Piteco: Ingá, de Shiko: Hollywood paraibana, vibe européia

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Piteco: Ingá
Shiko
[Maurício de Sousa Editora/Panini Comics, 2013]
O projeto Graphic MSP é uma feliz conseqüência de MSP50: a ideia é colocar quadrinistas brasileiros para escrever e desenhar histórias dos personagens da Turma da Mônica com um jeitão autoral – agora, na velocidade de um álbum de cada vez.
A primeira rodada teve por ponto de partida Astronauta: Magnetar, de Danilo Beyruth, que foi seguido de Turma da Mônica: Laços, de Vitor e Lu Cafaggi, Chico Bento: Pavor Espaciar, de Gustavo Duarte [esses dois de vibe mais CUTI CUTI]. O gibi final é precisamente Piteco: Ingá, de Shiko.
Não lembro se isso foi antes ou depois de Magnetar chegar às bancas, mas a primeira vez que eu vi o que Shiko tinha pensado para o Piteco foi no programa Agora é Tarde [aquele mesmo, do Danilo Gentili], que tinha por entrevistados Sidney Gusman [o pai da linha] e Beyruth. O preview foi esse:

É uma promessa não cumprida. Essa imagem [e mais algumas que compõem os EXTRAS da edição], colocada ao lado do INGÁ FINAL, mostra que em algum momento do processo criativo ocorreu uma transformação [spoiler: os velociraptors não foram incluídos no corte final]. A sintonização à nova proposta durou até o fim: nos mesmos extras, se vê que uma capa ligeiramente mais sexualizada, mas já com a cara final de Ingá, foi preterida em relação à definitiva.
Isso é uma ARMADILHA TRIPLA. Primeiro: ao contrário do que o seu cinismo anti-corporativista está SUSSURRANDO agora mesmo, não dá pra saber por que isso aconteceu. Dois: não dá pra resenhar um gibi que não existe com base em três desenhos prévios. E não dá pra resenhar Ingá com base no que ele NÃO É.
A preocupação é: no final das contas, o que Shiko FEZ?
Pra começar pelo óbvio, a trama: a Thuga é sequestrada por uma tribo de homens-tigre; o Piteco, acompanhado de Beleléu e Ogra, parte em uma jornada para salvá-la. A jornada é mítica e épica: passa por uma pá de deidades e, no final, tem um vilão a ser escorraçado e um monstrengo a ser abatido. É o resumo de uma aventura, e Piteco: Ingá é uma em versão Sessão da Tarde: daí que o Piteco simiesco dos testes iniciais tenha se tornado um herói de queixo quadrado e penteado rastafári.

Repita comigo: travessia do primeiro portal.
Isso é só a ÁRVORE, pra ficar em uma metáfora de final de ano: nela, foram pendurados os efeitos NATALINOS. O primeiro deles são os elementos tradicionais dos personagens na versão “tradicional”. Só que o que antes era comédia, agora é JORNADA HERÓICA: Ogra foi de feiosa pré-histórica a guerreira durona.
Mais interessante é a adaptação do próprio Piteco: a sua [originalmente] cômica aversão à Thuga foi usada como um combustível para dar ao personagem um arco rumo à maturidade [leia-se CASAMENTO]: o sequestro de Thuga ocorreu em grande parte pela rejeição de Piteco; salvá-la, na verdade, é superar o medo a criar RAÍZES.
A segunda bolinha reluzente são as referências à cultura sul-americana. A jornada de Piteco passa por um encontro com Camazotz, a deidade maia, e o Curupira [os dois reinventados em versão aventura juvenil, o que é especialmente perceptível no segundo, longe do seu papel de conto folclórico com moral da história], além de ter como pano de fundo a história da Pedra do Ingá e as suas inscrições rupestres — a controvérsia sobre a sua origem, datação e significados é resolvida com a tribo do Piteco, o Povo de Lem, unida pelo apego ao corte de cabelo no estilo mochileiro gringo.
Não é um GRINGUISMO solitário: a própria temática aventura juvenil tem, por si só, um sotaque estrangeiro [quantos filmes brasileiros você assistiu na Sessão da Tarde?]. O gibi também usa referências cinematográficas: a tribo de Piteco é uma espécie de versão avermelhada na tribo de Na’vi [de Avatar, para você que não se lembra de 2009], inclusive pela proximidade ao misticismo natureba; o vilão lembra o arrancador de corações de Indiana Jones e o Templo da Perdição.
Só que menos… corno.
A estada de Shiko em Florença também se faz perceber na apresentação gráfica: a composição de páginas usa um gradil irregular e vários quadrinhos, normalmente entre sete e nove por página — elementos típicos dos quadrinhos europeus. A colorização, feita em aquarela, é um espetáculo a parte. Repare nas páginas 50 a 52 como ela, sozinha, reflete a passagem do tempo através da iluminação — de tarde, a final de tarde, a noite, a barraca iluminada pelo fogo.
O capenguismo fica por conta das cenas de ação, confusas e com uma perspectiva meio estroncha. Um bom exemplo [ou mau, NÉ] é a que acontece entre as páginas 29 e 30: quantos são os atacantes? O que acontece com o cara com o piercing de osso no nariz entre uma página e outra?
Ainda que elas abundem [veja: aventura juvenil], não deixa de ser um problema MENOR. Piteco: Ingá é uma mistura multicultural e muito funcional, um excelente encerramento para uma coleção que já tinha começado muito bem. [PARA OS FORTES]