O Caleidoscópio: Capitão Britânia, de Alan Davis, Dave Thorpe e Alan Moore

Antes de atravessar o Atlântico, Alan Moore escreveu três gibis marcantes: V de Vingança, Marvelman e Capitão Britânia.

Capitão Britânia de Alan Moore, mesmo sendo o seu único trabalho-trabalho para a Marvel [ainda que através da sua subsidiária britânica, Marvel UK], é o mais ignorado. No entanto, das três séries também é a que melhor oferece um panorama da carreira de Moore dentro e fora das quatro linhas dos quadrinhos. De perto, é possível enxergar nessa série pedacinhos de gibis tão diferentes quanto D.R. & Quinch e Monstro do Pântano, Watchmen e The Birth Caul, além de tretas bizantinas que fizeram dele esse ermitão moderno.

Não é, no entanto, um panorama simples. A melhor forma que eu encontrei de expô-lo foi agrupando desmontando a série em pedaços para reagrupá-la em capítulos temáticos. Isso não está muito longe da forma que Moore começou a trabalhar na própria hq. E é essa técnica de approach que nós começamos a resenha:

I. DESTRUINDO IMPÉRIOS

 
“Thus destroyes topple empires; 
make a canvas of clean rubble 
where creators can then build 
a better world”
[V de Vingança]
 

Na primeira página do Capitão Britânia Alan Moore, a 55 do encadernado da Panini, ele destruiu o universo paralelo em que o personagem estava [criado por Dave Thorpe, o roteirista anterior, cujas histórias também estão neste encadernado]. Na quarta [página 59], matou Jackdaw, o elfo chato que servia de Robin/alívio cômico para o Capitão. Na décima [65], ele pulverizou o próprio Capitão.

Como ele faria depois com o Monstro do Pântano, Moore destruiu o personagem para poder remontá-lo usando as mesmas peças de outra forma. Mas enquanto que o Monstro do Pântano foi morto e dissecado narrativamente, o Capitão foi morto e reconstruído — ainda que também narrativamente: na edição seguinte à de sua morte, Merlin, como uma versão análoga do próprio Moore, remonta o personagem.

Quais foram os escombros que Moore encontrou, e como eles foram rearranjadas? Para responder a essa pergunta, precisamos dar uma olhada no que ele destruiu.

Ao contrário do outro super-herói britânico reformulado por Moore, Marvelman, que era basicamente um derivado meia boca do Capitão Marvel/Shazam que estava esquecido há anos, o Capitão Britânia tinha uma história um pouco mais complexa. Moore, ainda, substituiu Thorpe no meio de uma história; uma que, nas palavras do próprio Moore, ele “nem tinha criado, nem entendia”.

Não era a primeira vez que o personagem ficava sem rumo. A Marvel UK foi criada em 1972 como uma forma de garantir que os gibis da editora seriam publicados de forma confiável e periódica no Reino Unido. Antes disso, conforme a lenda, eles somente chegavam por lá como forragem para as caixas de produtos importados que chegavam dos EUA — depois eram vendidos meio que por baixo dos panos para bancas que viraram points do nerdismo.

No início, a Marvel UK apenas publicava os gibis da Marvel americana em “formato britânico”: em preto e branco e fracionados, de forma a reproduzir uma antologia de histórias curtas. Capitão Britânia foi o primeiro personagem criado para ser lançado como uma criação original. As suas histórias, no entanto, eram produzidas dos EUA e por quadrinistas apenas superficialmente conectados à Inglaterra. Chris Claremont, que nasceu em Londres, mas vivia nos EUA desde os três anos de idade; e Herb Trimpe que, bom, uma vez passou as férias dele por lá.

Os nomes, por si só, não eram o problema: o personagem foi criado em 1976, quando Claremont estava prestes a se tornar um dos principais roteiristas da Marvel. Mas a própria origem do personagem denúncia que eles tinham uma visão estática sobre o que era o Reino Unido. Eles apenas introduziram a força alguns elementos modernos em um mito fundacional. Brian Braddock é um físico nuclear que, fugindo de supervilões, tropeça com Merlin e a sua filha, Roma.

É como se o Capitão América fosse congelado depois da promulgação da Constituição americana, ainda que Claremont tenha introduzido um pouco de neopaganismo Wicca na jogada: Roma se apresenta para Braddock com um discurso diretamente transcrito do Livro das Sombras de Gerald Gardner [fun fact: Claremont foi casado com uma sacerdotisa Wicca mais ou menos nessa época].

Esse foi um dos pilares do prédio destruído por Moore. O Capitão era um personagem criado com base em uma visão de turistas sobre o que é a Britânia.

O segundo pilar foi a própria fase de Thorpe, que abre o encadernado da Panini e que também estava lidando com a herança dessas histórias originais.

Aliás, a diferença entre o encadernado da Panini e o da Salvat é que aquele também inclui as histórias de Thorpe [Marvel Super Heroes #377 a #386], além das história de Moore [Marvel Super Heroes #387, que Moore escreveu apenas a última página, e #388, The Daredevils #1 a #11, e The Mighty World of Marvel #7 a #12].

Thorpe começou a escrever o Capitão Britânia em Marvel Super Heroes #377, o primeiro gibi do encadernado. Era lá que o personagem tinha chegado depois do cancelamento de Captain Britain Weekly, a sua série original. No meio do caminho, a Marvel tinha contratado Dez Skinn para administrar a Marvel UK, tirando-a das mãos dos editores americanos [um dos quais, aliás, foi Larry Lieber, irmão de Stan Lee]. 

A primeira iniciativa de Skinn, que futuramente criaria a revista Warrior [onde V de Vingança e Marvelman foram originalmente publicados], consistiu em colocar quadrinistas britânicos para produzir material original para a editora. Essas histórias começaram a ser lançadas na revista Hulk Comics, de 1979, uma antologia em preto e branco que contou em sua primeira edição com histórias de Steve Moore, Dave Gibbons e Steve Dillon [então com apenas 16 anos de idade]. 

Ainda que Skinn tenha deixado a Marvel UK no ano seguinte ao de sua contratação, a sua iniciativa foi bem sucedida. Foi graças a ela que surgiu a ideia de dar uma nova chance para o Capitão Britânia, agora nas mãos de quadrinistas britânicos — Thorpe e Alan Davis.

Davis era apenas um iniciante no mundo dos quadrinhos. Marvel Super Heroes #377, de fato, é o seu primeiro gibi profissional. Ele vinha da classe operária, com o objetivo de exercitar o seu hobby [desenhava desde jovem, ainda que de forma amadora e quase autodidata] e ganhar um troco: com vinte e poucos anos de idade, já era casado e pai de duas filhas, e trabalhava meio período como motorista de empilhadeira em um depósito. 

Thorpe, por outro lado, era um estudante de artes, que se formaria com uma especialização em Dada e Surrealismo, e que trabalhava na Marvel UK em funções editoriais há pelo menos um ano. Ele estava lá precisamente esperando pela chance de se tornar um roteirista. Tinha uma ideia clara sobre o que queria fazer sobre o Capitão: tratá-lo com uma visão crítica e engajada, mais ou menos o que Steve Englehart fizera com o Capitão América na Saga da Coroa da Serpente, com toques de surrealismo britânico.

Ele certamente tentou. Já na primeira edição, o Capitão Britânia topa com a Gangue Maluca: formado por vilões como Mad Jim, Valete de Copas e Rainha de Copas [apresentada por Davis em um quadrinho que se tornou icônico],…

…o grupo é uma evidente tentativa de acrescer humor nonsense ao gibi. Duas edições depois [Marvel Super Heroes #380], seguindo uma história de consciência ambiental, o Capitão topou com um rato super-evoluído: mais humor nonsense.

O engajamento político é ainda mais explícito. No seu arco, Thorpe transporta o Capitão para “o mundo mais primitivo de uma série de terras alternativas”. Governado pela Rainha Margaret [um trocadilho: a única irmã da Rainha Elizabeth se chamava Margaret, que também é, evidentemente, o primeiro nome da ex-primeira ministra Margaret Tatcher], o Reino Unido desse mundo alternativo é uma tirania fascista, prestes a ser revolucionado por um “impulso” evolutivo promovido pelo Tribunal de Desenvolvimento Dimensional [especificamente por Saturnyne, uma femme fatale cósmica]. A analogia é trabalhada da forma mais óbvia possível: a polícia fascista se chama Status Quo; as tropas revolucionárias, de Vanguarda.

Evidentemente inspirada na obra de Magritte
[Surrealismo 3×0]

Thorpe, no entanto, não conseguiu terminar a sua história. Ele foi substituído depois de dez edições, uma das quais [Marvel Super Heroes #385] é um fill-in escrito por Paul Neary [futuro arte-finalista habitual de Davis], que transcorre, cronologicamente, antes do início da fase de Thorpe. 

Existem diferentes versões para a história da saída de Thorpe. Todas elas giram em torno da história que foi finalmente publicada, de forma editada, em Marvel Super Heroes #384 e #386, um interlúdio para a história do Tribunal de Desenvolvimento Dimensional. Do jeito que ela foi publicada, é uma história meio sem sentido sobre uma rixa entre bairros vizinhos, que vira troca de pedrada quando um adolescente que é morador de um dos bairros vai visitar uma amiga que mora no outro. O confronto é finalmente interrompido por Jackdaw de uma forma ex machina. Também é o pior trabalho da carreira de Davis. Do jeito que ela foi pensada por Thorpe, no entanto, a história seria sobre a questão da Irlanda do Norte. 

É aqui que as versões de Thorpe, Bernie Jaye [editora da série na época] e Davis começam a divergir. Conforme Thorpe, o objetivo era adaptar para os quadrinhos uma notícia que ele lera no jornal: dois garotos irlandeses se tornaram amigos em uma colônia de férias, apenas para descobrir que eles eram de bairros rivais ao retornar para a sua cidade de origem, Belfast. Davis, no entanto, teria se recusado a desenhar essa história: Thorpe, em entrevistas, costuma associar essa recusa à proximidade de Davis com loyalists. Ele costuma fazer essa associação, sem perceber a ironia de suas palavras, dizendo que Davis morava em um bairro Orange da cidade de Corby.

Ainda conforme Thorpe, e diante da recusa de Davis, ele tentou transformar a história em uma versão mais fantasiosa, abordando o tema de forma metafórica. Mas Jaye, no que Thorpe atribui a medo de perder o seu emprego, vetou até mesmo essas referências “indiretas”. A partir daí, as suas propostas passaram a ser sistematicamente recusadas, no que Thorpe considera uma forma educada de levá-lo a pedir demissão.

A versão de Jaye é mais direta e não acrescenta muitos detalhes. Ela diz que os seus superiores estavam preocupados com o tom excessivamente político da série e que Thorpe, depois de se recusar a mudá-lo, pediu demissão.

Davis, finalmente, acrescenta diversos detalhes à história. Ele confirma que não queria desenhar a história [“pensei que seria inapropriado fazer um cara que veste a Union Jack voar até a Irlanda e resolver a situação da Irlanda do Norte. O problema é mais complicado do que isso”], que a editoria ficou do seu lado e que Thorpe se comprometeu a entregar um novo roteiro. No entanto, diz Davis, Thorpe segurou esse novo roteiro até o momento em que o escritório da Marvel UK fechou para o recesso de final de ano — no final do qual o prazo de Davis se esgotava.

Para piorar, o novo roteiro era idêntico ao original, mas com os nomes alterados de forma bastante óbvia: Belfast virou Fablest. Os protestantes [protestants] viraram Rottenpasts. Eles cultivavam laranjas. Os católicos [catholics] viraram coalitch. Eles cultivavam batatas.  

Thorpe realmente não era muito sutil em sua metáfora, o que deixou Davis particularmente irritado:

“fiquei ofendido que alguém pudesse pensar que eu não conseguiria ver algo tão transparente. Liguei para a Bernie, que estava passando o Natal em Paris. A principal preocupação dela era que, se perdêssemos o prazo, não conseguiríamos publicar outro gibi quando o pessoal do dinheiro se desse conta de que não respeitávamos os prazos. Pelo telefone foi decidido que a nossa única opção era excluir a política, mesmo que não sobrasse nada. Desenhei a edição em dois dias, lápis e arte-final”.

Esse era o segundo pilar que Moore destruiu na série quando a herdou: o tom político dado por um escritor cuja ideia de sutileza consistia em substituir “catholic” por “coalitch”.

A destruição e posterior reconstrução desses dois pilares aconteceu no segundo arco que ele escreveu depois de assumir o personagem [o primeiro arco é dedicado, basicamente, a reintroduzir elementos do passado da série: a irmã do Capitão Britânia, Betsy; a mansão em que ele mora; a SHIELD britânica, STRIKE, etc].

No segundo arco, o Capitão Britânia é levado pelo Poder Executivo [um grupo de mercenários moralmente ambíguos que Moore trouxe para a série das histórias que escreveu na Doctor Who Weekly] para o planeta-sede do Tribunal do Desenvolvimento Universal, onde Saturnyne será julgada pela sua atuação falha no Thorpeverso, que levou à sua destruição no momento do “impulso” [o que aconteceu, lembre-se, na primeira página escrita por Moore].

O planeta-sede do Tribunal do Desenvolvimento Universal é o centro do omniverso, o conjunto de terras paralelas do universo Marvel. A força de segurança da sede do Tribunal é a Captain Britain Corps: ela é formada pelo Capitão Britânia de cada uma das terras do omniverso.

Dessa forma, existe um Capitão que representa a Britânia, mas infinitos, cada um representando uma Britânia possível. Existe, por exemplo, um Capitão Pista de Pouso 1, da Grã-Bretanha de 1984, o livro de George Orwell [ele até mesmo fala em novilíngua: “Capbrit! Dupliplusbom teconhecer!”]. A que me deixou mais intrigado foi a Capitã Albion:

Albion é um nome lendário para a Ilha da Grã-Bretanha, normalmente utilizado no contexto de sua origem mitológica. Isso, no entanto, não faz muito sentido em relação à sua roupa ou fala. O meu palpite é que ela seja a “Capitão Britânia” de uma Terra em que o Rei Carlos I de Inglaterra foi o vencedor da Guerra Civil Inglesa: os monarquistas eram chamados de “cavaliers” pelo seu jeito aristocrático de vestir-se:

Não é apenas a roupa [ainda que essa seja uma característica marcante dos cavaliers]: a Capitã Albion fala em inglês shakespereano [“”I’faith, ‘tis well met, sirrah”], o que faz sentido em relação ao timing; sirrah é uma expressão utilizada para se referir a alguém inferior, o que também traduz a ideia de aristocracia dos cavaliers; Carlos I reinou entre 1625 e 1649, enquanto que a personificação da Grã-Bretanha como Britânia somente se tornou popular depois disso.

O resultado, de qualquer forma, é o fim da estaticidade: a Britânia acabou de se tornar um universo de possibilidades.

Em relação ao segundo problema, a forma que Moore encontrou para arrumar a história de Thorpe diz muito sobre os defeitos desse arco. Nele, a caminhada rumo à tirania do Thorpeverso parece repetir-se no universo “normal” do Capitão Britânia, devido ao surgimento de sua versão de Mad Jim Jaspers [vilão criado por Thorpe como parte da Gangue Maluca].

Mad Jim surge como um político populista com poderes mutantes de distorcer a realidade [que o Mad Jim do Thorpeverso usou para transformar o impulso em entropia] que surfa em uma onda de paranoia fascista anti-super-herói rumo ao poder.

Moore, no entanto, dá contornos menos políticos e mais simbólicos a essa trama. O Reino Unido, sob seu domínio, é uma sucursal do Inferno, e não uma analogia para o mundo real. Por exemplo, a sua tropa é formada por soldados-besouros:

Jaspers, por sua vez, pode ter chegado ao poder de forma política, mas ele também não é uma analogia para qualquer político real. Ele é muito mais do que um tirano comum. Ao mesmo tempo em que ele é a autoridade absoluta de um mundo absolutamente hierarquizado, ele não segue qualquer padrão moral discernível. Ele é um tirano de poder absoluto que é exercido sem sentido, um falso deus que joga dados com o universo:

Mais: o seu verdadeiro contraponto não é o Capitão Britânia. O Capitão, na verdade, é amplamente superado pela situação, Ele não passa de um peão de Merlin, que é, em última análise, quem comanda o quadro geral, com propósitos misteriosos:

Colocando tudo isso em ordem, o que temos é um vilão que é um falso deus, combatido por um homem falho guiado por um Merlin, que é quem controla a situação a partir de um supra-universo. Isso evidentemente está muitos andares acima de uma história política.

A história, no entanto, não é mítica: ao contrário do que pode parecer a partir desse resuminho, Moore não escreveu um auto medieval. Ele acrescentou um componente de ironia nisso tudo: o Capitão não é apenas limitado, mas ridiculamente falho, e o Merlin não é lá muito divino. 

Mas para falar disso, preciso de um novo capítulo: um que trate daquilo que Moore acrescentou ao prédio na construção do seu novo Capitão Britânia.

II. ERGUENDO MUNDOS NOVOS

Bart Simpson: Alan Moore! You wrote my favorite issues of Radioactive Man!
Alan Moore: Oh really? So you like that I made your favorite superhero 
a heroin-addicted jazz critic who’s not radioactive?
[Os Simpsons, temporada 19, episódio 7]

Moore não se limitou a arrumar a bagunça que ele fez com as ideias dos outros. Ele também incluiu ideias novas na mistura — ideias que continuariam aparecendo em seus gibis.

A principal delas está na forma de tratamento do próprio Capitão Britânia. Moore trata ele de forma irônica. Ele é alto, forte, loiro, ombrudo e queixudo, desenhado com as elegantes linhas longas que caracterizam o estilo de Davis… mas também totalmente inapto para combater as ameaças que ele enfrenta.

Os vilões das histórias são um juiz injusto e um mutante que controla a realidade: ameaças contra as quais os seus poderes são inúteis. Fúria, o Exterminador do Futuro que assassinou todos os super-heróis do Thorpeverso [e conseguiu escapar da entropia rumo ao universo do Capitão], seria uma ameaça física à altura. Mas ele é derrotado pela Capitã Reino Unido [que também fugiu do mundo de Thorpe] depois de uma catarse emocional: a força dela é a superação do medo, e não um elmo mágico.

Tratar super-heróis de forma irônica, é claro, é a pedra de toque da obra de Moore.

Não é, no entanto, o único tipo de humor que ele costuma usar. Isso pode passar batido pela fama de sério de Moore, mas, como um quadrinista com raízes no underground que ele é, ele usa bastante humor negro em seus trabalhos. D.R. & Quinch talvez seja o exemplo mais lembrável, mas até Watchmen está cheio de piadas cruéis [como a morte de Dollar Bill]. Em Capitão Britânia, isso é facilmente perceptível na morte de Jackdaw, o sidekick e alívio cômico irritante com um “J” gigante no peito que é pulverizado diante de um Capitão atônito. Seria horrivelmente trágico, se não fosse ao mesmo tempo de um sentimentalismo extremamente ridículo:

Davis também acrescenta humor à série, ainda que de uma forma mais cartunesca. Como eu já comentei, grande parte da ironia que se faz em cima do Capitão é visual: o contraste entre a sua aparência e a situação na qual ele está inserido. Mas além disso, Davis também domina expressões faciais e o design de monstros de aspecto caricato:

O que nos leva a outra faceta da fase de Moore: enquanto Thorpe tentou ser surrealista, Moore foi psicodélico. O planeta-sede do Tribunal de Desenvolvimento Dimensional é o eixo de diversas realidades, formado por alienígenas de aspecto cômico. É o tipo de coisa que alguém que concluiu, a partir do uso habitual de LSD nos anos 70, que “a realidade não é uma coisa estática”, incluiria em um gibi. Também é o tipo de coisa que reapareceria em Promethea.

Moore também acrescentou ficção científica especulativa [o que pode até mesmo ser um subproduto da psicodelia, como a existência de um multiverso parece indicar] às suas histórias. Um exemplo disso é o já citado Poder Executivo, que inclui membros como Zeitgest, um sub-Dr. Manhattan que atravessa objetos sólidos se transportando para uma “faixa” da realidade em que eles não existem. A ficção científica especulativa é, de novo, algo que reapareceria nos gibis de Moore [como em Jack B. Quick, da série de Tomorrow Stories].

O acréscimo mais perceptível, no entanto, é na sofisticação da linguagem usada. A mudança de escritor é facilmente perceptível já na sua primeira página: a página anterior, 54 do encadernado, inicia com um texto de apoio “e nesse instante” e tem, no total, 21 palavras em textos de apoio, todas elas descrevendo a ação retratada no quadrinho. A página 55 passa das cinquenta palavras em texto de apoio no segundo quadrinho. 

É evidente a diferença entre a pretensão literária do escritor de uma página e o escritor da outra. Na segunda página, o texto tem aquele estilo denso e ornamentado típico dos textos de apoio de Moore:

“Ouve-se a fuzilaria de rolhas de champanhe e vozes alegres. Mas, não muito longe, um homem distorcido dá um sorriso distorcido. Seu nome é Jim Jaspers, ou Mad Jim, e sua mente é um parque de diversões para pesadelos. Todos esqueceram Mad Jim Jaspers”.

Essa sofisticação também pode ser percebida no uso de referências literárias ao longo da história. Um bom exemplo é o título da história de The Mighty World of Marvel #9, “Em meio à máquina infernal”. Como os tradutores bem perceberam, isso [“among these dark Satanic Mills”, no original] é um verso de Jerusalém, de William Blake:

 
And did those feet in ancient time.
Walk upon England’s mountains green:
And was the holy Lamb of God,
On England’s pleasant pastures seen!
 
And did the Countenance Divine, 
Shine forth upon our clouded hills?
And was Jerusalem builded here,
Among these dark Satanic Mills?
 
Bring me my Bow of burning gold; 
Bring me my Arrows of desire:
Bring me my Spear: O clouds unfold!
Bring me my Chariot of fire!
 
I will not cease from Mental Fight, 
Nor shall my Sword sleep in my hand:
Till we have built Jerusalem,
In England’s green & pleasant Land
 

Blake, inclusive, é uma figurinha carimbada nos gibis de Moore: ele é citado em Monstro do Pântano, V de Vingança, Watchmen, From Hell, Promethea e A Liga Extraordinária.

Outro aspecto dessa sofisticação é o cálculo na construção da história, o que também é comum nos seus gibis [é, inclusive, uma das críticas que se costuma fazer a ele, sob o argumento de que isso faz com que as suas histórias sejam frias e formalistas]. É perceptível que Moore está, como Merlin, jogando xadrez com os seus personagens: a resolução da história ocorre pela ação de personagens que ele introduziu já nas suas primeiras páginas, e que foram desenvolvidos em paralelo ao arco principal. Existe aquela sensação de que todas as peças se encaixam, como em Watchmen [ainda que de forma bem menos complexa].

Mas falar da narrativa de Capitão Britânia é falar de Davis: isso aqui, no final das contas, é um gibi, e mesmo na fase de Moore a sua participação foi considerável [a colaboração entre os dois foi do tipo que Moore manteve com David Lloyd]. E para falar de Davis eu preciso de mais um capítulo.

III. ALAN DAVIS

Davis, em primeiro lugar, colabora com o humor do gibi. O tipo de humor que ele acrescenta, no entanto, é mais cartunesco [o que dá sentido para o fato de que ele cita John M. Burns como uma influência]: ele desenha pessoas com cara de bobo. Isso dá para a série um outro tipo de ironia: além de colocar um heróico Capitão Britânia em situações nas quais o seu heroísmo é inadequado, ele também desenha os personagens da história em situações comuns, nas quais o seu aspecto fantástico é ridículo:

Outra contribuição importante de Davis é a inventividade de suas composições de página. Como eu já disse, Davis, na época, estava na primeira metade de seus vinte anos; era casado e tinha dois filhos, conciliava os quadrinhos com trabalho em um depósito. Mesmo assim, a sua primeira página de seu primeiro gibi como quadrinista profissional foi essa:

Existem pelo menos quatro coisas notáveis nessa página. A primeira delas é o layout em Z, que acompanha o movimento dos olhos ao mesmo tempo que transmite uma sensação de vertigem, como se os quadrinhos estivessem em espiral. A segunda, a discussão entre Merlin e Arthur “fora” de um quadrinho e em paralelo à espiral — ou seja, ao mesmo tempo, mas em uma realidade diferente e superior. 

A terceira é a piada visual no lado esquerdo do leitor, com a queda de Jackdaw e a aterrissagem perfeita do Capitão [Davis, aliás, é um excelente piadista visual: essa é uma das partes mais legais de sua fase em Excalibur]. A quarta é o novo uniforme do Capitão, design do próprio Davis, mil vezes melhor que o original. Todas elas podem ser resumidas assim: olha a audácia desse cara.

Claro que nem tudo deu tão certo. Existem alguns problemas menores que podem ser atribuídos à pressa e ao amadorismo de Davis. Existe uma anedota em relação à primeira edição: Davis não sabia que devia deixar espaço na arte para o letrista inserir balões de fala, o que fez com que a algumas páginas fossem remontadas para abri-lo. Mesmo depois, ele derrapa na anatomia…

O padrão é que o corpo tenha o tamanho de sete cabeças [oito no total]

…e alguns layouts não funcionam:

Basicamente tudo errado na metade de baixo da página

Mas o principal problema do desenho da hq é a edição. As histórias do encadernado foram originalmente desenhadas por Davis em uma escala próxima de 1×1 [ele não sabia que o desenho original era reduzido para a impressão] e em preto e branco.

Essa edição da Panini [não se empolgue: a edição da Salvat é igual nesse ponto], no entanto, não apenas foi editada com base em arquivos recoloridos digitalmente, como também em imagens mal escaneados. Isso destruiu o trabalho do pobre Davis.

Em primeiro lugar, em alguns quadrinhos o traço “enfraqueceu”, engolindo os detalhes do traço onde a linha era fina e emagrecendo linhas grossas. Isso é ruim, porque Davis costuma usar linhas longas e moduladas [ou seja, a grossura do traço transmite informação]. As cores, ainda, “brigam” com a arte original em preto e branco: em algumas páginas, a virtude da colorização é engolida pela massa de preto que Davis desenhou no original; em outras, as virtudes do preto e branco são anuladas pela colorização.

Isso não é livre de impactos narrativos. Alguns desses defeitos interferem na informação originalmente transmitida; outros, transmitem novas informações. Davis aposta quase todas as suas fichas de textura em hachuras, o que dá um aspecto realista para os cenários. Existe um propósito nisso: faz com que o heroísmo idealizado do Capitão seja ainda mais irreal e cartunesco, e naturaliza o fato de que ele passa metade do gibi apanhando [o que é mais realista]. 

Entre The Mighty World of Marvel #7 e #9 tem até uma brincadeira com isso. A história se passa “no futuro” dominado por Jaspers. Duas pessoas comentam as lendas que existem em torno do Capitão. Elas fazem isso em um tom, bom, lendário, algo perfeitamente bem refletido na página em preto e branco:

Páginas depois, no entanto, temos a “realidade”. O Capitão está escondido em um lugar onde as promessas de sua super-figura são perfeitamente falsas:

Mais algumas páginas e o Capitão decide enfrentar Jaspers… apenas para descobrir que a realidade também é inadequada aos seus poderes, por superá-los absurdamente. De novo, a escala absurda da ameaça está perfeitamente refletida na página em preto e branco:

A colorização digital “achata” essa variação entre lendário-realista-absurdo em um tom alto: tudo é absurdo.

A sombra azul dá volume e “corporifica” Mad Jim
de forma a deixá-lo mais “pessoa” e menos “eterno”

Outro exemplo do efeito deletério da colorização é essa página, uma das melhores e Davis no original:

Ela é destruída.

Duvido que essa página tivesse sido desenhada assim se Davis soubesse que ela seria colorida. A colorização altera o caminho dos olhos sem qualquer lógica: existe, na página em preto e branco, uma progressão entre Teia, Fúria, Jaspers, peça de xadrez do Capitão e Teia e outra em “U”, entre Teia, Legião, Capitã RU, Capitão distorcido, e Teia: ela sugere o fluxo de pensamento da Teia entre o início e o final da página.

A colorização, no entanto, altera totalmente esse fluxo. Não há coerência cromática nos caminhos que o desenho em preto e branco sugere. Também não faz sentido: o Legião, laranja, se torna o elemento de maior destaque na página; o Capitão Britânia distorcido, o de menor. 

Existe outro elemento que foi limado da edição da Panini: o esforço de Moore para se tornar ele mesmo um personagem. 

IV. PERSONA

 
“I’m merely remarking upon the paradox 
of asking a masked man who he is”
[V de Vingança]
 

Hoje em dia, grande parte da fama de Moore persiste graças à sua personalidade pública. As declarações bombásticas, o envolvimento com magia, a imediatamente reconhecível aparência física: Moore é um escritor e um personagem, sem que se saiba até que ponto esse personagem corresponde ao Alan Moore real.

É fácil enxergar a origem disso. Moore começou a se envolver com a arte de forma mais séria no Arts Lab de Northampton. O Arts Lab original foi um agrupamento londrino de artistas alternativos, existente entre 1967 e 1969, que inspirou o surgimento de grupos similares por toda a Inglaterra. Lá, Moore não apenas escrevia contos e poemas, mas também lia eles em público: o texto era interpretado pelo seu próprio autor de forma performática. Estava, portanto, ligado ao próprio autor, planejado conforme o que seria a sua própria apresentação. É algo que retornaria para a carreira de Moore de forma muito perceptível nos anos 90: a hq The Birth Caul, de 1999, é uma quadrinização de uma apresentação pública de Moore, que tem apenas um protagonista reconhecível: o próprio Alan Moore.

O Capitão Britânia de Alan Moore

Em parte de sua fase como roteirista do personagem Capitão Britânia, Moore tentou desenvolver isso em uma versão mais adequada aos quadrinhos de super-heróis dos anos 80. 

Parte das histórias de Moore foram publicadas na série The Daredevils [revista que também publicava o Demolidor de Frank Miller]. A revista, no entanto, não publicava apenas histórias em quadrinhos. Mais ou menos 40% dela era formada por material que caberia em uma revista sobre quadrinhos: resenhas, artigos de opinião, matérias sobre festivais e coisas do tipo.

O plano era tentar aproveitar o surgimento do fandom de quadrinhos americanos na Inglaterra. Para alegria de Jaye, que tinha em Moore um colaborador confiável e disposto, o próprio tinha um plano parecido para a sua carreira: Moore enxergava no surgimento desse fandom a chance de se tornar mais do que um quadrinista — talvez até mesmo um Stan Lee, o quadrinista-personagem mais bem-sucedido de todos os tempos, dos quadrinhos dos anos 80.

Para executar esse plano, Moore quase monopolizou o espaço extra de The Daredevils. O seu público alvo era o novo leitor de quadrinhos: adulto e com um interesse mais sofisticado no assunto. Ele pretendia ser uma espécie de guru desses novos leitores: foi sua a ideia de incluir na revista uma seção fixa dedicada a resenhas, escritas por ele mesmo, de fanzines britânicos. Nessa mesma época, Moore ainda costumava participar de convenções de quadrinhos, onde dava dicas para aspirantes a quadrinistas. Uma de suas histórias para o Capitão Britânia [The Daredevils #3] inclui a participação especial da Forbidden Planet, comics-shop londrina que era ponto de encontro dos fãs — talvez o único reflexo dessa faceta do seu trabalho nas reedições posteriores de sua fase do Capitão.

Isso é especialmente perceptível nos artigos de opinião que ele escreveu para a revista: para The Daredevils #1, por exemplo, ele escreveu uma análise de seis páginas sobre o Demolidor de Miller. Para The Daredevils #5, um artigo de três páginas sobre a relação entre quadrinhos e música. Para The Daredevils #8, Moore escreveu uma história curta, “Grit”, que é uma paródia do Demolidor de Miller [“Dourdevil: the man without a sense of humour”]:

O Capitão Britânia de Alan Moore

Nada é mais claro que o artigo publicado em duas partes nas edições #3 e #4 da revista: o seu ponto central é a necessidade de se encontrar um Stan Lee moderno.

Talvez, naquela época, Moore se enxergasse como candidato a esse papel. E talvez por isso que o cancelamento da revista tenha sido tão dolorido: ela não era apenas uma cabeceira para a sua hq, facilmente substituível por outra. O fato é que o cancelamento foi o início do fim: logo a relação de Moore com a Marvel aconteceria apenas através de ranger de dentes. 

V. PROBLEMAS

 
“A bargain with a demon is no bargain at all. 
Demons cheat; it is their nature”. 
[Monstro do Pântano]

Em 1983, Moore já não estava particularmente feliz com a Marvel. A Marvel UK era uma operação pequena e problemática, e Moore reclamava de atraso nos pagamentos. Confiava, no entanto, em Jaye, que frequentemente comprava brigas que eram suas e de Davis.

A isso se somava um segundo problema: Marvelman. Moore estava se tornando um sucesso nos EUA e Marvelman era, em tese, o seu trabalho britânico que seria mais fácil de vender para o mercado americano [com a vantagem adicional de que Moore era co-proprietário dos direitos da série]. A DC, no entanto, não estava disposta a correr o risco de ser processada pela Marvel por problemas marcários: isso era uma possibilidade concreta, como o caso Shazam/Capitão Marvel demonstra, ainda que Jim Shooter, editor da Casa das Ideias, não tivesse mostrado interesse em publicar as histórias. 

Skinn [editor da Warrior, onde Marvelman era publicado, e responsável por tentar vender a série nos EUA] também não estava lá muito disposto a comprar essa briga:: a sua editora, uma operação ainda menor que a Marvel UK, não teria condições de suportar o custo de um processo nos EUA. A alternativa que ele apresentou para viabilizar o negócio com alguma editora que não fosse a Marvel foi trocar o nome do personagem para Miracleman [como o próprio Moore fizera em uma piadinha de The Daredevils #7].

O Capitão Britânia de Alan Moore

Moore, no entanto, não estava disposto a fazer essa concessão: ele não gostava da idéia de sacrificar a integridade de seu trabalho para satisfazer os caprichos de uma empresa que podia nem ter razão, e que estava impondo a sua vontade pela força. Isso não caiu bem com Davis e Skinn: eles precisavam do dinheiro e eram co-proprietário de Marvelman, mas isso era inútil sem o “ok” de Moore.

Quando The Daredevils foi cancelada na edição #11 e o Capitão Britânia migrou para a série The Mighty World of Marvel [que estava na edição #7 e publicava o Wolverine de Claremont e Miller], a paciência de Moore com a editora aparentemente acabou: além do investimento que Moore fizera na série, a troca de títulos deixara Jaye sem uma série para editar, e ela acabou deixando a Marvel UK. 

Era o início de uma crise que levaria ao rompimento das relações entre Moore e a Marvel, e ao fim da amizade e da parceria de Moore e Davis — que é, até hoje, uma das mais prolíficas na carreira de Moore.

Moore interpretou a saída de Jaye como um desrespeito e um descaso: ela não teria sido previamente avisada do cancelamento de The Daredevils e da extinção de seu posto de trabalho. Em The Mighty World of Marvel, Moore se limitou a fechar o seu arco [o que aconteceu na edição #13] e pular fora: existe um salto lógico gigante entre o final de The Daredevils #11 e o início de The Mighty World of Marvel #7, a primeira edição da série com uma história do Capitão Britânia.

Davis [para não falar de Skinn] já não estava lá muito feliz com Moore: a eventual publicação de Marvelman nos EUA seria vantajosa para Davis não apenas pelo pagamento imediato, mas também por colocar o pé dele na porta do mercado americano. Era algo que não preocupava a Moore, que já estava com a sua carreira nos EUA engatilhada. Daí que Davis tenha visto na saída de Jaye [que, conforme ele diz, pediu demissão para tentar um emprego na sua área de formação, a sociologia] o pretexto que Moore encontrou para encerrar a sua colaboração com a Marvel UK e dedicar-se definitivamente a sua carreira do lado de cá do Atlântico.

Tudo isso aconteceu entre 1983 e 1984. Em 1985, essas tensões acumuladas explodiram e os mísseis balísticos foram lançados. 

Primeiro, Skinn encontrou uma editora disposta a publicar Marvelman nos EUA. Isso fez com que a Marvel agisse, enviado cartas ameaçadoras para os envolvidos. Moore não deixou por menos. Conforme o seu contrato com a Marvel UK, a editora precisaria da autorização dos quadrinistas envolvidos para qualquer republicação do Capitão Britânia: Moore, diante das ameaças, desautorizou qualquer republicação e avisou que jamais voltaria a colaborar com a editora. Na passada, ainda autorizou que Marvelman fosse publicado como Miracleman.

No entanto, Davis novamente se viu como único prejudicado. Em 1985, ele foi contratado pela DC para desenhar Batman and The Outsiders. Era a sua chance de iniciar uma carreira nos EUA: ele já não precisava de Marvelman para isso. A republicação de Capitão Britânia, no entanto, cairia bem: não só garantiria um dinheiro extra, como era uma forma de manter as portas da Marvel abertas. Os escrúpulos de Moore eram, novamente, o obstáculo.

Dessa vez, no entanto, ele poderia reagir afundando a publicação de Marvelman/Miracleman nos EUA. Foi o que ele tentou fazer, retirando a sua autorização para o negócio. A Eclipse, onde a série foi parar depois da falência da interessada original [a Pacific], no entanto, deu de ombros e publicou Marvelman/Miracleman de qualquer forma: sem a autorização de Davis e sem se preocupar em pagá-lo. Davis acreditava que Moore devia fazer algo sobre o assunto. Moore diz que não ficou sabendo do problema. Os dois nunca mais trabalharam juntos [ainda que Scott Dunbier tenha tentado contratar Davis para desenhar Promethea uns 15 anos depois].

É uma sequência de acontecimentos que ilustra bastante bem o padrão de confrontos que Moore manteve com diversas editoras ao longo de sua carreira: surge um problema, Moore se recusa a fazer concessões do lado criativo e tudo vai pro saco, atingindo a carreira de outros quadrinistas que estavam na periferia dos acontecimentos. Os mais cínicos também podem dizer que é uma história que ilustra perfeitamente bem as vantagens que o trabalho work for hire tem para o público que, no fim das contas, quer ver os gibis nas bancas.

Mas também é uma sequência de acontecimentos com um final feliz, que revela uma faceta de Moore que talvez seja menos conhecida. Capitão Britânia, no final das contas, foi republicado: a existência da edição da Panini é uma prova disso. Moore, portanto, em algum momento, concordou com a republicação de suas histórias. 

Isso aconteceu porque ele encontrou um outro desafeto, Phil Hall, em um bar.

Hall é um jornalista inglês que escreve sobre quadrinhos, conhecido por ter sido editor da revista Comics International. Um funcionário da Marvel amigo seu, Lou Bank, comentou que Capitão Britânia não seria republicado por causa de Moore, e que isso, muito embora provavelmente não fizesse mais diferença para Davis, poderia ajudar Thorpe: depois de sua fase no gibi do Capitão, ele não escreveu mais nenhuma hq.

Meses depois, Hall encontrou Moore em um pub de Northampton e comentou com ele exatamente isso: as histórias de Thorpe jamais seriam republicadas em um encadernado próprio, desacompanhado dos gibis de Moore. Thorpe poderia estar precisando disso, e Moore estava trancando a rua por coisas que aconteceram quase dez anos antes.

Seis meses depois, o Capitão Britânia de Davis, Thorpe e Moore foi republicado pela primeira vez: além de reunir amostras de diversos gibis que Moore publicaria ao longo de sua carreira, a nova edição também provou que embaixo daquela barba também bate um coração.

Capitão Britânia
Alan Moore, Alan Davis, Dave Thorpe, Helen Nally e Andy Seddon
[Panini, 2015]