Batman: Xamã, de Dennis O’Neil e Ed Hannigan: Tráfico de drogas, xamanismo, capangas

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Batman: Xamã
Dennis O’Neil, Edward Hannigan, John Beatty, Richmond Lewis e George Pratt
[Panini Comics, 2014]

Em 1989, o Departamento de Decisões Editoriais Óbvias da DC se reuniu e, bom, tomou uma decisão óbvia: criar uma nova série do Batman [a terceira, na época] para aproveitar o FLUXO DE NOVOS NERDS que chegariam as comic-shops americanas depois da estréia de Batman — O Filme, de Tim Burton.

O resultado foi Batman: Legends of the Dark Knight, uma série em que equipes criativas se sucedem em arcos fechados e independentes de 5 edições. A série chegou ao Brasil pelas mãos da Abril em um formato diferente: cada arco foi publicado em uma minissérie diferente, todas sob a cabeceira Um Conto de Batman, na primeira metade da década de 90.
O primeiro desses arcos [o segundo a ser publicado pela Abril, que estreou a cabeceira com o elseworlds Batman: Gotham City, 1889, a Gotham by Gaslight que lançou Mike Mignola à fama] coube a Dennis O’Neil [um dos mais conhecidos escritores do personagem e então editor da bat-linha de gibis], Ed Hannigan [desenhista que co-criou os personagens Manto e Adaga para a Marvel junto com Bill Mantlo], John Beatty [arte-finalista], Richmond Lewis [cores] e George Pratt [o capista, mais conhecido por ser o responsável por Ás Inimigo — Um Poema de Guerra]: Batman: Xamã, agora reunido nessa edição honesta [140 páginas, R$ 14,90] da Panini.

Na história [spoilers dispersos a partir de agora], um Bruce Wayne iniciando a sua carreira no COMBATE AO CRIME, persegue um assassino pelas montanhas do Alasca – apenas para tomar uma ruim e ser curado por um Xamã local, com direito a traje ritual de morcego. De volta a Gotham City, e em processo de se tornar o goddamn-Batman, presencia uma série de assassinatos de contornos ritualísticos, relacionados a um deus-Abutre da fictícia ilha de Santa Prisca. Na investigação, é atacado por alguém usando a máscara de morcego do Xamã do Alasca. O mistério é descobrir a ligação de tudo isso: ela existe, e passa por TRÁFICO DE DROGAS e ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA
Lendo o gibi, você quase consegue sacar o BRIEFING que aquela tropa recebeu: “façam um troço sério pra galera do cinema ae”. Xamã inspira abordagem cinematográfica e expira desejos de ser adulto.
A primeira parte é a mais óbvia: Xamã prescinde quase totalmente de onomatopeias [apenas uma página na primeira edição] e totalmente de balões de pensamento [esses, preteridos pelos textos em off], os dois primeiros elementos típicos das hqs a ir pela janela quando o objetivo é fazê-las mais cinematográficos. Apesar disso, Xamã não deve quase nada a Batman — O Filme. O’Neil e Hanigan não tentam emular a estileira gótico-fantástica do filme de Burton, mas a de referências mais típicas dos quadrinhos. De cara, a pretensão pode ser percebida nas capas de Pratt, um desses quadrinistas [outro: a colorista, Richmond Lewis] que tem um pé nas fine-arts [tanto pela pintura, quanto pela mini-narrativa alegórica]:
Dentro, a história é outra: a referência mais perceptível de Xamã é Batman: Ano Um, de Frank Miller e David Mazzucchelli.
As duas histórias se sobrepõem em momentos: o que Xamã tenta fazer é dar um contexto simbólico-pagão à escolha da roupa de morcego, nos termos que isso ocorreu em Ano Um. A chegada do morcegão no estúdio em que estava o Bruce Wayne moribundo no final da primeira edição de foi interpretada por ele como um “I shall become a bat”, e não como um “Eu deveria ter chamado os dedetizadores”, porque, conforme essa história, um ano antes ele passou por um ritual curativo que envolvia uma máscara de morcego:
CLIC
Batman: Ano Um é expressamente rememorado, com direito a flashback da noite em que Wayne e Selina Kyle se conhecem. Também dá para perceber como Hannigan, um cara cujas influências estão mais para o lado dos desenhistas influenciados por quadrinistas de super-heróis [expressões faciais exageradas, linhas cinéticas, explosões e tudo mais; o cara foi basicamente treinado por John Romita Sr.] e mais conhecido pelo seu trabalho como capista da Marvel, se esforça em parecer mais natural. Mais Mazzucchelli:

Na foto: tecido.
O esforço em emular Ano Um deve ter sido consciente e projetado, já que os dois tem a mesma colorista, que ainda por cima é a esposa de Mazzucchelli. E ela dá uma baita força: o padrão de cores do flashback [por exemplo] é praticamente o mesmo de Ano Um, só que em versão “trabalho para comer”:
Voltando ao roteiro, a coincidência entre os dois gibis não é apenas quanto a sobreposição de sua ambientação cronológica. Assim como Miller/Mazzucchelli, O’Neil/Hannigan fazem um Batman falível…

…e tentam dar, do mesmo jeito que Christopher Nolan na sua trilogia cinematográfica, uma motivação específica para cada elemento da composição do herói: tem a já citada origem xamanística da roupa do morcego, mas também uma para a batcaverna, além de referências a ESTUDOS DETETIVESCOS e MENTORES DO PASSADO.
A diferença é que Xamã é mais… bruto. Miller pode não ser exatamente o quadrinista mais sutil da história, mas os seus trabalhos [ainda mais emparelhado com um cara como Mazzucchelli] tem um viés evidentemente ARTÍSTICO — direto, cru, sujo, mas de um jeito bastante elaborado.
É o que você vê na diferença entre a colorização das páginas ali de cima. O que O’Neil e Hannigan fazem aqui tem muito mais cara de “gibi de linha”. O que Ano Um teve de inovador e artístico foi aqui reprocessado, misturado e serializado, juntamente com a maturidade dos elementos usados na na história [drogas, sacrifícios humanos, etc]. Repare apenas no jogo de sombras da página do Ano Um com a sua total ausência no flashback de Xamã. A semelhança entre as duas é próxima daquela que existe entre a arte inui e o que Hannigan desenha como arte inui [se arte inui fosse um negócio massa pra cacete em primeiro lugar]:
Não deixa de ser irônico que um dos temas do gibi seja o descaso do homem branco com a cultura esquimó.
O’Neil escutou “história adulta” e escreveu vilões psicopatas [grau de alienação mental: dentes tortos e olhar esbugalhado], um mastermind banqueiro-ganancioso, violência caricata [na primeira edição, uma gangue rapta para se “divertir”, já que não tem nada para “enfiar nos canos”, uma jovem grávida], crítica ao imperialismo cultural do homem branco, tráfico de drogas… e “psicologismo” meia-boca [exemplo concreto: o trauma pós-ataque de Alfred, com direito a discurso que começa com “aquele homem me dominou como se eu fosse uma criança”].
É seriedade enlatada, elementos adultos usados de forma acidental em um gibi. Xamã, como vários outros do final dos anos 80 e início dos 90, é um gibi no qual os capangas do vilão estão lá para tomar uma surra e existem planos excessivamente elaborados para matar o herói [como jogá-lo do topo de uma construção, o tipo de lugar que é formado por coisas que poderiam matar uma pessoa]. Só que o disfarce deles é de gangue urbana novaiorquina: o chapéu de newsboy foi substituído por um gorro surrado. [PARA OS FORTES]