Marvels, de Kurt Busiek e Alex Ross: Terríveis maravilhas

As poucas resenhas que existem sobre Marvels costumam explicar a minissérie como o marco inaugural de uma nova “Era” dos quadrinhos, batizada, provavelmente por fãs de quadrinhos que se dão mais importância do que deveriam, de Renascença.

Grant Morrison, que talvez seja o fã de quadrinhos que se dá mais importância do que deveria arquetípico, é um deles: no seu livro Supergods, Marvels é o primeiro gibi da lista de leituras recomendadas do período.

Morrison não é um qualquer para falar sobre o assunto. Na segunda metade dos anos 90, o auge da [suposta] Renascença dos quadrinhos, ele era a principal estrela da indústria americana [ainda que isso, em grande parte, seja por conta do auto-exílio de Alan Moore e Neil Gaiman]: desde então, o seu nome passou a estar associado à reapropriação ao mesmo tempo nostálgica e irônica de ideias da Era de Prata, uma das características daquela “Era”.

Se vista desde perto, no entanto, essa análise é superficial.

Em Supergods, Morrison descreve a Renascença dos quadrinhos como a o período em que os gibis americanos passaram a ser protagonizados por “super-heróis relaxados e confiantes, livres das neuroses da Idade das Trevas” [a “Era” imediatamente anterior, que vai de Miracleman de Moore ao auge da Image original].

Tem mais: a sua JLA, pensada como um quadrinho que exemplificaria as características do período, foi pensada para ser livre de “meta-truques pós-modernos intrusivos”, substituídos por “mitologia de ficção científica inalterada e inocente em formato de quadrinhos, devolvendo aos super-heróis o respeito e a dignidade que uma década de ‘realismo’ e duras críticas lhes tinham tirado”.

Ele segue: na Renascença, as hqs americanos oscilaram entre o “pastiche e a reapropriação consciente de objetos kitsch, a serviço de um propósito mortalmente irônico, muito próximo da estética de Jeff Koons” e os “dad comics”, gibis que tentaram “reverter a maré para voltar aos tempos de Julius Schwartz ou Roy Thomas”, em que “era comum uma saudade melosa pela ‘diversão’ e pela simplicidade moral da Era de Prata”.

Existem, é claro, uma série de críticas que se podem fazer à sua definição. Mesmo deixando de fora a parte de Supergods que fala do papel fundamental dos ciclos solares na oscilação pendular entre cinismo e inocência na história dos quadrinhos, e ainda que alguns dos gibis publicados naquela época de fato tenham aquelas características, já de início poderíamos nos perguntar se faz sentido definir uma Era com base em hqs que foram basicamente publicados ao longo de uns seis ou sete anos: Marvels foi originalmente publicada em 1994; o selo Marvel Max foi lançado em 2001. Mesmo no meio do caminho, a Marvel publicou Ruins, a minissérie anti-Marvels escrita por Warren Ellis.

Mas mesmo se você aceitar a categoria como válida, não há como utilizá-la para explicar Marvels.

Destilando as ideias de Morrison, se são três as principais características dos quadrinhos da Renascença: o protagonista das histórias é um super-herói bem resolvido, que representa determinados valores; não há metalinguagem; a abordagem oscila entre a ironia e a nostalgia.

Marvels não tem nenhuma dessas características.

O protagonista de Marvels não é um super-herói bem resolvido. Talvez seja o exato contrário disso: é uma pessoa comum mal resolvida, um fotógrafo de super-heróis, Phil Sheldon, que passa a história inteira tentando descobrir qual é o papel do homem normal em um mundo submetido a forças que estão além de seu controle. Ele nem ao menos descobre isso: o final é um grande “ah, cansei: sei lá”.

A história se presta a uma interpretação analógica metalinguística: Phil seria um leitor de quadrinhos [ele testemunha em primeira mão as aventuras dos super-heróis] com sentimentos ambíguos em relação à exigente relação do público com os protagonistas das histórias [pense no Homem-Animal questionando Morrison sobre a morte de sua família para diversão do leitor: é o mesmo dilema, só que desde o ponto de vista “do leitor”]. No fim, ele aceita que está velho demais para acompanhar super-heróis. Mesmo se você não gostar de explicações analógicas, não há como ignorar que a minissérie é uma reflexão sobre as histórias passadas da Marvel — noutras palavras, um gibi que comenta gibis.

Por fim, Marvels não tem nem ironia e nem nostalgia do tipo a que Morrison se refere. Existe um confronto irônico entre o sense of wonder do desenho de Ross e as dúvidas de Phil: no entanto, é uma ironia que não tem nada de sátira e não está lá para fazer troças: serve, no entanto, para impedir que o gibi seja lido como um exercício de nostalgia. A comparação com Koons torna isso evidente: Marvels é sincero, não maldoso. As referências de Ross são Andrew Loomis, Norman Rockwell e Edward Hooper, não Koons.


Crédito: Artsy

Na verdade, a melhor forma de explicar Marvels inicia exatamente pelo que Morrison chama de Idade das Trevas, a era que seria imediatamente anterior à Renascença. É que Marvels usa uma variação de um método que foi consagrado no início dos anos 80: o método “revisionista” ou “desconstrucionista” do início dos anos 80.

“Revisionismo” e “Desconstrucionismo” são palavras que a crítica, no que provavelmente seja um esforço para tentar se apropriar da credibilidade de outras teorias e se levar a sério demais, usa para denominar o procedimento, utilizado em larga escala nos anos 80, para fazer os super-heróis “mais realistas” [noutras palavras: desmistificá-los].

É um método que foi inaugurado por Moore em Miracleman, exportado para os EUA pelo próprio Moore em Monstro do Pântano, reproduzido por Morrison em Homem-Animal, por Gaiman em Orquídea Negra e por Frank Miller nas suas histórias do Batman — e, depois disso, por tudo que era jaguara que escrevia gibi nos EUA. Consiste em desmontar o seu personagem e encarar as suas partes separadas, a princípio inocentes, com uma seriedade mortal: Lição de Anatomia é quase um manual para a sua aplicação.

Leiam.

Foi uma das ideias mais impactantes dos quadrinhos: aposto que entre Miracleman, Monstro do Pântano, Homem-Animal, Orquídea Negra, os gibis do Batman do Miller [e Watchmen, que pode ser descrito como a aplicação desse método a todo o gênero dos super-heróis] eu citei uns cinco dos teus dez gibis favoritos.

Um desdobramento tão original produz efeitos retroativo: muda a forma pela qual as pessoas encaravam aquilo que já existia antes da mudança. É por isso que filmes de ficção científica pré-Guerra nas Estrelas, ou filmes de guerra pré-O Resgate do Soldado Ryan, envelheceram dez anos em noventa minutos: não é que os filmes tenham mudado, mas aquilo que você enxerga nos filmes mudou. Você passou a assisti-los por um ângulo novo: o ângulo pelo qual o futuro é um lugar velho para as pessoas que estão lá, ou pelo qual ninguém terminou o Dia D com o uniforme limpo.

Marvels pegou esse fenômeno e traduziu em um novo gibi: o objetivo da minissérie é literalmente recontar as histórias antigas da Marvel por outro ângulo. Não se trata de desconstrução propriamente dita, mas uma derivação: é aquilo que alguém que leu muitos gibis desconstruídos faz em sua cabeça ao ler um gibi publicado antes dos anos 80.

Possivelmente esse alguém seja Busiek, e não de Ross, muito embora esse tenha sido catapultado à fama da noite pro dia graças ao gibi. Dá pra perceber que ele trouxe a desmistificação para a equação comparando as quatro edições por ele escritas com a #0, escrita por Steve Darnall [amigo de Ross, que posteriormente escreveria a minissérie Uncle Sam]:

Melhor cientista do mundo, ninguém jogando garrafas em ninguém…

A história da concepção do gibi também aponta para ele. Ross foi o responsável pela ideia original: ele queria, no entanto, apenas desenhar uma série mensal com histórias curtas protagonizadas pelos personagens clássicos da Marvel, sem uma ligação necessária entre elas. Não porque quisesse reinterpretá-los: apenas procurava um motivo para desenhá-los. Ross queria fazer um Arquivos Secretos do Homem-Aranha que abrangesse toda a Marvel.

Busiek, no entanto, sugeriu a Ross que ele propusesse uma minissérie com início, meio e fim, por acreditar que seria mais fácil de convencer os editores da Marvel a publicar um projeto fechado. De fato, foi o que aconteceu: Busiek, então, ficou na obrigação de escrever uma história que fosse do Tocha Humana original à morte de Gwen Stacy, os dois personagens que Ross mais queria desenhar, e fizesse sentido.

Não é pouco mérito. Não é só uma história que encaixa com o que Moore, Gaiman, Morrison e Miller fizeram dez anos antes, sem ser derivativa: é uma história que sonega os pontos fracos e favorece os pontos fortes do desenho de Ross.

Como eu comentei na resenha de O Reino do Amanhã, o ponto fraco de Ross é desenhar movimento. É um problema sério para um desenhista de gibis de super-heróis. Em Marvels, o protagonista é um fotógrafo caolho. Você vê as cenas de ação do ponto de vista dele — frequente e deliberadamente, como se fosse fotografias: problema neutralizado.

O ponto forte do desenho de Ross está em desenhar adultos com roupas coloridas de uma forma natural que seja mais impressionante e assustadora do que vergonhosa. É como uma corda esticada sobre um abismo, no qual Marvels não cai: os super-heróis da hq impressionam e assustam, assustam e impressionam, mas não constrangem.

Esse “assustam e impressionam” é o segundo elemento, depois do método, que precisa ser analisado para se explicar Marvels. As maravilhas de Marvels não parecem lá muito maravilhosas do ponto de vista dos moradores da Nova Iorque do gibi [e, por consequência, do seu ponto de vista].

Perceba como os heróis parecem alheios às pessoas comuns. O Homem-Gigante aí de cima é um bom exemplo: eles costumam estar de passagem. Quando não são alheios é porque estão manifestando superioridade ou, pior, desprezo:

A segunda edição é aquela na qual isso é mais claro. Não são apenas os mutantes que são criaturas noturnas e ameaçadoras:

Muito embora eles sejam criaturas noturnas e ameaçadoras…

É o próprio casamento de Sue e Reed, que deveria ser o lado solar da história, que é apresentado como um show de frivolidade:

Existe um terceiro elemento a se ter em conta para explicar Marvels: como Phil, o protagonista, se desenvolve nesse cenário. Existe uma progressão: Phil começa a minissérie com sentimentos ambíguos em relação aos super-heróis. Depois de ser tragado pelo ódio da multidão, ele se “converte”: no final da terceira edição, ele enxerga os super-heróis como salvadores. Ao fazê-lo, no entanto, se transforma em um pária.

Com a morte da Gwen, ele não pode mais acreditar nisso: eles não conseguem salvar a inocência que deve ser protegida. Segue como um pária, mas um que sofre duplamente por ter se marginalizado na defesa de uma tese na qual não acredita mais. A sua reinserção se dá pela desistência: como na primeira edição, Phil decide passar a ignorar o problema.

Será que chove?

É uma piadinha que, não por acaso, lembra a piadinha final de Watchmen: ela faz com que o final seja ambíguo. Diante dela, você pode alinhar os três elementos anteriormente explicados de duas formas.

As duas dizem respeito à existência de forças superiores à sua em ação no mundo e na sua vida. Na primeira interpretação possível, no entanto, você é um joguete nas mãos delas e, bom, azar o seu: elas estão à espreita mesmo que você decida ignorá-las, seja como uma menina mutante no seu porão, o fim do mundo pelas mãos de um devorador de planetas ou como um garoto normal que entrega jornais. É uma boa interpretação para um gibi que se esforça que você veja as coisas do ponto de vista dos personagens, considerando que, do ponto de vista deles, esse realmente parece ser o caso.

A outra forma inclui o seu próprio ponto de vista na história. Você, que gastou a vida lendo gibis, e não Phil ou as outras pessoas comuns do gibi, sabe que o Quarteto Fantástico e os Vingadores estavam lá para salvar o dia: no final das contas, eles são heróis, e heróis do tipo que fazem a coisa certa. É por isso que você acha engraçado que Phil pense que Peter Parker é um vigarista que se aproveita do Homem-Aranha, e que você sabe que os X-Men estavam tentando salvar o cara que caiu daquele andaime.

Nessa interpretação, o mundo também é governado por forças superiores à sua e que estão sempre à sua espreita e, veja que sorte: elas querem o seu bem, mesmo que você não saiba, e mesmo que do ponto de vista da experiência imediata não pareça. É uma boa interpretação para um gibi chamado Marvels.

Marvels
Kurt Busiek e Alex Ross
[Marvel, 2017]