Vingadores: Ultimato: Marvel Studios vs Marvel Comics


Vingadores: Ultimato é um desbunde. É basicamente isso que eu tenho para dizer sobre o filme.

Mas isso não é tudo que eu posso dizer sobre os gibis da Marvel.

Os filmes da Marvel são, evidentemente, a transposição para o cinema dos personagens da editora. Como editora de gibis de super-heróis, a Marvel existe desde 1961 [quando Fantastic Four #1 foi lançado]. Nesses 58 anos, ela fez muitas coisas – a maioria delas do jeito certo. Nem todas elas chegaram ao cinema.

A recíproca também é verdadeira. Homem de Ferro, o primeiro filme da Marvel, foi lançado faz 11 anos. Ele foi seguido por outros 21 filmes. O pior deles provavelmente seja apenas divertido: os melhores são, como Ultimato, um desbunde. Eles também fazem muitas coisas do jeito certo e nem todas elas vieram dos quadrinhos.

Os dois círculos que formam esse diagrama de Venn, portanto, são muito maiores do que a sua intersecção. Isso é bastante lógico: quadrinhos e filmes não são a mesma coisa; são meios diferentes, com pontos fortes e fracos diferentes. Pontos como…

[A partir daqui, o texto comenta de forma geral, mas que algumas pessoas podem considerar como spoiler, algumas situações do filme]

O que os gibis da Marvel tem que os filmes não tem

Gibis de super-heróis são publicados em séries mensais basicamente desde sempre. Isso significa que, uma vez por mês, chega às bancas americanas pelo menos um novo gibi, com normalmente umas vinte páginas, de uma determinada série [por exemplo, The Amazing Spider-Man, série do Homem-Aranha que é publicada desde 1963]. Atualmente, a Marvel publica quase 40 séries mensais cujas histórias são ambientadas em seu universo principal.

Mais ou menos uma vez por ano, as histórias de várias dessas séries se cruzam em um crossover ou evento. A linha principal dessa “super-história” costuma ser publicada em uma minissérie, com histórias paralelas publicadas nas séries mensais. Assim, Guerra Civil, o evento de 2006, foi publicada, lá nos EUA, na minissérie Civil War. No entanto, as suas ramificações se estenderam por mais de cem outros gibis de séries mensais.

Essa lógica foi mais ou menos reproduzida nos filmes da Marvel. Existem diversos filmes lançados por ano, com histórias mais ou menos isoladas dos seus respectivos protagonistas. Mas eles se reúnem periodicamente em um grande evento que culmina linhas narrativas desenvolvidas nos filmes individuais.

A diferença é que, em relação aos eventos, no cinema eles formam uma “série” própria: Os Vingadores. Se você perceber, no universo do cinema não existe uma equipe dos Vingadores como existe nos quadrinhos. No cinema, os Vingadores são basicamente formados por todos os heróis daquele universo. Nos quadrinhos, The Avengers é uma série mensal como as outras: ela costuma ter um elenco fixo de personagens. Esse elenco, inclusive, é frequentemente formado por personagens do terceiro escalão da editora.

Os poderosos… quem mesmo?
Ah, sim: VINGADORES JAQUETINHA!

A relação entre os eventos dos quadrinhos e os filmes dos Vingadores não interessa agora mesmo. A diferença verdadeiramente importante está na comparação das séries mensais e nos filmes individuais.

Com 40 séries de 20 poucas páginas por mês você pode fazer muitas coisas – inclusive quase nada. Você pode escrever um épico surreal sobre sacrifício e relativismo moral, como Jim Starlin fez com Warlock. Ou uma história que transcorre inteiramente dentro da psique de um personagem durante uma super-sessão de terapia, como Peter David e Dale Keown fizeram em The Incredible Hulk #376.

SUPEREGO ESMAGA!!!

Os filmes da Marvel estão sujeitos a limitações que não permitem que isso aconteça. É fácil entender porque isso é assim. Você consegue imaginar um filme do Hulk que seja uma sessão de terapia com uma bilheteria na casa das centenas de milhões? Exatamente quem, então, pagaria pela sua produção? Não preciso nem ser tão cínico. Quantas histórias existem para ser contadas sobre o personagem que são mais adequadas à linguagem do cinema do que essa? Por que elas não deveriam ser contadas antes?

Não me entendam mal, os filmes individuais dos personagens são, no mínimo divertidos – e alguns [Homem de Ferro, os dois primeiros filmes do Capitão América, Doutor Estranho] são excelentes. Não quero te convencer de que os quadrinhos são melhores do que os filmes, mas que eles são melhores… naquilo que eles são melhores: variar na escala.

Se você, portanto, estiver cansado da escala consistentemente superlativa que até filmes como Homem-Formiga e Homem-Aranha adotaram, leia os gibis. Lá você vai encontrar histórias que desenvolvem um tema ou um personagem de forma consistente por anos. Fases como o Quarteto Fantástico de Stan Lee e Jack Kirby: quase dez anos seguidos de construção de universo pela via do heroísmo de aventura. Ou o Homem-Aranha de Stan Lee e John Romita Sr.: umas 70 edições para estudar o conflito geracional nos EUA dos anos 60/70. Ou o Demolidor de Frank Miller, o herói hard-boiled da Nova Iorque de Travis Bickle. Ou o Capitão América de Ed Brubaker, o gibi de conspiração e espionagem que serve de pai e mãe para um dos melhores filmes da Marvel.

Mas também vai encontrar, dentro das séries mensais, histórias excelentes que se alongam por diversas edições. Como A Trilogia Galactus [Quarteto Fantástico, de Stan Lee e Jack Kirby], as três hqs que mostraram a escala épica que as aventuras do Quarteto podiam alcançar [“se você precisasse pisar em um formigueiro pra sobreviver, você pisaria?”]. A Guerra Kree-Skrull [de Roy Thomas e Neal Adams, em na série dos Vingadores], meia-dúzia de gibis que ampliam o Universo Marvel em alguns anos luz, e a possibilidades narrativas de uma composição de página em alguns eóns. Ou a Saga de Proteus [de Chris Claremont e John Byrne, na série dos X-Men], que mostra a tragédia por trás do sonho de Charles Xavier — e sinaliza onde uma das principais duplas criativas da história das hqs poderia chegar.

Vai encontrar arcos em que um quadrinista teve a sua chance com um grande personagem. Como o Capitão América de Jim Steranko: usar gabardina nunca foi tão pop art. O Cavaleiro da Lua de Doug Moench e Bill Sienkiewicz, que é o Batman colocado nas mãos de dois quadrinistas, um dos quais [Sienkiewicz] é um pequeno gênio do meio. Ou o Cable de Darko Macan e Igor Kordey, fase em que o mais confuso mutante da Marvel foi colocado nas mãos de dois quadrinistas underground croatas, que decidiram levá-lo a sério. Você é capaz de imaginar uma produtora de filmes fazendo algo assim?

E vai encontrar histórias pequenas que redimem monstros, humanizam androides e submergem heróis no desespero ou lhes cutucam em paródia. Tudo isso enquanto descobre a dança de uma página bem desenhada, em gibis como Esse homem… esse monstro! [Stan Lee e Jack Kirby, Fantastic Four #51], Até um androide pode chorar [Roy Thomas e John Buscema, The Avengers #58], Roleta [Frank Miller, Daredevil #191], Ter e não ter [Chris Claremont e Paul Smith, The Uncanny X-Men #173], O Julgamento de Reed Richards [John Byrne, Fantastic Four #262], Com grandes poderes vêm grandes coincidências [Joe Kelly e Pete Woods, Deadpool #11, 1997], Pizza is My Business [Matt Fraction e David Aja, Hawkeye #11] e Scarlet [Warren Ellis e Declan Shalvey, Moon Knight #5].

Você vai encontrar todo tipo de maravilhas: grandes, médias e pequenas. Mas todas divididas em vinte páginas por mês.

O que os filmes da Marvel tem que os gibis não tem

É um pouco injusto comparar os filmes dos Vingadores com os eventos da Marvel. Os eventos da Marvel normalmente são uma porcaria.

O primeiro deles, publicado entre 1984 e 1985, não foi resultado de nenhum impulso criativo. A fabricante de brinquetos Mattel pediu um mote para o lançamento de uma nova coleção. O departamento de marketing disse que as crianças dos grupos de teste reagiam bem às palavras “secret” e “wars” e… bom: voilá:

YAY!

Pode ser que depois de assistir A Ameaça Fantasma você duvide disso. Mas acho que é seguro dizer que ninguém investe uma mega-sena acumulada em um filme criado a partir da junção de duas palavras que crianças parecem gostar.

A principal diferença entre os filmes dos Vingadores e os eventos da linha de gibis é que os filmes conseguem atingir as expectativas criadas, tanto na escala mega-macro quanto na do desenvolvimento pessoal dos personagens. Não existe nenhum evento da Marvel que, como Ultimato, envolva de forma natural todas as histórias de todos as histórias dos personagens da editora publicadas ao longo de 10 anos.

Existem, de novo, alguns motivos práticos pelos quais isso não é possível. É muito mais fácil você desenvolver um personagem de forma coerente no cinema. Mesmo os dois principais personagens dos filmes da Marvel, o Homem de Ferro e o Capitão América, devem ter aparecido em meia dúzia de filmes ao longo de dez anos: você precisa coordenar alguns roteiristas e pouco mais de duas dezenas de histórias. Esse, no entanto, não é o caso dos quadrinhos, onde você precisa coordenar algumas dezenas de roteiristas em algumas centenas de histórias que acontecem simultaneamente.

A própria história da Marvel nos mostra como isso é difícil. A editora já tentou fazer do seu universo um todo coerente que avança em tempo real. Diferentemente dos gibis da DC na mesma época, a Marvel, em seus primeiros anos, tentava fazer com que os anos passassem para os seus personagens mais ou menos da mesma forma que passam para os seus leitores. É por isso que as suas histórias originais envolvem momentos históricos concretos: a origem do Homem de Ferro acontece na Guerra do Vietnã; Ben Grimm, o Coisa do Quarteto Fantástico, era um piloto de caça veterano da Segunda Guerra Mundial. Também é por isso que o Homem-Aranha terminou o segundo grau e começou a faculdade depois de dois anos e meio de publicação de sua série regular.

Ela podia não ser executada na mesma escala que nos filmes e não culminar em um grande evento, mas era uma ideia parecida. Stan Lee, no entanto, logo se deu conta de suas limitações. No ritmo normal, os personagens de imenso sucesso que ele criou se esgotariam em talvez uma década, sem que existissem outros do mesmo nível para substituí-los. Com o tempo, a relação entre o transcurso do tempo no mundo normal e no mundo Marvel começou a ficar cada vez mais desparelha – até chegar ao ponto em que os personagens estavam praticamente submersos em formol, como estiveram os da DC anos antes.

Posteriormente, Jim Shooter tentou, de novo, fazer a história andar de forma coerente em todas as séries da editora. Ele era, digamos assim, um Kevin Feige que não sabia dizer “por favor”, e colocou editores como Mark Gruenwald em cima dos quadrinistas para garantir que as diversas séries publicadas tivessem uma continuidade.

Enquanto Shooter era editor [1978 a 1987], a Marvel viveu aquele que é um dos seus períodos criativos de maior fertilidade: foi nessa época que a editora publicou o Demolidor de Frank Miller, os X-Men de Chris Claremont e John Byrne e o Thor de Walter Simonson. Ele também tentou prover algum avanço na vida dos personagens. Foi durante a sua editoria que foi publicado Demolidor: A Queda de Murdock. Não é apenas o melhor gibi da Marvel de todos os tempos. É uma história que alterou o status quo do personagem de forma tão profunda que ele demorou anos para reencontrar um rumo. Quando ele saiu da editora, ele deixou os personagens que triunfariam no cinema décadas depois com essa cara:

No entanto, como eu dizia, uma coisa é manter o controle de meia dúzia de filmes por ano. Em janeiro de 1979, por exemplo, a Marvel lançou uns 25 gibis ambientados dentro do mesmo universo. Em algum momento, ele necessariamente teria que dizer pro escritor da série dos Vingadores que ele não poderia usar Thor na próxima edição porque Walter Simonson havia transformado ele em um alienígena em sua própria série. Talvez o escritor de Os Vingadores não ficasse feliz com isso. Talvez ele tivesse os seus próprios planos para o Thor. Talvez esses planos envolvessem ele não ser um alienígena, mas o deus nórdico que nós aprendemos a amar.

O resultado foi um motim dos quadrinistas. Vários deles, cansados da interferência de Shooter, já tinham pulado do barco; a defecção mais notável foi John Byrne, que triunfaria na DC. A editora precisava mais das pessoas que escrevem os gibis do que da pessoa que dizia que eles não podiam escrever daquele jeito.

Com a demissão de Shooter, o posto de editor-in-chief ficou com Tom DeFalco. Uma de suas medidas foi congelar a continuidade — há quem diga, inclusive, que a fase de Walter Simonson na série do Quarteto Fantástico é uma grande crítica a essa medida. No entanto, é preciso ter em conta que nenhum dos filmes da Marvel usou os personagens da capa da Marvel Age #57 daquela forma. O argumento de Lee para “congelar” os seus heróis consistia exatamente na necessidade de mantê-los na sua melhor forma, prontos para serem adaptados para outras mídias.

Isso não repercute apenas na escala macro, em que é você precisa fazer que um evento pague as suas apostas. Também repercute no que você pode fazer com os personagens enquanto eles não estão enfrentando o fim do mundo.

Para muitos personagens, Ultimato é o passo final de uma caminhada. É uma caminhada que acompanhou as diferentes fases de uma vida normal, durante a qual o tempo transcorreu de forma natural, e tudo isso foi usado com um sentido temático concreto.

Nos quadrinhos, isso não é mais possível. Pelo menos desde a saída de Shooter, evita-se ao máximo que os personagens passem por marcos da vida adulta. O poster boy dessa limitação é o Homem-Aranha: ao longo de sua história, ele se formou no segundo grau em três anos, ficou uns 30 na faculdade. No meio do caminho ele casou, mas isso foi retroativamente excluído da continuidade em um truque narrativo grotesco em 2007. A sua então esposa também ficou grávida: faz mais ou menos vinte anos que ninguém toca no assunto.

AH NÃO PERA ALARME FALSO.
MALZ AÊ

Existem, é claro, exceções. Mas a regra é que os principais personagens da Marvel não podem ser casar, não podem ter filhos e não podem morrer ou se aposentar. Houve uma época em que os fãs de quadrinhos voavam no pescoço um dos outros pela continuidade: o que era melhor, impô-la ou não, diante de suas consequências sobre a liberdade criativa dos quadrinistas, era matéria de caloroso debate. Hoje em dia, a ideia é solenemente ignorada: os personagens voltaram para o formol.

O cinema não está sujeito a essas limitações. Ao contrário: no cinema, renovar os personagens é uma necessidade. Não há como manter-se um ator vinculado a uma franquia por vinte anos, presumindo-se que os espectadores não vão perceber que ele envelheceu. Vingadores: Ultimato inclusive brinca com isso. É um filme que tem orgulho de mostrar que o tempo passou para os seus protagonistas. Que mostra a vida que está proibida para as suas versões das hqs quadrinhos como prêmio e fundamento de seu heroísmo.

É verdade que a escala de Vingadores: Ultimato é fantástica. São batalhas inimagináveis, com dezenas de personagens coloridos, piadas engraçadas, desdobramentos surpreendentes, tudo a serviço da conclusão de um épico que está faz mais de dez anos em produção. No final das contas, no entanto, o heroísmo do filme não é ser épico: é ser ordinário. A maior surpresa não é saber quem morreu: é entender o poder redentor de uma vida normal.