Doutor Estranho, de Jason Aaron e Chris Bachalo: Contra Newton

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Doutor Estranho, #1-6
Jason Aaron, Chris Bachalo, Tim Townsend, Al Vey, Mark Irwin, Victor Olazaba, Jaime Mendoza e John Livesay
[Panini, 2016-2017]

É fácil entender por que, ao relançar o gibi do Dr. Estranho, a Marvel não decidiu trocar Stephan Strange por outro personagem mais novo, modernoso e de alguma minoria. A ideia, evidentemente, era ter uma série pronta para o público do filme: a editora ainda alimenta a esperança de convertê-lo aos gibis e, em tese, é mais fácil fazê-lo quando o personagem principal da série é o mesmo que as pessoas viram no cinema.
Em tese, também, faz sentido entregar essa série para Jason Aaron e Chris Bachalo. Eles não são apenas dois dos nomes mais conhecidos da editora: são também uma dupla funcional, responsável pela última série mutante [Wolverine and the X-Men] a fazer sucesso em algum sentido.
Mas a Nova Marvel é como o escorpião da fábula: não consegue contrariar a sua natureza. Não adianta dar para o personagem o mesmo nome e aparência daquele que fez sucesso no cinema: as pessoas não foram lá procurar uma aliteração e opções duvidosas sobre pelagem facial. E, do personagem do filme [e até mesmo do personagem dos quadrinhos, ao menos em sua versão “tradicional”, na falta de uma palavra melhor], é apenas isso que o Dr. Estranho de Aaron e Bachalo manteve.
O “novo” Dr. Estranho [literalmente: a aparência dele é de um jovem; a culpa pode ser exclusivamente de Bachalo, que só sabe desenhar adolescentes] é descolado, engraçadinho e complexado de uma forma que o personagem nunca foi antes.
O visual é novo: foi-se o cavanhaque, os cabelos grisalhos e a cara de Drácula de filme B, substituídos por bigode e cachecol.
DOUTOR HIPSTER
Praticamente todas as edições começam com alguma piada. O desenho cartunesco de Bachalo também ajuda:
HAHAHAHAH ELE TÁ PELADO VÉIO.
O humor poderia ser uma tentativa de imitar o humor que Robert Downey Jr. trouxe para o Homem de Ferro. De fato, foi interpretado assim pelo resenhismo. Mas, se esse era o plano, Aaron não entendeu nada: a graça do Homem de Ferro de Downey Jr. está na sua confiança excessiva; precisamente o contrário da insegurança afetiva de adolescente e do humor autodepreciativo do Dr. Estranho de Aaron.
Também é uma escolha particularmente bizarra pela história de origem do Dr. Estranho: como no caso do Homem de Ferro do cinema e do Homem-Aranha de Stan Lee e Steve Ditko, a origem dele é uma tragédia; e personagens trágicos são arrogantes, não inseguros.
A pesar do senso de humor, o “novo” Dr. Estranho também é um personagem atormentado. A grande contribuição que Aaron quer dar para o cânon do personagem é a noção de que “cada soco tem seu preço”: recorrer à magia faz mal, fisicamente, ao herói.
A ideia tem uma boa motivação. É difícil escrever histórias regulares de um personagem que pode, a qualquer momento, recorrer a uma solução ex machina e tirar da cartola uma saída mágica para qualquer problema. Em economês, se poderia dizer que Aaron introduziu um custo diante do excesso de demanda.
Essa solução, no entanto, é usada de forma a emo-tizar o personagem. No fim, resulta que, para suportar o preço da magia, o Dr. Estranho criou um monstro no porão do Sanctum Sanctorum e Wong, para mantê-lo sob controle, reuniu um grupo de monges no Himalaia que absorvem parte do coice da arma mística. Ao descobrir isso, o Dr. Estranho percebe que falhou na missão que ele tratava com certa irresponsabilidade, o que faz com que ele se sinta muito culpado.
Os tijolos da psicologia que Aaron usou para construir esse aspecto do seu personagem são visíveis: a casa é um símbolo da mente; o porão, do subconsciente; uma mancha negra de rosto impassível parece uma depressão monstruosa. O que se está dizendo, portanto, é que o heroísmo do Dr. Estranho alimentou uma depressão autodestrutiva que, ainda que involuntariamente, causou o tipo de mal que ele queria combater.
Isso é menos O Babadook e mais pornografia de sofrimento. O objetivo não é inspirar nobreza através da forma estoica pela qual o personagem suporta o preço do seu heroísmo, mas simpatia através da pena que você sente ao vê-lo sofrer. Ou seja: o Mago Supremo um rapazote complexado que dá pena, no melhor estilo herói problematizado da Nova Marvel.
MEUS PAIS NÃO ME ENTENDEM
O vilão também é problematizador. Ele é uma versão de segunda mão dos dois primeiros capítulos de O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra. Não é a primeira vez que alguém recorre à Nova Era para escrever uma história do Dr. Estranho. Ainda que Lee e Ditko estivessem pensando mais em um orientalismo de almanaque meio sinistro com feitiços aliterados, é facilmente perceptível que o herói se presta a esse tipo de interpretações: é o misticismo.
Na série, o vilão é o Empirikul, um exército religioso-científico de assassinos da magia, liderados pelo Imperador, que quer purificar o universo. Ele combina ciência tradicional com cristianismo: o Imperador comanda uma tropa de robôs que fala em “radiação mágica em nível ômega” a ser purificada pela “inquisição”; fala em “mais uma infecção mística” que precisa “ser purificada pelo fogo sagrado”.
Pode parecer uma combinação estranha, mas é exatamente o paradigma científico-cultural que Capra descreve no início do seu livro. Ele é formado pela ciência cartesiana-newtoniana, que trata os homens como máquinas formadas por partes independentes e mecanizadas e que vai nos levar a um desastre nuclear [ou algo assim], que “acredita na superioridade da mente racional” e que foi “apoiada e encorajada pela tradição judaico-cristã, que adere à imagem de um deus masculino que personifica a razão suprema e é a fonte do poder definitivo, que controla o mundo de cima impondo a sua lei sobre ele”. O Empirikul reúne tudo isso: o mecanicismo, a lógica, a masculinidade e a hierarquia.
NO ONE EXPECTS THE SPANISH INQUISITION
Isso fica ainda mais evidente quando o Empirikul é comparado com os seres mágicos que quer exterminar, especificamente conforme eles são desenhados por Bachalo. Enquanto os soldados do Empirikul são desenhados em preto e branco, e de forma a ressaltar o seu aspecto mecânico, os monstrinhos mágicos parecem lesmas coloridas:
TOMEI ÁCIDO E ÓOOOOOOOOUN
Eles tem um aspecto que não é apenas inofensivo [muito embora eles tenham se refugiado na Terra fugindo do Empirikul, mais ou menos como imigrantes sírios], ou no máximo de uma agressividade cuti-cuti, mas também lisérgico e hippie. Eles são um contraponto multicultural e colorido ao cartesianismo-newtoniano-juidaco-cristão do vilão: só que, enquanto para Capra esse contraponto é uma mistura de sabedoria ancestral chinesa e física moderna, no gibi do Dr. Estranho ele é um Herbert Marcuse genérico de pelúcia.
Além de desenhar lesmas gordinhas, Bachalo faz mais algumas contribuições à proposta do gibi.

É uma coisa boa que tenham feito dele o colorista da série: ele desenha pensando na página, e as cores ajudam em alguns layouts mais inspirados. Não ajuda, no entanto, a deixá-lo mais claro. Essa é uma das grandes críticas que sempre se lhe fez: os gibis de Bachalo são confusos, e Dr. Estranho não é a exceção. Isso tem, pelo menos, dois motivos.

Primeiro, e como eu já disse, Bachalo pensa na página, e não na relação entre os quadrinhos que estão na página. O objetivo é deixá-la o mais impactante possível [talvez pensando em arrecadar alguns caraminguás com a venda do desenho original].

Existem, por exemplo, alguns elementos que são externos aos quadrinhos, mas que não buscam dar fluidez à leitura [“guiando” os olhos do leitor pelo caminho que eles devem percorrer], ou exercer qualquer outra função narrativa funcional. Estão lá apenas para embelezar a página. Esta é um excelente exemplo:

Os números verdes indicam a sequência de leitura que eu considero lógica, diante da forma que a página foi composta: ela respeita o movimento “natural” da leitura [uma página de cada vez; leituras em linhas, da esquerda para a direita e de cima para baixo], os obstáculos visuais da página [a divisão entre as páginas, reforçada pelo galho da árvore, que está exatamente na divisa entre os quadrinhos da página da esquerda e a página direita, conforme indicado pela linha amarela], e uma certa coerência [a página da esquerda seria dedicada à interação entre o Dr. Estranho e a mocinha-aranha].
Já os números vermelhos indicam a sequência de leitura correta, conforme a história. Não existe nada que indique, visualmente, que ao texto de apoio 2 segue o 3, e que a esse segue o 4. Não há nada que indique que o texto de apoio 6, no canto inferior da página direita, deva ser seguido por aquele que está no lado esquerdo.
Esse foco na espetacularidade da página também leva à reprodução de um mesmo esquema de layout. A página quase sempre é formada por um quadrinho grande, que mostra a ação principal, rodeado de diversos outros em plano detalhe que transitam de aspecto para aspecto daquela cena.

Pelo menos metade das páginas da primeira edição seguem essa fórmula. A página da direita na imagem ali de cima é um bom exemplo: um quadrinho grande, no qual o Dr. Estranho está enredado com o monstro; quatro quadrinhos com planos detalhe que mostram ele descendo o sarrafo [via espada mágica que aparece no segundo quadrinho por… mágica] no monstro.

Entre esses quadrinhos existe uma pequena diferença cronológica, mas esse não é o formato que normalmente se usa para retratar uma sequência de fatos em um período de tempo: para isso, os quadrinhos deveriam formar uma sequência de causas e consequências.
Por isso, a sequência lógica da leitura nem sempre é facilmente perceptível. Mais importante para um gibi de super-heróis [principalmente um com tantas cenas de ação como esse], isso empurra a sequência de fatos para fora dos quadrinhos e para dentro de textos de apoio.
O QUE ESTÁ ACONTECENDO NO QUADRINHO 2?
COMO SURGIU O MACHADO NO QUADRINHO 3?
QUAL É A LÓGICA DOS RAIOS VERDES NO QUADRINHO 3?
QUANDO O MACHADO TROCOU DE MÃO?
QUANDO O DR. ESTRANHO ACERTOU O VILÃO?
Isso faz com que as páginas, separadamente, sejam espetaculares [não por acaso é usado em um monte de spreads de duas páginas], mas, no conjunto, sejam repetitivas [e confusas].

Dois: existe uma montoeira dentro dos quadrinhos.

De novo, existe uma opção aí. Além de usar muitos planos detalhe, Bachalo se esforça para desenhar muitas coisas na página. Aparentemente, ele também só usa computador para colorir o gibi: todo o resto é desenhado sem o seu auxílio direto.

TÁ TUDO TORTO:
SÓ PODE TER SIDO FEITO NO OLHO.

O objetivo é estar no lado oposto de Steve McNiven no espectro da frieza.

Em relação à profundidade, ele usa recursos convencionais: sobreposição [o personagem ao fundo está parcialmente coberto por um personagem à frente], diminuição [personagens ao fundo são menores do que personagens à frente], posição em relação à linha do horizonte [personagens mais ao fundo não aparecem na parte de baixo do desenho]…

São recursos que tem as suas limitações, que devem ser somadas, ainda, às do próprio estilo do traço. Bachalo varia de grossura do seu traço conforme o efeito narrativo pretendido, o que deixa o desenho cartunesco, mas não contribui para a sensação de profundidade: linhas marcantes costumam diminuí-la, como nos desenhos de um livro de colorir. Para não se ajudar, poucas vezes ele usa a colorização para indicar profundidade [usando cores diferentes para camadas em profundidades diferentes; um exemplo de página na qual ele faz isso é a dos monstrinhos cuti-cuti lá em cima].

Essa página aí em baixo mostra bem os recursos disponíveis. Os quadrinhos do lado esquerdo usam mais recursos: é possível ver os pés dos personagens, um indicativo de qual está “mais baixo” em relação à linha do horizonte e, portanto, “mais perto” do leitor [indicado em vermelho]; as linhas paralelas retrocedendo ao horizonte [amarelo]; alguns personagens projetam sombro no chão, indicando a sua posição em relação aos demais [verde]…

O quadrinho do lado direito usa apenas sobreposição e diminuição, e sugere uma linha que retrocede [a sequência de cabeças: Dr. Estranho, homem com estrela na cara, homem com cabelo rastafári de monstrinhos]. Ele é menos vazia, mas muito mais confuso:

A página também mostra que Bachalo não ignora as regras da perspectiva: apenas não está disposto a usá-las de forma rígida. No quadrinho que mostra o quarto da criança se pode ver isso: é uma perspectiva com três pontos de fuga relaxada, com a janela distorcida e a bagunça desenhada meio que no olho [aliás: o efeito deletério do traço modulado sobre a sensação de volume é perceptível no taco de hockey que está no canto inferior esquerdo].

Na página em que o Dr. Estranho está na rua, se pode ver isso na perspectiva distorcida do prédio do lado esquerdo, o que é disfarçado com a cobra-coral-mágica [quadrado roxo]. Perceba também que não faz sentido que você consiga enxergar a parede lateral do prédio que está exatamente atrás do Dr. Estranho [o outro quadrado roxo].

Essa é a outra contribuição de Bachalo para a proposta do gibi: ele desenha de forma orgânica e não matemática, refletindo o próprio tema da história.

Não sei se o paralelo é voluntário ou não. Não sei se Aaron e Bachalo já leram qualquer livro do Capra ou de Marcuse. O mais provável é que, no processo de tentar fazer um gibi divertido, Aaron estivesse apenas estivessem repetindo os cacoetes mentais que estão de moda na Nova Marvel, da mesma forma que repetiu a trama do primeiro ano do seu Thor, e que Bachalo estivesse fazendo aquilo que ele faz.

Poderiam, no entanto, ter observado as consequências de suas próprias ideias: se frequentemente a organicidade de Bachalo parece confusão, é porque a lógica matemática funciona.  [RESENHAS[QUADRINHOS]