Black Nylon, de Daniel Clowes: Freud explica

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Eightball #18, Black Nylon
Daniel Clowes
[Fantagraphics, 1997]

Quando alguém fala em desconstrucionismo de super-heróis, o nome bacana que inventaram para os gibis dos anos 80/90, as referências automáticas do nerd médio são Watchmen e Cavaleiro das Trevas. É fácil perceber o por quê: best-sellers, autores consagrados, etc, etc, etc. Mas o objetivo de Alan Moore e Frank Miller nunca foi meramente destrutivo: a abordagem realista das duas histórias envolve mostrar as costuras dos uniformes, certo — mas é para desmistificá-los, não necessariamente desmoralizá-los. Não é o caso de Daniel Clowes. Não é o caso de Black Nylon.

Black Nylon foi originalmente publicado na revista Eightball#18, em 1997 [dica: você pode encontrá-la, junto com outras pérolas, no encadernado Caricature, da Fantagraphics]. A Eightball é uma espécie de Zap Comix versão Clowes: uma revista publicada de forma independente nos anos oitenta, criada pelo próprio quadrinista para publicar os seus gibis são interferências editoriais. É um método que foi aplicado por diversos quadrinistas com resultados parecidos: histórias curtas, satíricas e com diferentes TEXTURAS, conforme a NÓIA específica do seu criador.
É, precisamente, o caso de Black Nylon, uma sátira cheia de elementos clowesianos. Descobrir o seu alvo é fácil: super-heróis e detetives hard-boiled, de histórias pulp e seus derivados — personalizados nesse cara:
GLAMOUR.
Para TRATÁ-LO, Clowes usa o seu lado mais Como uma luva de veludo moldada em ferro e David Boring e menos Ghost World e Wilson. Noutras palavras: o gibi é INTRINCADO e funciona de um jeito metalinguístico, onírico e ANALÍTICO. Começa com o protagonista sem nome [um stand-in genérico para todos os super-heróis, que são o objeto da sátira] nos explicando o seu “caso” atual: o desaparecimento de uma pessoa que supostamente assassinou o seu próprio pai. Isso, na verdade, é tudo que ele sabe sobre o caso — uma informação pescada de uma conversa paralela em um bar:

FONTES CONFIÁVEIS.
Mas a investigação do crime é secundária: o próprio protagonista nos informa que ele não está interessado em descobrir os fatos [considera a própria realidade um “consenso sem sentido”], mas apenas interpretá-los como um caminho a ser percorrido para revelar uma “verdade interior” sobre o próprio protagonista.
Essa ainda não é a parte da esquizofrenia, mas da metalinguagem: é uma história sobre histórias. É aí que o nosso herói se revela involuntariamente consciente de seu papel como protagonista da história. Percebam como o monólogo do quadrinho ali de cima é parecido com a fala de um crítico [“o fragmento inicial deve ser suficientemente intrigante e misterioso, com um pouco de familiaridade assombrosa…”], como se o protagonista/narrador fosse consciente de que isso aqui é uma história. A ideia é a seguinte: se a jornada do herói de Joseph Campbell é um rito de iniciação, ou um mito que representa o processo de integração da psique, ou como você quiser chamar, toda a história de herói é uma sequência de fatos que somente faz sentido pelo seu efeito sobre a “verdade interior” do protagonista — nesse sentido, portanto, o protagonista está “certo”: a sua investigação é sobre ele, da mesma forma que Guerra nas Estrelas é sobre Luke Skywalker tornar-se um homenzinho.
Por outro lado [o lado “involuntariamente”], Black Nylon é uma história irônica: seu narrador [o protagonista] é inconfiável. O texto, narrado em primeira pessoa, frequentemente é contraditório em relação à objetiva narrativa visual [nenhum movimento de câmera; abundância de planos americanos], a exceção de três planos detalhes que retratam o ponto de vista do protagonista [um deles, aliás, mostrando o diálogo pescado da segunda imagem desse texto, não incluído no quadrinho-objetivo anterior: é possível que a conversa tenha sido imaginada, portanto] e quatro quadrinhos de flashback [dedicados à glamourização do próprio passado; um deles é o que abre essa sequência aí em baixo].

É como se o leitor estivesse “ouvindo” o que o protagonista enxerga, podendo ao mesmo tempo comparar isso com a realidade objetiva. Ele entende, ainda que de uma forma que é ao mesmo tempo megalomaníaca e auto-depreciativa, que a história é sobre ele, e que os fatos narrados dizem respeito à sua personalidade, ao mesmo tempo que é incapaz de compreender o seu significado. Agora, VOCÊ é outra história: ler Black Nylon como uma sequência de fatos não necessariamente relacionados, que só fazem sentido como um simbolismo da “verdade interior” do protagonista, é entrar no caminho certo para compreendê-lo.

Agora, o MÉTODO para entender esse simbolismo é psicoanalítico: pra começo de conversa, e considerando o jeitão irreal da narrativa  [a trama propriamente dita não se resolve; não dá nem para saber se o caso investigado EXISTE], o nosso trabalho é muito parecido com a interpretação de um sonho. Não é algo que eu estou inventando: ao longo da história, Clowes usa diversas referências psicoanalíticas para caracterizar o protagonista. Ken Parille fez um excelente trabalho mapeando elas no Daniel Clowes Reader [LEIA. SEJA FELIZ]. Pra começo de conversa, alguns dos cenários de Black Nylon são calcados naqueles usados no método analítico o Make a Picture Story [MAPS], criado por Edwin S. Shneidman [e que consiste, precisamente, em entregar personagens e cenários pré-prontos para o paciente, cada um com um significado simbólico, e pedir que ele encene uma peça]. Veja esses dois exemplos, que nos serão úteis depois:
E o que tiramos daí? De novo como notou Parille, o caso investigado [“o garoto estrangulou o pai”, conforme o herói da história deduz com base em zero evidências concretas] tem ressonâncias edipianas: o freudiano complexo de Édipo é definido pelo desejo do filho, no processo de formação de sua sexualidade, de matar o pai pelo afeto de sua mãe. Não é uma coincidência, considerando que a história é organizada com base em outro conflito por uma figura feminina: a psiquiatra do protagonista lhe abandonou para iniciar um relacionamento afetivo com Hero Boy, que já tinha lhe roubado o afeto do público [aliás, outra METACAMADA: Hero Boy, a começar pelo nome, parece um ornitorrinco formado com peças de heróis dos anos 80/90].
E o que isso tudo nos diz? Seguindo nessa linha, salta aos olhos a “origem secreta” do herói-protagonista — um trauma mal resolvido no desenvolvimento de sua masculinidade. O “black nylon” do título é uma referência ao seu primeiro disfarce infantil, formado pelas meias-calça de sua mãe, um fato cuja importância para a análise psicológica do protagonista é ressaltada com NEON:
No final, temos um anticlímax imaginário: o protagonista, seguindo uma pista que escolheu ao acaso, chega sem qualquer explicação lógica a uma caverna, onde enxerga o filho/assassino sendo torturado pela mãe vingativa, apenas para matar os dois. A cena é uma projeção: retratada em um quadrinho subjetivo [do ponto de vista do protagonista], é desmentida pelos seus objetivos quadrinhos vizinhos, onde vemos que a caverna [cenário MAPS para “medos e preocupações”] está vazia. Na saída, evitando que a sua ansiedade seja dissipada [e colocando o “anti”” no meu “anticlímax”], é expulso da cidade a tiros — um dos quais lhe atinge no olho, em um castramento bem edipiano. Refugiado na Califórnia, contempla a sua insignificância no alto de uma ponte [cenário MAPS para pensamentos suicidas].

Já comentei que o protagonista é auto-centrado e com problemas com a realidade. Mas a sua personalidade também é caracterizada pela baixa auto-estima narcisista [“ninguém vai perceber” o seu cinto, novo adereço de seu disfarce; “você não pode se envolver demais com o público: ele vai partir o seu coração todas as vezes”] e pela tendência ao uso de violência de forma desproporcional [o adolescente Hero Boy é ainda mais violento].
AMEAÇA NEUTRALIZADA
Pense em Dan Dreiberg [o Coruja de Watchmen] escrito por alguém movido a sarcasmo: Black Nylon é um jeito muito-muito freudiano e metalinguístico de dizer que os super-heróis sofrem de um problema no desenvolvimento de sua sexualidade — um que não resultou em impotência, mas em perda de contato com a realidade, egocentrismo, megalomania e tendência para a violência. Uma forma de provar a própria masculinidade usando as cuecas por fora das calças.  [RESENHAS]