquela descrita por Ruskin. Ela é uma força mítica, magnífica e inevitável.

As grandes influências de Turner, Nicolas Poussin e Claude Lorrain, se tornaram conhecidos por pintar cenas de mitologia clássicas. Daí que Turner tenha pintado, por exemplo, Ulisses zombando de Polifemo em 1829:

Ulisses zombando de Polifemo, de Joseph Mallord William Turner

Em Chuva, Vapor e Velocidade – O Grande Caminho de Ferro do Oeste, Turner substitui a mitologia clássica pela modernidade. Há fogo na caldeira da máquina; ar, terra e água em todo o resto do quadro.

Ao utilizar os quatro elementos, Turner submerge o seu público em um vórtex sensorial que é muito mais do que inconveniente e desagradável. É muito mais do que isso. É violento, assustador, assombroso e inevitável: uma maravilha moderna.

b) Paisagem com Carruagem e Trem, de Van Gogh

Não foram só os ingleses, naturalmente, que enxergaram na locomotiva o símbolo do século XIX, e tentaram, através dela, expressar o confronto entre modernidade industrial e placidez pastoral. Van Gogh, cuja fama se deve em grande parte ao sucesso que a sua obra fez na Alemanha dos anos 20, incluiu uma locomotiva em pelo menos duas de suas obras. 

A primeira é, de novo, uma maravilha técnica. Ponte sobre o Sena em Asnières foi pintada no verão de 1887. Nessa pintura, o trem está perfeitamente incorporado à paisagem. Com o reflexo cobreado do sol em sua carapaça de metal, ele é mais um elemento da vida suburbana parisiense do final do século XIX.

Em 1890, meses antes de sua morte, Van Gogh novamente pintou um trem cruzando um cenário interiorano — agora, Auvers-sur-Oise. Em Paisagem com Carruagem e Trem, no entanto, o trem está muito mais próximo do assunto central da pintura, e novamente como um símbolo da modernidade. Conforme o próprio Van Gogh, falando sobre essa pintura em carta à sua irmã, Wil:

“Ultimamente, tenho trabalhado muito e com velocidade. Assim estou tentando expressar a passagem desesperadamente rápida das coisas na vida moderna”.

Como na obra de Turner, o trem, nesse quadro, aparece como símbolo da modernidade industrial, apresentado em contraste com uma cena bucólica, agora rural. Van Gogh, no entanto, é mais reflexivo do que Turner. A sua pintura, ao contrário de Chuva, Vapor e Velocidade, não é um vórtex sensorial. 

Paisagem com Carruagem e Trem, de Van Gogh

Ele também é mais ominoso do que Turner. Percebam que o trem, nesse quadro, se movimenta no sentido contrário ao da pequena carruagem que está quase ao centro da pintura: aquele viaja da esquerda para a direita; esta, direita para a esquerda. Ele é negro, e escurece a paisagem que está ao seu fundo. A carruagem, por outro lado, anda na direção de um ceifador.

O significado da direção do movimento não está, apenas, no fato de que eles são contrários. Como bom leitor de quadrinhos, você deve saber que, ao deslocar os olhos no espaço da página/tela da esquerda para a direita [ou seja, no sentido de leitura], você não está avançando apenas no espaço. Você também está avançando no tempo: essa é a sensação que você tem ao seguir o reflexo imposto pela ordem de leitura. O trem, portanto, não está apenas se deslocando da esquerda para a direita: ele está se deslocando na direção do futuro, enquanto que a carruagem vai na direção do ocaso.

Esse movimento é qualificado por Van Gogh pelos outros elementos que aparecem na pintura. Para entendê-los, é pertinente admirar outras duas pinturas de Van Gogh, O Ceifador e A Noite Estrelada. São duas de suas obras mais conhecidas. Ambas são de 1889:

Sobre a primeira, e nas palavras do próprio Van Gogh:

“Nesse ceifador, uma figura vaga trabalhando como um diabo em um calor terrível para terminar a sua tarefa, eu vi uma imagem da morte, no sentido de que o trigo ceifado representava a humanidade. Mas não existe nada de triste nessa morte, ela ocorre na luz do dia, sob o sol que banha tudo em uma luz sutil e dourada”

É mais fácil entender o que Van Gogh quer dizer com isso se você interpretar O Ceifador ao lado de O Semeador, de 1888.

Essas duas pinturas apresentam, naturalmente, um ciclo. O Ceifador retrata a culminação de um processo que iniciou com a semeadura. É a morte, mas também a realização de um propósito. Se você trouxer o cristianismo para dentro da interpretação, como a predominância do sol, a parábola do Divino Semeador e a própria vida de Van Gogh convidam, vai entender que O Ceifador colhe aquilo que foi plantado pelo Cristo. 

Esse é o ceifador que aparece em Paisagem com Carruagem e Trem. A carruagem não encontra o ocaso na sua direção para ser destruída, mas para encontrar o seu destino natural, em reconhecimento ao seu propósito. 

O trem, por sua vez, dirige-se ao sentido contrário. Existe uma irresignação no seu movimento, como se o progresso industrial que ele representa fosse um ato de rebeldia. A própria composição da pintura sugere que o seu movimento é de ruptura: para retratar o mundo natural, Van Gogh usa pinceladas verticais, enquanto que, a partir do trem, as pinceladas são horizontais. 

Essa ruptura é semelhante, ainda que espelhada, àquela que A Noite Estrelada faz através da árvore negra e da cidade. A árvore está em primeiro plano e é pintada através de pinceladas verticais e escuras; o trem, no plano de fundo, através de pinceladas horizontais igualmente escuras. 

Mas o sentido do contraste, pode-se especular pelo menos, é o mesmo. A árvore de A Noite Estrelada é uma explosão de escuridão ameaçadora, que alcança o céu e supera a bucólica cidade. Ela parece um desafio ao campanário da igreja que está ao centro da pintura. Em Paisagem com Carruagem e Trem, o trem é uma máquina ameaçadora que domina o horizonte, ruma para o futuro e desafia uma carruagem que ruma ao esquecimento. 

A forma pela qual Ruskin, Frith, Turner e Van Gogh tratam o trem e a locomotiva têm pelo menos uma coisa em comum: ele é um símbolo da modernidade, da era industrial, do progresso. Van Gogh, no entanto, parece ser o único que vislumbra nisso a possibilidade de um futuro sinistro. Isso faz de Paisagem com Carruagem e Trem mais do que uma pintura reflexiva. Faz dela uma pintura profética.

c) A Jornada Ansiosa, de Giorgio de Chirico

Giorgio de Chirico, artista italiano e filho de um engenheiro de ferrovias, incluiu trens e locomotivas em diversos de seus quadros. Em 1913, pintou aquele que talvez seja o mais famoso deles, A Jornada Ansiosa. Nele, a máquina é a fonte de angústia em uma cena que parece saída de um pesadelo.

De Chirico se tornou conhecido como o grande nome da “Arte Metafísica”, uma das correntes precursoras do surrealismo. O objetivo era capturar a realidade não pela forma que ela é percebida pelos olhos, mas imaginada — melhor ainda, sonhada.

Isso frequentemente se traduz em desafio. O próprio De Chirico descrevia o seu método como nietzscheano. Os seus quadros, extremamente melancólicos, desafiam a percepção visual da realidade com o objetivo de desmascarar a própria ideia de realidade objetiva. O cenário por excelência da obra de De Chirico é a praça vazia: o espaço comum, em que ocorre a interação entre as pessoas [como a própria realidade], mas vazio, melancólico, desprovido de significado e, consequentemente, absurdo.

É fácil perceber esse desafio em A Jornada Ansiosa. A pintura nos mostra uma série de arcos que retrocedem ao horizonte, observando uma linha de fuga. Esses arcos, organizados dessa forma, com frequência aparecem em pinturas renascentistas com o objetivo de apresentar uma imagem tridimensional em um plano bidimensional — ou seja, de reproduzir em uma pintura uma realidade plausível, exibindo-a na forma pela qual a percebemos visualmente.

Città Ideale [supostamente 1470], autor desconhecido.
Sim, ela já apareceu neste site antes.

A diferença é que De Chirico não faz com que as suas linhas se encontrem no ponto de fuga. Ele utiliza o recurso para confundir a sua percepção. As colunas do arco retrocedem de uma forma que deveria fazer sentido, mas não faz. Através da primeira delas, à esquerda da pintura, enxergamos uma locomotiva que se dirige a um muro vermelho. Não há trilhos. É uma figura que não parece fazer qualquer sentido lógico e, consequentemente, só pode ser interpretada em termos simbólicos.

Pelo seu caráter onírico, a obra de De Chirico frequentemente é interpretada em termos psicoanalíticos. Nesse caso, a locomotiva pode ser vista como uma erupção do inconsciente, o Id; o muro seria o Ego, encarregado de contê-la. Não por acaso, essa parte do quadro é frequentemente comparado a uma “fera enjaulada”. 

Dando continuidade a essa interpretação, os arcos que formam o restante do quadro podem ser interpretados como a própria realidade externa à dinâmica entre o Id e o Ego. Ela apenas parece fazer sentido. 

Do ponto de vista psicoanalítico, eis aí o retrato de uma mente angustiada: o Id é uma locomotiva, que se dirige a todo vapor na direção de um muro que é claramente incapaz de contê-lo. Do outro lado, não existem trilhos, apenas uma realidade que não faz sentido: as regras utilizadas para representá-la estão distorcidas.

Considerando os acontecimentos de 1914, A Jornada Ansiosa parece, igualmente, uma obra de arte profética. Ela também é um ponto de virada para a forma de representação das locomotivas na arte. René Magritte, que tem em De Chirico uma grande influência, incluiu uma locomotiva em uma de suas pinturas mais conhecidas, Tempo Trespassado [1938].

É uma prova de que De Chirico contribuiu para que a locomotiva entrasse no imaginário humano como símbolo onírico do absurdo.

d) Eisen-Steig, de Anselm Kiefer

A última obra que nos interessa para analisar o significado dos trens e locomotivas de Berlin, no entanto, utiliza um elemento associado a esse meio de transporte que está ausente na obra de De Chirico: os trilhos. Eles são os protagonistas de Eisen-Steig, de Anselm Kiefer, pintado em 1986.

Kiefer é um pintor e escultor alemão cujos quadros são conhecidos por duas características. A primeira delas é a reflexão sobre a história da Alemanha, especialmente em relação ao nazismo. A segunda, o uso de materiais atípicos, como metais [especialmente chumbo e ouro], para produzir pinturas texturizadas, quase esculturas verticais.

Essas duas características estão presentes em Eisen-Steig. A pintura nos mostra um trilho de trem. Conforme o próprio Kiefer…

“O nosso conhecimento histórico condiciona a forma pela qual enxergamos as coisas. Nós vemos trilhos de trem em qualquer lugar e pensamos em Auschwitz. Isso vai continuar assim no longo prazo”.

É difícil dar um significado preciso das obras de Kiefer. Elas são simbólicas, mas também abstratas: consequentemente não reproduzem a aparência visual de figuras cujo significado possa ser analisado. 

A associação entre os trilhos e Auschwitz, por sua vez, apenas reforçam o caráter ambíguo da pintura. Os trilhos estão colocados sobre um terreno aparentemente destruído. Seria a Alemanha do pós-guerra? Os trilhos não tem um destino definido; existe uma aparente bifurcação. A pintura não nos mostra o trem ou os seus passageiros. O fundo do cenário, no horizonte, é dourado [de fato, produzido com ouro]. Aparentemente existem dois sóis.

Como em A Jornada Ansiosa, essa ambiguidade é fonte de angústia. Dessa vez, no entanto, ela pode ser interpretada de forma menos psicológica e mais transcendental. Os trilhos de um trem são um símbolo do destino: eles são a rota inalterável através da qual você chega em um ponto final fixo e pré-determinado. 

Qual é o destino final do trem que percorreu os trilhos de Eisen-Steig? É um destino ambíguo, como a bifurcação sugere. É possível que seja a morte da obra de Van Gogh: a colheita do semeador. Ou é possível que seja uma câmara de cremação em Auschwitz. As duas podem ser representadas por sóis reluzentes. 

A angústia de Eisen-Steig não está apenas em apresentar essas possibilidades. Também está em apresentar o trilho da perspectiva do seu público. É como se você estivesse parado sobre ele, ouvindo Keifer lhe perguntar: nesse mundo em ruínas em que vivemos, existe alguma diferença nos caminhos que o seu trem irá tomar?

e) Berlim, de Jason Lutes

Você não precisa acreditar no que eu estou dizendo sobre a obras até aqui analisadas. O que me interessa mostrar é como elas, interpretadas dessa forma, revelam significados do símbolo trem na forma pela qual eles foram utilizados em Berlim. Lutes está conversando com dois séculos de reflexão artística sobre um determinado símbolo, o trem.

A relação com os exemplos analisados, por sua vez, é perceptível em diferentes momentos específicos da hq. O primeiro deles é, de novo, a primeira página.

O primeiro quadrinho tem evidente semelhança com a parte superior de Paisagem com Carruagem e Trem. Ao assim desenhá-lo, Lutes evoca a reflexiva e ominosa profecia de Van Gogh: o seu trem é movido por uma locomotiva negra, rumo ao futuro. Como no comentário de Ruskin, ele também é um corte desagradável na bucólica paisagem rural da periferia de Berlim: os dois quadrinhos seguintes ao primeiro enfatizam a poluição que ele causa no ambiente, através da fumaça, velocidade e som.

O segundo exemplo está ainda no primeiro volume de Berlim, nos deparamos com esta cena natalina protagonizada por Marthe:

Marthe, como descobriremos, veio a Berlim em uma espécie de fuga. Ela está tentando fugir do que pensa ser o destino que lhe foi traçado por uma vida ordinária na sua cidade natal, Colônia. Essa vida, por sua vez, é marcada pela hierarquia: ela parece inevitável; existe sob a lembrança da Primeira Guerra Mundial, tanto pela morte de seu irmão, Theo, quanto pelo fato de que o seu pai era um major do exército.

Tudo isso está sugerido nessa página, se comparada à obra de Kiefer. O motivo da alegria de Marthe com a neve é visualmente apresentado como uma decorrência do fato de que ela está cobrindo os trilhos do trem e o chão que lhes rodeia. Em Eisen-Steig, por sua vez, esses aparecem como símbolo da inevitabilidade do destino e da destruição da guerra. Marthe volta à realidade ao perceber, no chão, vômito e pisadas: são texturas que lhe levam ao que descobrimos ser, na página seguinte, o seu caseiro, ex-soldado subordinado ao seu pai.

No terceiro volume, temos outros dois exemplos. Já nas suas primeiras páginas, um grupo de trabalhadores rurais se depara com uma locomotiva que corta o campo na velocidade máxima.

Essa locomotiva é uma máquina poderosa, e Lutes a retrata de forma sensorial: fumaça, velocidade, ruído. Ela é o progresso, e um dos trabalhadores identifica ele exatamente assim. Ela é a representação magnífica da modernidade, como Chuva, Vapor e Velocidade – O Grande Caminho de Ferro do Oeste, de Turner. Ainda que de forma consideravelmente mais sinistra: na página seguinte descobrimos que o trem transporta Hitler para Berlim.

Por fim, o nosso último exemplo é uma sequência onírica.

Ao longo da hq, Kurt se desfaz. Ele acompanha o agravamento da crise de Berlim, e o acirramento da rivalidade entre comunistas e nazistas, como a falência de sua própria vida. É isso que ele sonha: com uma escalada que vai eclipsar todos aqueles que estão entre os seus extremos. Lutes nos mostra isso através de um pesadelo escuro e angustiante. Nesse pesadelo, os trens parecem impulsos irracionais, inconscientes e imparáveis. Ou seja, ele nos mostra isso como em A Jornada Ansiosa de De Chirico.

3.2 Muros

O segundo exemplo de símbolo recorrente em Berlim que merece uma análise mais cuidadosa é o muro. 

Berlim, de fato, está cheia deles. Para usar o exemplo de Kurt: ele deseja, no início da hq, que a produção intelectual da cidade se transforme em um. Quando ele enxerga que a sua ex-amante, a aristocrática Margareth, já na parte final da história, está promovendo uma recepção para arrecadar fundos para a campanha de Hitler, o quadrinho é dominado por outro.

O muro, evidentemente, não é um símbolo utilizado apenas em Berlim, a hq. É presença frequente na obra de De Chirico, pra ficar em um exemplo já citado, e é uma característica importante de Berlim, a cidade. 

Aqui, no entanto, a ideia não é analisar esse símbolo em relação à história de sua representação na arte, como fizemos no caso do trem. A ideia é entender qual é a forma pela qual Lutes costuma utilizá-lo em outras histórias, e como ele transforma isso em um comentário sobre regimes totalitários pertinente à cidade de Berlim.

O primeiro passo desse processo é simples. Muros figuram de forma notável em duas histórias de Lutes, além de Berlim: Jar of Fools e Rules to Live By, história curta autobiográfica publicada em Autobiographix, excelente hq da Dark Horse Comics.

Em Jar of Fools, Lutes usa um muro em uma situação parecida à do momento em que Kurt constata o apoio de Margareth a Hitler. O texto chave para interpretar o uso do muro nas duas cenas parece ser “é impossível se comunicar com pessoas que tiveram o coração partido”.

Para a pergunta “você tirou essa foto com um celular ruim?”, a resposta é sim.

Em Em Rules to Live By, a desilusão amorosa como uma forma de incomunicação também é sugerida:

Lutes, portanto, associa um muro à cena de Kurt, Margareth e Hitler para nos mostrar que o primeiro está isolado e incomunicável — “murado”. Nesse contexto, o muro é um símbolo de incomunicação: é uma barreira entre as pessoas.

Nos três casos, essa incomunicação é associada à desilusão amorosa. Em Jar of Fools, no entanto, esse muro de incomunicação é construído pela depressão e o suicídio. Por outro lado, em Berlim, na hq e na cidade, o muro é construído pelos extremos totalitários da escalada. 

A partir desse ponto de vista, aparecem muros em diversas cenas marcantes de Berlim. Por exemplo, veja como os quadrinhos separam os personagens que discutem nesta cena:

Enquanto que o sonho de reunião desses dois personagens nos é apresentado em uma página sem divisões:

Ou como, nesta outra, o auge do isolamento de Kurt e seu amigo Irwin é retratado em um quadrinho silencioso [incomunicação] em que eles são divididos pelo “muro” da sombra da página:

Nesta outra página, o almoço de Kurt e Marthe é interrompido por um militante comunista que lhes acusa de burgueses. O leitor sabe que ele interrompeu uma discussão nada burguesa: Marthe se dispunha a almoçar apenas um ovo por não querer que Kurt suportasse as suas despesas. Como em Rules to Live By, o relacionamento dos dois está em crise porque eles se confundem — uma forma de isolamento. O militante se comporta como um mímico que se depara com um muro invisível, a janela do restaurante.

Lutes nos mostra como, ao destruir a linguagem através da verborragia sem sentido, o comunismo e o nazismo impossibilitam a comunicação — consequentemente, constroem muros. 

É fácil interpretar isso como a forma que Lutes encontrou de transpor para Berlim, a hq, uma aquela característica conhecida da história de Berlim, a cidade. Em A Questão da Culpa, o filósofo alemão Karl Jaspers explica a ascensão do nazismo com base na inexistência de comunicação entre os alemães. Ou seja, à existência do muro de Lutes:

Agora precisamos perguntar a nós mesmos se não estamos sucumbindo novamente a outro barulho […]. A Alemanha só poderá voltar a si se nós alemães nos encontrarmos na comunicação. Se aprendermos a realmente falarmos uns com os outros, nós o faremos apenas com a consciência de nossa grande diversidade.

Mas é mais interessante observar como Lutes nos mostra os efeitos do totalitarismo sobre um indivíduo. Para entender isso, o exemplo pertinente é o de Irwing Immenthaler, aquele amigo de Kurt que apareceu em um exemplo lá em cima.

Ao longo de Berlim, Irwin se torna cada vez mais comunista. Isso nos é informado por Lutes através do crescente mimetismo de seu comportamento. Com o passar da história, Irwin é progressivamente uniformizado: ele se torna menos um indivíduo, e mais um militante.

Assim, na sua primeira aparição, ele é um sujeito relativamente livre. Ele isola Kurt através de seus chavões ideológicos e a sua faixa mais parece uma algema [está mais próxima do pulso do que do bíceps]. Mas ele conversa com Kurt e parte da cena como um provocador. 

No segundo volume de Berlim, voltamos a encontrar Irwin. Agora, no entanto, ele está de uniforme. Ou seja, ele se transformou em um militante ao custo de sua identidade pessoal. Ele se comunica através de slogans partidários: pequenos nuances são desnecessários, porque só existem dois lados em uma revolução; é preciso traçar “uma linha dura” entre eles. Ou seja, construir um muro.

Irwin, finalmente, retorna no terceiro volume. Aqui, Kurt está destruído: ele percebeu a ruína da República de Weimar, e não acredita que o diálogo seja um instrumento capaz de evitar a ascensão do nazismo. Ele decide, então, filiar-se ao partido comunista. O seu estado de ânimo é representado pela decadência de sua aparência física e pela sua fala monossilábica. Lá, ele encontra Irwin, que exige a sua submissão.

Sugerir a relação entre totalitarismo e destruição da linguagem não é uma novidade de Berlim. Pra ficar uma coluna do João Pereira Coutinho na Gazeta do Povo:

“A lógica é totalmente orwelliana, porque essa é a mensagem de “1984”, um romance que, sintomaticamente, virou best-seller no mundo inteiro, Brasil incluso: a tirania sobre o mundo começa sempre pela guerra à linguagem. Controlando certas palavras e abolindo outras, será possível refundar a natureza humana.

Como afirma um dos personagens mais sinistros de ‘1984’, o inesquecível Syme, o assalto à linguagem tem como objetivo ‘restringir o campo do pensamento’. E acrescenta, deliciado: ‘Ano após ano, [haverá] cada vez menos palavras, e o alcance da consciência [será] cada vez mais limitado’”.

Mas, através da relação de Irwin e Kurt, Lutes dá para essa conclusão pelo menos três características. 

Em primeiro lugar, ceder ao totalitarismo é uma forma de voluntária desistência, e não de resistência. Irwin diz que se sentiu aliviado ao aderir ao comunismo. Kurt decide fazê-lo quase que como um suicídio. Nos dois casos, dissolver a individualidade é livrar-se de um fardo. 

Por outro lado, essa adesão é uma renúncia ao diálogo e, consequentemente, uma forma de compactuar com a violência. Lutes nos mostra isso pelos olhos de Kurt, quando Irwin apresenta o treinamento dos jovens militantes do partido comunista. 

A impressão que eu tenho é que o cara que perguntou pro Lutes se era “Ok to punch a nazi” simplesmente não leu o gibi.

A terceira característica que Lutes dá para os efeitos do totalitarismo sobre a personalidade individual dos aderentes é relacionada aos obstáculos que ela enfrenta. 

Kurt e Irwin são amigos. No segundo encontro dos dois, Kurt rompe o silêncio demonstrando a sua preocupação pelo bem estar de Irwin. No último volume, por outro lado, a confiança de Otto Braun [marido da falecida Gundrun, e “homem comum nazista” da história] no nazismo é fissurada pela ruidosa camaradagem dos outros militantes, que impedem o seu filho de pegar no sono. 

É como se Lutes sugerisse que a forma de quebrar o encanto hipnótico do totalitarismo estivesse no espírito comunitário no que ele tem de mais íntimo e palpável: a relação com amigos e familiares. 

Nas últimas páginas de Berlim, Lutes sugere a existência de outra ferramenta de aproximação de pessoas, capaz de destruir os muros erguidos pelo totalitarismo. Essas últimas páginas, no entanto, são a melhor forma de entender outra das virtudes de Berlim.

3.3 A articulação de símbolos em uma narrativa: as páginas finais de Berlim

Entre trens e muros, se pode perceber que Lutes usa símbolos em sua hq, de uma forma que é coerente com a tradição artística, mas também com os nuances de sua própria obra. Resta uma última observação a se fazer sobre o assunto: como Lutes usa símbolos para construir uma narrativa. 

Nas páginas finais de Berlin, Marthe tem uma última visão da cidade. Essa visão é profética: o que ela enxerga é o futuro da cidade. Lutes nos mostra isso em uma sequência de quatro splash-pages duplos. 

Como corresponde a uma visão profética, a de Marthe deve ser interpretada pelos seus símbolos. Assim, na primeira página, Lutes nos mostra a cidade de Berlim destruída pelas chamas. Especificamente, o que ele nos é a Porta de Brandemburgo. Não é apenas um lugar marcante da cidade: é um símbolo da Alemanha imperial, da destruição da cidade durante a Segunda Guerra Mundial e de sua divisão na Guerra Fria [é o cenário do célebre discurso “Tear down this wall”, do Ronald Reagan].

É possível interpretá-la, portanto, como uma representação do presente e do futuro da cidade. A crise retratada em Berlin é uma consequência da destruição da Alemanha imperial e, ao mesmo tempo, origem de sua destruição na Segunda Guerra. Isso, por sua vez, reforça o caráter cíclico da visão: Marthe está enxergando o que já aconteceu e o que vai acontecer. 

Em qualquer dos casos, o fogo se apresenta como um símbolo da crise de Berlim. Conforme Kirwan,

Girard sugere que quando símbolos como a praga, o fogo, o dilúvio, etc. aparecem em mitos ou lendas, constituem referências veladas a uma crise mimética crescente”.

Não por acaso, os três símbolos são utilizados na hq: o fogo, nessa página; o dilúvio, nas referências de Kurt à sua sensação de “afogar-se”. A praga, finalmente, pela forma pela qual Lutes sugere a forma da suástica, como uma ameaça etérea de transmissão aérea.

A segunda página nos mostra a construção do muro de Berlim. Não é possível afirmar qual lugar da cidade Lutes decidiu retratar nessa cena. Mas se destaca na imagem a entrada de uma estação de metrô. Em 1961, com a construção do muro, diversas estações de metrô de Berlim foram interditadas: elas eram um ponto de acesso subterrâneo ao outro lado da cidade.

Elas se tornaram conhecidas como “estações fantasma“. O simbolismo dessa divisão não passou desapercebido por ocasião da reconstrução dos antigos limites da cidade nos anos 90: eem uma reforma realizada em 2006, foi incluído um memorial sobre o tema na Nordbahnhof.

Através desse cenário, portanto, Lutes não está nos mostrando apenas a divisão da cidade em dois polos; ele está mostrando isso através da interrupção de uma via de comunicação por um muro.

Na terceira página, Lutes nos mostra uma brecha no muro. À esquerda, é possível ver a Fernsehturm Berlin, a torre de televisão que era símbolo da Berlim Oriental, o que nos indica que estamos nas proximidades da Alexanderplatz. Os grafittis e a ruína parcial nos dizem que essa é uma visão do muro no final de 1989. 

Novamente, podemos fazer algumas associações a partir do que a imagem nos mostra. Em primeiro lugar, a Alexanderplatz está no título do romance expressionista de Alfred Döblin, Berlin Alexanderplatz. O livro, escrito em 1929, é a principal obra literária produzida durante da República de Weimar. A sua influência em Berlim é duplamente reconhecida: na sua bibliografia, Lutes cita tanto o livro quanto a sua adaptação para a televisão, de 1980, dirigida por Rainer Werner Fassbinder. Ela também é perceptível: Berlin Alexanderplatz pode ser descrito como Berlim do mundo marginal da cidade.

Por outro lado, em 4 de novembro de 1989, a Alexanderplatz foi cenário de uma manifestação anti-comunista que é um marco importante no caminho rumo à Queda do Muro [que ocorreria na semana seguinte, em 9 de novembro].

A manifestação, uma das maiores da história da Alemanha, foi convocada por artistas do teatro. Mas eles estavam seguindo uma espécie de tradição.

A revolução pacífica que levou à Queda do Muro se iniciou em Leipzig, ainda em 1989. Leipzig, a segunda maior cidade da Alemanha Oriental, tem uma forte relação com a música. Lá, Bach viveu os últimos 25 anos de sua vida.

As manifestações anti-comunistas, por sua vez, eram realizadas ao redor da Nikolaikirche, igreja em Bach foi diretor musical. Elas se iniciaram com pequenos atos artísticos de desobediência civil. Músicos se dirigiam à praça que existe em frente à Nikolaikirche para tocar as músicas de Bach, individualmente, sem pedir autorização ao governo comunista. As pessoas, naturalmente, paravam para ouvi-los.

Isso, no entanto, era um evidente desafio: qualquer reunião pública precisava ser previamente autorizada, e poderia ser dispersada pela polícia através do uso da força. Os músicos de Leipzig queriam mostrar o caráter autoritário dessa proibição provocando o governo a reprimi-los por tocar Bach ao lado da igreja que ele dirigiu para pessoas que queriam ouvi-los.

O governo comunista caiu na armadilha. Passou a reprimir e prender esses músicos, o que levou a uma escalada nas manifestações. Primeiro, elas tomariam a cidade; por fim, o país. O pequeno desafio da arte foi o primeiro dominó de um caminho que passou por uma convocação de atores de teatro e terminou com a Queda do Muro.

Aquela página, por sua vez, é a primeira em que Lutes faz uso de cores na sua hq. Essas cores são utilizadas para nos mostrar os conhecidos grafittis que estavam no lado ocidental do Muro de Berlim. Eles eram, igualmente, um ato de desafio à existência do muro. Entre os graffitis e a presença da Fernsehturm Berlin, portanto, se pode enxergar uma referência de Lutes à importância da arte no movimento que levou à reunificação alemã — ou seja, como ferramenta para destruição de muros.

Finalmente, a última página de Berlim é uma fotografia da Potsdamer Platz.

De novo, é uma imagem que condensa diversos significados. 

Uma das características marcantes de Berlim é o uso periódico de splash-pages que nos mostram uma panorâmica de uma parte da cidade na abertura de seus capítulos. A primeira vez que esse recurso é utilizado, no capítulo um da hq, é para nos mostrar a Potsdamer Platz.

Na página seguinte, Lutes mergulha, pela primeira vez, na vida de um berlinense anônimo. Ele é o policial responsável por operar o semáforo das ruas que se encontram na praça, a primeira sinalização do tipo da história da Europa. Lutes utiliza a cena para nos mostrar a preocupação doméstica do anônimo operador do semáforo, em contraste com o frenesi do trânsito urbano. Ao encerrar a sua história nesse mesmo lugar, valendo-se de um ângulo similar para retratá-la, Lutes reforça o caráter cíclico de sua história.

A própria história da Potsdamer Platz nos sugere essa conexão. Durante a República de Weimar, ela se tornou o epicentro da Alemanha urbana, a Time Square da Europa continental. Durante a Segunda Guerra Mundial, no entanto, ela foi totalmente destruída. Finalmente, foi dividida pelo Muro de Berlim e se tornou uma gigantesca Terra de Ninguém no que era o coração da cidade.

Potsdamer Platz, 1932 [fonte]
1945 [fonte]
1977 [fonte]

Existe uma famosa cena em Asas do Desejo, o filme de Wim Wenders, que está ambientada na Potsdamer Platz da década de 80. É um cenário desolador. 

Asas do Desejo, de Wim Wenders [1987]

O seu esplendor foi restaurado com a reunificação da Alemanha, na década de 90. Hoje em dia, e conforme nos mostra a foto de Lutes, ela é novamente o epicentro da modernidade urbana alemã e um símbolo da reconstrução da cidade.

O seu status foi restaurado. Nesse sentido, ela pode ser interpretada como um símbolo da capacidade da cultura da Alemanha dos anos 20 de perdurar.

Quase todos os artistas que foram citados por Lutes foram considerados como degenerados pelos nazistas. Mas a arte deles se espalhou pelo mundo — inclusive através de uma hq desenhada por um artista americano, publicada originalmente por uma editora canadense, sobre a capital da Alemanha.

Berlim é uma hq ambígua, o que é quase uma decorrência necessária da forma pela qual Lutes usa símbolos em sua narrativa. 

City of Lights, o título do último volume, pode ser interpretado, em um primeiro momento, como um comentário ambíguo ao fogo que consome a Porta de Brandemburgo e que destruiria a Alemanha na década de trinta e quarenta — a crise de Berlim, conforme antes argumentado.

Mas essa última página nos mostra que a influência da Berlim dos anos 20 perdura no que ela teve de melhor: não na destruição iminente, mas na sua efervescência criativa — na arquitetura de Walter Gropius, ou nos filmes de Fritz Lang e nas pernas de Marlene Dietrich. No jazz de City of Smokes.

Em Weimar Culture, Peter Gay diz que…

“A empolgação que caracterizou a cultura de Weimar tinha por eixo, em parte, criatividade exuberante e experimentação; mas muito dela era ansiedade, medo, uma crescente sensação de perdição. Com alguma justiça, Karl Mannheim, um de seus sobreviventes, alardeava, não muito antes de seu fim, que anos futuros olhariam para Weimar como uma nova era pericleana. Mas foi uma glória precária, uma dança à beira do vulcão. A cultura de Weimar foi a criação de marginalizados, jogados pela história para o centro, por um momento curto, confuso e frágil”.

O que Lutes diz com essa sequência final é que esse momento foi confuso e frágil, mas não curto. O que ele diz é que a criação é o remédio contra a destruição. É preciso, apenas, perdurar: ter a resiliência do silencioso trabalhador anônimo que opera o semáforo em meio ao furor urbano. E, como a Potsdamer Platz, a cultura de Weimar perdurou.

4.
Uma cidade real,
imaginada

Metropolis, de George Grosz [1917, fonte]

Depois da introdução, na segunda parte desta resenha, tentei explicar como Berlim usa a história da República de Weimar, um lugar e um período histórico determinado, de forma girardiana, para denunciar um fenômeno histórico, a ascensão do totalitarismo e a supressão das individualidade.

Na terceira parte desta análise, por outro lado, tentei expor que Lutes conta essa história de uma forma simbólica, valendo-se de referências saídas da história da arte. Para exemplificar isso, tentei mostrar como Lutes, nas páginas finais da hq, nos apresenta uma sequência de imagens carregadas de significado que formam uma narrativa.

Essas páginas finais, por sua vez, também nos mostram outra característica de Berlim: a própria cidade é um elemento fundamental para entendê-la. Mais do que um espaço físico em um momento concreto, os diferentes cenários das últimas páginas da hq nos mostram a forma pela qual significados são agregados ao longo da história naquele espaço. Lutes não está desenhando a cidade como ela é; ele está desenhando a cidade como os seus moradores a experimentam: atribuindo-lhe significado. 

Existe, nisso, uma lógica e um método. Lutes faz de Berlim uma cidade real, mas imaginada; e, dos quadrinhos, o instrumento para você enxergá-la assim.

4.1 Real e imaginada

Logo no início de Berlim, Kurt, apresenta a cidade para Marthe a partir do nazista que dorme com as seguintes palavras:

“O nosso amigo… ele é um das múltiplas facções que se enfrentam nas ruas com frequência crescente. Comunistas, socialistas, nacionalistas, democratas, republicanos, criminosos, pedintes, ladrões, e tudo que existe no meio. Todos misturados”.

Essa lista, com o passar das páginas da hq, se revela curta. Berlim nos mostra histórias de todas as facções citadas por Kurt, através dos indivíduos que as integram. E a esses ela acrescenta mais uns quantos: prostitutas, aristocratas, mendigos, veteranos, policiais, garçons… City of Smoke, o segundo volume, é essencialmente centrado em uma banda de jazz americana que está em Berlim fazendo um tour.

Isso faz de Berlim, em primeiro lugar, um palco onde diferentes pessoas interagem. Mas também define a cidade a partir da interação dessas pessoas. Assim, o capítulo seguinte já nos é contado desde o ponto de vista de Marthe, que relata a sua chegada à cidade em seu diário. Ela termina o seu relato com pequenos esboços, que transformam em símbolos a sua experiência.

O relato, por sua vez, foi escrito no seu quarto, em um cortiço que foi inspirado na pintura Berlin Hinterhäuser, de Franz Lenk:

Se Berlim é, ao mesmo tempo, um gibi objetivo e subjetivo, é porque Lutes quer nos mostrar a cidade desde o ponto de vista dessa dinâmica. A cidade é real, concreta, mas não é construída por prédios: ela é construída pelas impressões subjetivas de seus habitantes. Lutes nos convida a interpretá-la dessa forma explicitamente em diversas oportunidades.

Em City of Stones, por exemplo, um militante comunista explica para um grupo de jovens, na ponte da qual o cadáver de Rosa de Luxemburgo foi arrojado, a sua morte. Ele está ensinando para aqueles garotos a revolução de novembro de 1918, a gênese da República de Weimar, como um ato de traição.

Dessa cena, somos transportados para uma sala de aula. Lá, a professora ensina para os seus alunos que a revolução foi uma resposta ao ato de traição do Kaiser — a sua covardia e consequente renúncia. A República, ela diz, é um lugar onde todos somos livres. 

Ato seguido, ela reprime um aluno. Ele, evidentemente filho de simpatizantes nazistas, atribui a traição aos alemães que não apoiaram o esforço de guerra.

É o mesmo evento histórico, didaticamente apresentado a partir de três pontos de vista conflitantes, que se manifestam de diferentes formas em diferentes lugares.

Existem outros exemplos mais sutis. Veja como, neste momento, a narrativa em quadrinhos permite que uma rua seja, ao mesmo tempo, uma via urbana ordinária e o cenário do massacre:

Já que estamos aqui, perceba como, no primeiro quadrinho, Lutes usa balões de pensamento para nos mostrar a vida interior dos moradores da cidade.

A sutileza desse exemplo pode esconder a sua sofisticação.

Perceba como a rua se revela como o cenário de um massacre subitamente. Saltos temporais são frequentes em Berlim. Eles nos mostram, algumas vezes, a atemporalidade do fluxo de consciência: personagens mergulham no próprio passado quando provocados. Em outros, como nesse, eles nos mostram que o espaço urbano, mais do que por cimento e pedras, é formado pela lembrança do que neles aconteceu, que neles está sempre presente.

Por outro lado, a esquina se apresenta como uma rua ordinária quando a protagonista da cena está procurando por ela. Ela se transforma no cenário do massacre quando a cena é dominada por transeuntes desocupados. É como, portanto, se ela estivesse revelando a sua verdadeira natureza naquele momento.

É por isso que em Berlim existem tantas referências à arte, em especial a obras que retratam a cidade na época. Já comentei a inspiração da hq em Berlin Alexanderplatz, de Döblin. Mas Lutes também cita The Jewish Wife and other short plays Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht, The Berlin Stories, de Christopher Isherwood, Three Farmers on Their Way to a Dance, de Richard Powers, e Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque. 

Do cinema, além da adaptação para televisão de Berlin Alexanderplatz e do filme Asas do Desejo, Berlim também tem o deslumbramento com a vida urbana de Berlim, como um exemplo de metrópole dos anos 20 do século passado, que está presente em Berlin – Die Sinfonie der Großstadt, de Walter Ruttmann.

Nas artes visuais, além daquelas obras que já foram citadas explicita ou implicitamente ao longo do texto [em especial as de De Chirico], vale mencionar mais algumas.

A aparência de David Schwartz foi inspirada na pintura Zeitungsjunge, de Conrad Felixmüller, de 1928:

A gravura C’est la Guerre [1915-1916], de Félix Vallotton, parece ter sido uma inspiração para a cena da morte de Theo:

O encontro de Marthe com outros alunos no terraço da Academia de Arte lembra Estúdio no Terraço, a pintura Dada de Rudolf Schlichter [1922]:

A ambiguidade que Marthe experimenta em City of Smoke lembra, com frequência, Sie repräsentiert [Faschingsszene], de Jeanne Mammen [aproximadamente 1928]:

Por fim, Lutes reproduz, ainda em City of Stones, Aus meinem Fenster, de Hanns Kralik [1930]:

É verdade que Aus meinem Fenster [que significa alguma coisa como “vista da minha janela”] foi pintado por Kralik em Düsseldorf [e, consequentemente, não nos mostra Berlim]. Mas isso não significa que Lutes esteja despreocupado com a factualidade. Ele mesmo comentou, em entrevista, que a parte difícil de fazer Berlim foi encontrar referências fotográficas de ambientes ordinários [casas de trabalhadores, etc] que lhe possibilitasse reproduzi-los de forma fidedigna. Uns quantos personagens tiveram a sua aparência física inspirada nos retratos fotográficos de August Sander, reunidos no livro Antlitz der Zeit.

Significa, apenas, que ele entende que essa factualidade da representação literal é ilusória. O que ele está tentando nos mostrar é como a cidade verdadeiramente é, e isso só pode ser enxergado com os olhos da imaginação. Berlim, a hq, é, de certa forma, um mapa. Mas não é um mapa das ruas da cidade: é um mapa da imaginação da cidade.

4.2 Imaginada em quadrinhos

Os quadrinhos não poderiam ficar de fora do festival de obras de arte que Lutes cita em Berlim.

Existem, de novo, obras que são citadas de forma explícita. Assim, ainda no primeiro volume, um dos alunos da Academia de Arte se revela um fã de Mein Stundenbuch, de Frans Masereel — uma narrativa em gravura/proto-graphic novel. 

É possível, ainda, encontrar algumas das ideias de Berlim em outras hqs, todas elas de grandes mestres dos quadrinhos. 

Assim, a estética Cabaret e as peças de Bertolt Brecht são influências que se percebem na obra de Alan Moore. Entre as hqs mais conhecidas de Moore, ainda, temos uma recriação de época de uma capital europeia: Do Inferno. Uma de suas cenas mais conhecidas envolve um passeio turístico por um mapa simbólico da cidade.

A representação ficcional de um momento histórico concreto, através de uma linguagem que confunde as fronteiras entre uma coisa e outra, lembra Maus. A hq de Art Spiegelman também desafia as classificações de gênero convencionais. É famosa a sugestão do próprio Spiegelman no sentido de que Maus deveria ser classificado na categoria “non-fiction/mice”, “não-ficção/camundongos”.

Por outro lado, Berlim pode ser descrito como uma coleção de pequenas histórias sobre pessoas comuns, de pretensão literária, contadas em preto e branco. Se descrito dessa forma, a hq lembra as graphic-novels de Will Eisner. Como visto, Marthe, ainda por cima, mora em um cortiço.

Mais do que as citações explícitas, ou como é possível associá-lo, tematicamente, a outros grandes quadrinistas, é interessante perceber como Lutes usou os quadrinhos como ferramenta; de que forma o meio permitiu que ele combinasse a cidade objetiva com as impressões subjetivas de forma a desenhar aquele mapa imaginativo.

Existe, nisso, algum parentesco entre a Berlim de Lutes e as praças das obras de De Chirico. Berlim e a praça são um espaço urbano, interpretado de forma simbólica, normalmente associando a sua falência à incomunicação.

Mas Lutes, para tratar desse tema, foi menos metafísico e usou principalmente as ferramentas fornecidas por um dos maiores quadrinistas de todos os tempos: Hergé.

Essa escolha tem, já de início, uma virtude: ela é coerente. As primeiras hqs de Hergé são do final da década de vinte do século passado. São, portanto, contemporâneas ao período retratado em Berlim, o que sugere uma relação estética pertinente.

Mas é, principalmente, uma escolha útil. O traço de Hergé é extremamente versátil. Ele une quadrinistas cujo estilo é cartunesco, como o espanhol Ibañez, a quadrinistas adultos e realistas, como Vittorio Giardino.

Mortadelo y Filemón, de Ibañez [¡A las armas!, de 1974]
Quick & Flupke, de Hergé [página original, 1933]
Tintin en Amérique, de Hergé [versão colorida de 1945]
Jonas Fink, vol. 2: Le libraire de Prague, de Vittorio Giardino [2018]

Essa versatilidade é extremamente útil para Lutes, que está desenhando uma história em que existe uma realidade interpretada por diversos pontos de vista. No estilo de Hergé, cabem, sob o manto de uma estética coerente, a variação que os diferentes aspectos de Berlim exigem. A hq que tem aquele splash-page da Potsdamer Platz é a mesma que nos mostra um assalto a um açougue em linguagem de gag:

Por outro lado, a narrativa de Hergé é extremamente dinâmica. Isso significa que a história tem ritmo acelerado. Em praticamente cada canto inferior da página da direita existe um pequeno cliffhanger. A narrativa é concentrada nas ações dos personagens. Até mesmo os seus sentimentos se manifestam externamente: eles se surpreendem com um salto e afligem-se correndo.

Em relação ao ritmo, perceba como Lutes também esconde surpresas para o leitor para o canto inferior da página da direita nas três primeiras páginas de Berlim. Tenha em conta que a história começa pela página que está do lado direito da encadernação:

Quem vai entrar no compartimento?
O que ele vai ver no livro?

Por outro lado, em relação ao comportamento dos personagens, Berlim é um gibi pouco fantasioso. A própria narrativa visual é objetiva: predominam planos abertos e ângulos retos. Os sonhos dos personagens podem ser enigmáticos, mas não são abstratos e inertes.

São duas características que colaboram com a proposta de Berlim pelo contraste. É ao fazer do sonho dos personagens uma experiência física que Lutes borra a fronteira entre fato e ficção. Por outro lado, é por imprimir à história um ritmo dinâmico que Lutes consegue fazer com que os momentos de silêncio e inércia tenham um valor simbólico imediatamente perceptível. 

Por fim, a dinamicidade dá uma aparência teatral para o desenho de Hergé. Ajuda que ele use elementos típicos da narrativa dos quadrinhos [os sinais gráficos que indicam movimento e impacto, por exemplo] de forma tão perceptível. Berlim, como também Hergé, faz isso com a grade de quadrinhos. As bordas dos quadrinhos são claramente delimitadas, e as páginas dificilmente tem menos de 11 ou 12 quadrinhos. Lutes usa balões de pensamento, e não textos de apoio.

Existe nisso, novamente, aquele contraste. Os personagens de Berlim são pessoas comuns extremamente verossímeis: nenhum deles usa a cueca por fora das calças ou é capaz de voar. Ao mesmo tempo, Lutes não deixa você esquecer que está lendo uma história: eles são reais, mas imaginados, como a própria cidade.

Mas também existem pelo menos dois recursos narrativos que Lutes usa em Berlim que não saíram das hqs do Hergé, mas que merecem destaque.

O primeiro parece saído de Aqui, de Richard McGuire. É possível que tenha saído de lá mesmo: a história de McGuire foi originalmente publicada na revista Raw em 1989. O próprio Lutes diz que foi “recuperado” como leitor de quadrinhos ao descobrir a revista.

Ele consiste em sobrepor, sobre um cenário, quadrinhos que representam diferentes momentos no tempo. É uma forma de se usar a representação do tempo no espaço, uma característica única da linguagem das hqs. Um exemplo de como McGuire faz isso é essa página:

Por outro lado, um exemplo de como Lutes faz isso são esses dois quadrinhos:

A divisão da cena em dois quadrinhos nos diz que entre um e outro transcorreu um período de tempo. Mas a estaticidade dos quadrinhos sugere uma unicidade nas duas ações. Também nos convida a perceber a cena desde o ponto de vista da Porta de Brandemburgo. Eis aí um excelente exemplo da cartografia simbólica de Berlim: a porta que os jovens soldados cruzaram no passado é a mesma pela qual eles voltaram, cansados e veteranos, no futuro; no presente, ela representa as duas coisas ao mesmo tempo.

Não consegui traçar uma origem tão precisa para o segundo recurso que merece destaque. Ele parece, no entanto, importado dos mangás. Consiste em desdobrar uma determinada ação em tantos quadrinhos que eles quase se transformam em impressões fragmentadas sobre um acontecimento.

Existe, no entanto, uma peculiaridade na forma pela qual Lutes faz isso. A forma pela qual ele estica uma ação em uma tira de quadrinhos lembra as experiências de Eadweard Muybridge com a captação de movimento em fotografias.

Percebam, no entanto, a engenhosidade de Lutes ao utilizar esse recurso na composição daquela página da Porta de Brandemburgo:

Objetivamente, se pode dizer que toda a cena está resumida em cinco dos seis quadrinhos que formam a última fila das duas páginas. Se Muybridge estivesse lá, é isso que ele captaria com a sua máquina fotográfica. Mas Lutes acrescenta na página outros 16 quadrinhos, que nos mostram todos os nuances daquela cena. Se Muybridge largasse a sua câmera, são essas impressões que ele captaria.

Nessa cena, Kurt lembra do momento em que conheceu Margarethe. São duas pessoas no banco de uma praça, diante da derrota na Primeira Guerra — o fim do mundo. Não há como reproduzir essa memória, dessa forma, com uma câmera fotográfica. Você pode apenas desenhá-la em uma grade de quadrinhos.

5.
O homem comum,
enfim

Pintura central do tríptico Metrópolis, de Otto Dix [1927]

Uma narrativa girardiana sobre a falência da República de Weimar. Uma narrativa simbólica. Um mapa imaginário de uma cidade real, em quadrinhos. Mas o que Lutes faz de mais impressionante em Berlim não é nada disso. É mostrar tudo isso na vida de pessoas comuns.

Já no início da hq Lutes nos dá uma página que nos mostra o dilema do operador do semáforo da Potsdamer Platz com o seu almoço. Isso é uma constante na hq: como em Asas do Desejo, Lutes nos mostra periodicamente os pensamentos dos moradores comuns da cidade.

Essa é uma das formas pela qual Lutes nos convida a interpretar a história desde o ponto de vista subjetivo dos moradores de Berlim: nos mostrar constantemente a vida urbana pelo ponto de vista do homem comum.

Mas Lutes não faz isso apenas de forma anedótica: os temas de Berlim, a crise da República de Weimar, interpretada de forma girardiana, a desconfiança na solução violenta e a saída pela arte, estão articulados na vida de seus protagonistas. 

5.1 Kurt Severing e Marthe Müller

Berlim é uma hq com muitos protagonistas. Mas, no eixo central de história, estão Kurt Severing e Marthe Müller, os personagens que se conhecem no trem no início da história, se transformam em um casal no final do primeiro volume e se separam no segundo volume.

Tanto separadamente, quanto como um casal, as histórias de Kurt e Marthe tocam nos temas centrais da hq.

Kurt nos apresenta esses temas desde o ponto de vista da falência da ordem. No início da hq, no já citado texto sobre a construção de um muro sobre o pântano de Berlim, Kurt associa ordem a progresso, em oposição ao caos da desordem. É fácil associar essa visão aos ideais liberais de Weimar: ele acredita que esses são o “muro de palavras” que resultaram em uma cidade positivamente ordenada.

Ao longo da história, no entanto, ele acompanha a destruição daqueles ideais pela crise de hierarquia e de indiferenciação, pela escalada para os extremos e pelo domínio do totalitarismo no “diálogo” público. 

Da sua obsessão com essa última já tratamos na parte 3.1.e desta análise: é ele que tem pesadelos com os trens de Berlim. Em relação à crise de hierarquia e indiferenciação, é perceptível a sua aversão ao Jazz [parte 2.1 desta análise]; ele também enxerga os ideais supostamente liberais da República de Weimar como uma tentativa de transformar um “pântano” em um muro [ou seja, estabelecer uma ordem no caos indiferenciado]. 

Mas, como Kurt é jornalista, ele percebe isso de forma especialmente clara em relação à progressiva impossibilidade de comunicação que toma conta de Berlim. Na história, ele ajudou na reportagem do jornalista e pacifista Carl von Ossietzky, seu amigo, que, na revista Die Weltbühne, revelou os esforços da Alemanha em reconstruir a sua força aérea, infringindo o tratado de Versailles, ainda nos anos 20. 

Kurt, e com ele o leitor, acompanha o julgamento de von Ossietzky por traição como uma progressiva descrença no caráter democrático da própria República de Weimar. Ossietzky foi preso por traição ainda em 1931, antes mesmo da vitória eleitoral do NSDAP na eleição de julho de 1932, e morreria, já sob a custódia da Gestapo, em 1938. 

A iminente tragédia alemã se torna clara, aos olhos de Kurt, no momento em que ele constata o apoio de Margareth, a sua ex-amante, ao partido nazista. É uma cena que parece uma paródia de Nosferatu. É a jornada do herói invertida: é a jornada de Kurt na direção de um castelo medieval para testemunhar a união do vampiro com a sua amante.

Essa desilusão se manifesta, primeiro, na sua tentativa de submeter-se ao partido comunista; depois, em um estado de passividade quase catatônico, do qual ele é finalmente salvo por outro personagem real da hq: o poeta satírico Joachim Ringelnatz. Ao tentar procurar uma resposta filiando-se ao partido comunista, ele finalmente se dá conta de que a verdadeira oposição é entre a violência e a palavra:

Entre esses três momentos, ele percebe que a ordem que acreditava ser válida havia sido corrompida pelo nihilismo para tornar-se tirania; mergulha no silêncio e na desilusão; é resgatado pela arte. São os grandes temas da hq, desde o ponto de vista da falência da ordem, apresentados como drama pessoal.

É possível interpretar Marthe, por outro lado, como uma analogia à Alemanha moderna.

Ela é originária de Colônia, e isso não parece ser uma coincidência. A cidade é utilizada nesse sentido, por exemplo, na série Babylon Berlin. O motivo disso é que Colônia não foi totalmente capturada pelo furor pró-nazista: nas eleições de julho de 1932, o partido vitorioso na região em que ela está inserida foi Deutsche Zentrumspartei [DZ], Partido do Centro Alemão. É um partido de orientação católica, mas centrista [como o seu nome indica]. Mesmo nas eleições para chanceler de março de 1933, realizadas após o incêndio do Reichstag, a região de Colônia foi uma das duas únicas em que Hitler não foi vitorioso. Ela pode ser vista, portanto, como um símbolo da Alemanha que não foi possuída pelo fascismo.

Não suficiente, durante todo o período da República de Weimar, o prefeito de Colônia foi Konrad Adenauer. Adenauer se tornaria chanceler da Alemanha em 1949, permanecendo no cargo até 1963. É o período em que a Alemanha moderna foi construída; Adenauer talvez seja o principal engenheiro da obra. 

É mais interessante pensar em Marthe, no entanto, como o outro lado da jornada de Kurt. Ela não chega a Berlim fascinada com a ideia da construção de um muro sobre o pântano da indiferenciação. Isso é perceptível na cena explicada na parte 3.1.e desta análise: Marthe se alegra ao ver a neve sobre os trilhos de trem porque a hierarquia que esses representam está sendo coberta pela indiferenciação que aquela produz. Nas palavras da própria personagem, a neve “muda as regras… livra a cidade da lógica e da geometria”.

Como estudante de arte, Marthe rompe com o expressionismo, com o academicismo e com a Nova Objetividade por não acreditar que a arte possa ser produzida a partir de uma concepção fixa, sujeita às regras de um estilo. Para ela, ordem já é tirania; consequentemente, indiferenciação é liberdade. 

Isso, no entanto, também se revela uma ilusão: em City of Smoke, a liberdade se revela caos. Marthe, influenciada por Margareth, mergulha no submundo noturno, niilista e hedonista, de Berlim.

De fato, diante da jornada de ingenuidade a maturidade da personagem, quase se poderia dizer que Berlim é um romance de iniciação de Marthe. De novo, essa jornada nos apresenta os grandes temas da hq como drama pessoal. Mas, agora, o ponto de vista é o da falência da liberdade.

Existe, finalmente, a história do relacionamento de Kurt e Marthe. Kurt é um jornalista e, consequentemente, um escritor. Marthe, por sua vez, é uma artista — ou seja, uma desenhista. É fácil perceber, portanto, que o relacionamento dos dois reproduz a dinâmica da linguagem dos quadrinhos: une texto e imagem.

O período de tranquilidade do relacionamento entre os dois, por outro lado, ocorre quando Kurt decide escrever uma reportagem sobre Blutmai. É um relato oral: ele entrevista pessoas comuns que testemunharam o massacre, enquanto que Marthe tenta retratá-las — não de forma objetiva, mas como uma caricaturista que não tem por objetivo produzir riso.

Sherman Alexie, na introdução de Jar of Fools, diz que “Lutes escreve como Hemingway — claro, conciso, sem adornos, masculino — mas desenha como Faulkner desenharia — misteriosamente, fragmentado, assustador e infinito“. Ainda que talvez fosse preferível que ele tivesse comparado Lutes a outros quadrinistas, isso é exatamente certo. E, no relacionamento de Kurt e Marthe, Lutes transpôs isso para os personagens de sua história.

Ou seja, ele personificou em Kurt e Marthe a forma pela qual abordou aqueles grandes temas: conjugando texto e imagem para retratar o ponto de vista de pessoas comuns sobre um fato histórico ocorrido em determinado ponto da cidade. É a linguagem da hq, personificada em um casal. É o potencial dos quadrinhos, aplicado para mostrá-lo. 

5.2 Jason Lutes

Ainda que Berlim seja uma das hq mais ambiciosas dos últimos trinta anos, Lutes não se transformou em uma grande estrela dos quadrinhos. Diante do seu plano original, mais surpreendente é que ele não tenha morrido de fome. Lutes, no final, desistiu até mesmo de ser um starving artist.

De fato, ele se tornou professor do Center for Cartoon Studies, em Vermont, curso de quadrinhos dirigido pelo seu amigo James Sturm — a mesma pessoa que lhe indicou para o The Stranger no início de sua carreira. Ele mora em uma pequena propriedade rural e se dedica, nas suas próprias palavras, a criar dois filhos, quatro portos e quarenta galinhas:

“Em alguns momentos, foi difícil. Sabe como é, você tem 28 anos e toda a energia do mundo e está comprometido a pagar aluguel baixo e comer miojo enquanto eu morasse em no meu apartamento. E nesse contexto eu conseguiria desenhar 50 páginas por ano. E então, você sabe, a vida dá o seu jeito de ficar maior e te envolver mais, e você se apaixona e tem filhos e acaba arrumando outro emprego para pagar as contas”.

Berlim, mesmo que não seja uma hq autobiográfica, ainda é profundamente pessoal. Foi concebida enquanto Lutes morava na Seattle nos anos 90. O próprio já comparou a efervescência cultural e política do período, entre o grunge, os coletivos de quadrinistas que Lutes integrava, e os protestos anti-globalização, com a Berlim de Weimar. Em Rules to Live By, ele afirma que enxerga o mundo através de metáforas — talvez até demais.

Rules to Live By

Lutes desistiu de suas pretensões: ser um artista, ser um quadrinista, ser um starving artist. Não desistiu, no entanto, de tentar desenhar uma página por semana, mesmo depois que nem isso foi mais possível.

Como a própria hq, a vida de Lutes ao produzi-la parece a reivindicação de um método: o da vida ordinária. Naquele ritmo, com um emprego, dois filhos, quatro porcos e quarenta galinhas, Lutes construiu a sua magna opus: uma obra sobre a vida de pessoas que, como ele, são comuns; e sobre como a arte pode salvar-nos em tempos de crise.

P. s.
vielen Dank
für alles

É a hora de distribuir créditos e agradecimentos.

Para escrever a primeira parte deste texto, eu li e ouvi uma série de entrevistas que Lutes deu ao longo dos últimos vinte anos. A melhor delas é essa, que foi conduzida por Greg Stump e publicada no The Comics Journal n. 228, em novembro de 2000.

Escrever a segunda parte, por outro lado, foi possível graças a uma série de leituras sobre René Girard. Além daqueles livros que foram expressamente citados ao longo do texto [O Bode Expiatório, Rematar Clausewitz e A Violência e o Sagrado, do próprio Girard, e Teoria Mimética –  Conceitos Fundamentais, de Michael Kirwan], foram esclarecedoras as entrevistas que Maurício G. Righi, autor de Sou o Primeiro e o Último, deu sobre o assunto. Duas merecem menção especial: a que ele deu para o podcast Extremistão e a que saiu no Bunker do Dio [parte 1 e parte 2].

Falando no Bunker do Dio, o agradecimento é devido a Dionisius Amendola em dose quádrupla. Além de entrevistar Maurício G. Righi [agradecimento 1], ele me recomendou a leitura de diversos livros girardianos [agradecimento 2]. 

Além disso, a ideia de ler Berlim sob a lente da teoria mimética surgiu enquanto escrevíamos uma série de quatro ensaios sobre O Cavaleiro das Trevas [agradecimento 3]. Esses ensaios, que desenvolvem as ideias discutidas no podcast Episódio Piloto sobre a hq, utilizam René Girard para interpretar a hq de Frank Miller. Para ouvir o podcast, que existe graças ao inestimável esforço de Douglas, você deve clicar aqui: parte 1, parte 2. Para ler os ensaios, você precisa se tornar apoiador do Bunker do Dio.

O agradecimento 4 é devido pela terceira parte do texto. A análise das pinturas O Ceifador e A Noite Estrelada do Van Gogh foi inspirada, pra não dizer copiada, desse vídeo, também disponível no Bunker.

Já que você está lá no site do Bunker do Dio, aproveite para assistir essa conversa com Luis Villaverde sobre expressionismo alemão. Você não vai só se manter na época pertinente, como também vai fazer justiça. Foi o Luis que me recomendou o livro de Lotte Eisner, A Tela Demoníaca, que foi citado na segunda parte deste texto. A parte do texto que fala sobre Expressionismo e Nova Objetividade existe basicamente por conta do livro de Lotte e de Del expressionismo al nazismo, de Lionel Richard.

A análise das outras pinturas tem uma série de fontes que eu não fui diligente o suficiente para registrar. Art: A New History, de Paul Johnson e Solar Dance, de Modris Eksteins são duas delas. É uma pena que eu não tenha conseguido citar esse último livro mais vezes. Ele é excelente, no entanto, para eventuais leitores deste texto que também tenham interesse no Direito: ele trata do julgamento de Otto Wacker, acusado de plagiar Van Gogh, nos últimos anos da República de Weimar.

Por fim, existe um excelente vídeo sobre Chuva, Vapor e Velocidade – O Grande Caminho de Ferro do Oeste, no YouTube, produzido pela própria National Gallery de Londres [onde a pintura está exposta], que também foi muito útil. Ele faz parte da série Talks for All, e é apresentado por Christina Bradstreet.

Berlim, principalmente pela inventividade formal de Lutes, recebeu considerável atenção acadêmica. Isso, por sua vez, foi de imensa ajuda para elaborar a parte cinco deste texto.  Os artigos também foram úteis para identificar as diversas obras citadas por Lutes na hq. Os três artigos que aqui devem ser registrados são os seguintes: The “Big Picture” as a Multitude of Fragments: Jason Lutes’s Depiction of Weimar Republic Berlin, de Lukas Etter, publicado no livro Transnational Perspectives on Graphic Narratives: Comics at the Crossroads; The City as Archive in Jason Lutes’s Berlin, de Anthony Enns, publicado no livro Comics and the City; e Jason Lutes’s Berlin as Metafiction, de Matthias Köhler.

Todas essas pessoas seguiram, talvez sem sabê-lo, o conselho que Lutes nos dá em Berlim, e eu espero que eles não precisem esperar por vinte anos para ver seus esforços frutificarem.

Enquanto este texto era escrito, a Veneta colocou a edição nacional e integral de Berlim em pré-venda. Você pode comprá-la aqui e na Amazon, aqui. A edição importada e integral está também disponível na Amazon, e você pode comprá-la clicando aqui. Lutes já anunciou o seu próximo projeto, Arizona 1865. Não há, no entanto, previsão para o seu lançamento.

A Queda da Grande Babilônia: Berlim de Jason Lutes
Berlin: City of Stones, Berlin: City of Smokes, Berlin: City of Light
Jason Lutes
[Drawn & Quarterly, 2000/2018]