Patience, de Daniel Clowes: “Sou apenas um primata sedento de sangue?”

* * * *
Patience
Daniel Clowes
[Fantagraphics, 2016]
Daniel Clowes trabalhou em Patience por aproximadamente cinco anos. É o seu primeiro encadernado 100% novo, que nunca foi serializado em outro lugar antes de ser publicado em capa dura. Também é o seu trabalho mais novo. Ele pode não gostar do termo [eu também não; seja uma boa pessoa e não goste dele também], mas dá para dizer que essa é a sua primeira graphic novel original.
Só isso já seria suficiente para garantir o hype em torno do gibi — e a Fantagraphics foi lá e tocou um monte de dinheiro na divulgação dele. Não existem cenas de horas de nerds esnobes [a pior coisa de Clowes é o sucesso que ele faz entre críticos esnobes] invadindo as livrarias atrás de Patience porque provavelmente todos eles receberam uma cópia em casa para resenhar.
No início, deu certo. Também, tudo que você pode esperar de um gibi do Clowes, Patience tem, e isso se traduziu na empolgação do resenhismo inicial.
Apesar de ser uma história longa, Patience é dividido em partes, cada uma delas em um momento da história. Começa no presente [2012], quando Patience [que, além do título do gibi, é o nome da esposa do protagonista] e seu marido, Jack Barlow, descobrem que ela está grávida — apenas para que ele chegue em casa e encontre ela assassinada trinta páginas depois. Pula para o futuro [2029], quando um Barlow ainda obsessionado com o assassinato descobre a existência de uma forma de viajar no tempo. Retorna para o passado [2006], quando ele vai investigar a vida de Patience antes de conhecê-lo, tentando desvendar o crime. Vai mais para o passado [1985], quando as coisas dão errado em 2006 e ele se vê obrigado a viajar desordenadamente no tempo. Finalmente, volta para o presente, no dia anterior à morte de Patience.


Alguns desses trechos são versões em miniatura de gibis anteriores do Clowes. A vida de Patience na pequena White Oak de 2006 tem o small town malaise de Ghost World: ela volta para a cidade, onde só a mediocridade lhe espera, depois de não conseguir entrar em uma universidade. O futuro tem a alienação e a sensação de apocalipse iminente de David Boring: Barlow diz que as coisas melhoraram no país, mas o cenário lhe desmente [é um mundo plastificado e hipersexualizado]. 

Já 1985 tem confusão mental e o investimento emocional de um pesadelo: lembra Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro. Também tem o psicologismo de várias histórias curtas de Clowes [como Black Nylon]: Barlow aproveita que está no passado para revisitar a sua infância. Em Chicago [onde o próprio Clowes cresceu], encontra a sua mãe: como a prostituta que lhe falou sobre a possibilidade de viajar no tempo, ela é uma versão de Patience. O próprio Barlow constata isso, ao comentar o seu desejo de se casar com ela: até o menos freudiano entre vocês deve perceber as conexões edipianas dessa ideia. Mais: Barlow “se encontra” com o seu eu-criança. Os dois jogam uma bolinha: o pequeno Barlow é um fã de esportes e a ação transcorre em 2 de dezembro de 1985, dia de uma das mais doloridas derrotas do Chicago Bears [para o Miami Dolphins de Dan Marino], time de futebol americano da cidade [ver também: apocalipse iminente].

Como em David Boring e Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro, o protagonista de Patience é um homem em crise com uma missão. Essas três hqs, inclusive, formam uma trilogia temática sobre homens em crise — o Barlow do início de Patience inclusive tem o mesmo jeito insosso de David Boring.
Depois, é claro, ele vira uma caricatura de detetive hard-boiled, mais ou menos como Andy de The Death-Ray é uma caricatura de super-herói. O que nos leva à mistura de gêneros: Patience é sci-fi de suspense detetivesco. A ficção científica parece, de novo, com o super-heroísmo de The Death Ray: não tem muitos detalhes técnicos.
Os personagens também são típicos do Clowes. No início da história, Barlow e Patience tem um relacionamento que lembra uma versão romântica e adulta de Enid e Rebecca: é a visão que Clowes tem de um relacionamento ideal, todos os envolvidos reclamando de tudo o tempo todo.

O inventor da máquina do tempo é um nerd-fraldão tarja preta como Dan Pussey. Para fechar, Patience tem o estilo oscilante de Wilson: o traço oscila entre mais e menos realista. Em uma ponta nós temos aqueles retratos hiper-detalhados de um dos personagens encarando o leitor em um momento emocionalmente intenso, como no início de cada capítulo de Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro. Na outra, temos Clowes beirando Charles Schulz.
Mas, no fim, o hype foi obscurecido: apesar de todas as resenhas positivas iniciais, Patience não encabeçou as listas de melhores do ano [no próprio site da Fantagraphics, o anúncio do gibi fala apenas na lista do The Vulture, onde o gibi ficou em sétimo, e na da revista de música Under the Radar, onde foi segundo].
Mesmo nas que ele figurou, parecia estar lá por ser o novo gibi de Clowes, ou pelos motivos errados. Um dos personagens é um apresentador de tv nacionalista, meio que um Glenn Beck, que vira presidente dos EUA. Ele é evidentemente retratado de forma negativa. No The Guardian, virou uma analogia a Donald Trump e voilá, a hq [publicada em março de 2016, escrita entre 2010 e 2015, uma época em que o próprio The Guardian ignorava Trump] virou “atual” e “necessária”.

Isso tem uma explicação: apesar de ter tudo que você pode esperar de um gibi do Daniel Clowes, Patience também é o seu gibi menos Daniel Clowes.
Ele pode odiar o termo, mas essa é a sua hq que mais parece uma graphic novel — na proposta: 180 páginas de uma história contínua e original. A edição parece até mesmo apostar por isso: as páginas são mais grossas do que o normal, dando para a hq ainda mais cara de livro. De cara, isso dá mais espaço para a história e para splash-pages duplos: eles são tão deslumbrantes quanto atípicos para um gibi de Clowes, mais conhecido por empilhar quadrinhos por página:
No entanto, Patience não é uma autobiografia intimista ou confessional [como a maioria das graphic novels metidas]: é uma homenagem ao que existe de mais infantil e formulaico nos quadrinhos americanos, gibis de super-heróis dos anos 50.

A influência de Steve Ditko é a mais perceptível [também a menos estranha: Clowes sempre foi um fã de Steve Ditko e os seus protagonistas solitários com uma obsessão]. Ela está naquele jeitão de boneco dos personagens e nos cenários psicodélicos dos delírios de Barlow. Mas, em Patience, Clowes usa layouts de página de Ramona Fradon…
Quem pescou essa referência foi Ken Parille, no The Comics Journal.
…mostra um futuro que parece saído de um gibi da Legião de Super-Heróis de Al Plastino, só que em versão gosmenta, habitado por personagens tirados de hqs ruins da Dell e da Trojan Comics:

Tudo isso colorido com uma quantidade de salmão que não se usava em uma hq há 60 anos. A colorização, aliás, é mais criativa do que nos outros gibis de Clowes — pelo que se diz, ele usou um dos cinco anos de produção da hq só para colori-la. Além dessa cara de gibi dos anos 50, ela também é usada de forma narrativa: o amarelo do cabelo de Patience aparece sempre que você precisa prestar atenção em alguma coisa.
Alguns outros trabalhos de Clowes já tinham esse tom celebratório de uma ingenuidade cinquentista. No caso de Patience, e no início, isso pode parecer irônico: Barlow não se comporta como o Aquaman da Era de Prata. A história diversas vezes coloca em dúvida a sua integridade mental, as suas boas intenções e a sua capacidade de salvar Patience. No início da história, ele, por vingança, mija na tampa do vaso do banheiro da prostituta que ele acabou de salvar:
Fucking asshole indeed
De forma constante, impulsiva e temerária, ele interfere no passado de Patience. De forma igualmente constante, duvida de suas boas intenções:
A própria linguagem narrativa é um pouco contraditória. Por um lado, como nos gibis de super-heróis dos anos 50, Clowes usa muitos planos abertos e médios sem qualquer inclinação. Na Era de Prata, isso era usado para que a narrativa fosse a mais clara possível, de forma a permitir que crianças a acompanhassem. Clowes somente está atrás de clareza, mas da estética ingênua: constantemente, o enquadramento do quadrinho deixa a ação de fora, ou encoberta por outros elementos da cena. Assim:
Acontece bastante com os diálogos também,
como no terceiro quadrinho dessa página.

Mas, com o desenvolver da história, a ironia é dissipada. Em sua primeira viagem no tempo, Barlow entra em contato com Patience, depois de salvá-la em duas oportunidades. Ele acredita [e você, que viu o Dr. Brown alertando Marty McFly dos perigos de brincar de mudar o passado, também] que isso foi uma burrada gigante.

Quando ele [e a narrativa] voltam para o presente, no entanto, descobrimos que Patience procurou o jovem Barlow em busca de mais informações sobre o seu salvador. Noutras palavras, a burrada não foi apenas positiva, também foi “necessária”. Sabendo disso, as alucinações de Barlow ganham significado: ele está sendo “guiado”, primeiro para garantir que o seu jovem eu conheça Patience, depois para salvá-la.
Isso, é claro, pressupõe a existência de uma força superior comandando a história: como diz o próprio Barlow [que, no início da história, acredita que a morte de Patience revela “a total ausência de ordem no universo”], “even the stupidest shit happens for a reason”. Essa é a “one unassailable truth” que o Barlow do futuro aprende no fim da história.

Como se esse já não fosse um twist suficientemente esperançoso, o Barlow do futuro aprende a lição enquanto ruma para a eternidade. Como a linha do tempo é uma só, salvar Patience faz com que o amargurado Barlow do futuro deixe de existir [aquele futuro só existiu “no passado”].
Pode ser que o nascimento e de seu filho, os seus problemas de saúde e a morte do seu pai tenham colocado algumas coisas em perspectiva. O fato é que, em Patience, o herói, guiado por uma força superior, se sacrifica por puro altruísmo: ele não é um primata sedento de sangue. É uma mudança e tanto para alguém que era frequentemente chamado de misantropo.

ADENDO: Patience será lançado no Brasil, em junho de 2017, pela Editora Nemo, com o título Paciência. Você já pode comprá-lo em pré-venda na Amazon.com.br.

[RESENHAS[QUADRINHOS]