Demolidor #1, de Mark Waid, Paolo Rivera e Marcos Martín: Bonito, colorido, oprimido

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Demolidor #1
Mark Waid, Paolo Rivera, Marcos Martín e Muntsa Vicente
[Panini, 2013]
A Panini andou tomando uma série de iniciativas pelas quais um NERDISTA CRITERIOSO como eu [EHEM] só pode ficar FELIZ. Caso específico: começar a publicar uma série de BIRIRI CRÍTICO e ACÚMULO PREMIATIVO, o Demolidor [+] de Mark Waid [+], Paolo Rivera [+] e Marcos Martín [+] em uma edição própria, como se um encadernado americano fosse, sem a presença de CORPOS ESTRANHOS ENGORDATIVOS.
E o que essas seis edições nos revelam é um PROJETO CONCEITUAL apoiado em um tripé que faz com que aquele BIRIRI CRÍTICO se justifique: é tudo coisa que o resenhismo americano curte. Em uma graduação de Martín a Waid, que eu elaborei com o auxílio dos meus DONS MEDIÚNICOS, esse tripé é formado por:
1] a narrativa visual traquinas, que sabe usar os poderes do Demolidor como um elemento narrativo;
2] a cara de gibi de super-heróis marvético colorido das antigas;
3] a lógica opressores-oprimidos.

Você vê as patas desse tripé em todas as histórias [praticamente em todos os capítulos] do gibi. As historias são três: as duas primeiras, de três edições cada, compartem estrutura [herói contra vilão, vítimas em perigo, o herói tomando uma surra na edição do meio: a diferença está apenas nos elementos que são penduras nesse arranjo arquetípico]; a terceira, originalmente um complemento da primeira edição que foi deslocado para o final desse encadernado, é praticamente uma declaração de princípios, uma exposição SOLETRADA da abordagem destinada ao leitor desatento e uma JUSTIFICATIVA CRONOLÓGICA para o leitor anal retentivo.
Mas veja só: nessas três histórias, a equipe criativa procura uma desculpa para incluir uma sequência em que os poderes do Demolidor são apresentados de um jeito diferente. São pequenos detalhes [como Foggy Nelson, o eterno advogado sidekick de Matt Murdock, o Demolidor, comendo uma bala crocante, ou abrindo um saco de salgadinhos fedidos, etc], dispersos por todo o gibi, que servem apenas para nos mostrar os poderes do Demolidor em funcionamento.
Para fazer isso, Martín [vou colocar só nas costas dele: Rivera só tá nos créditos do primeiro arco, e a única diferença dele em relação aos outros é que o traço tá com uma cara mais de Mike Allred [+], enquanto que nas outras tá puxando mais pra um Javier Pulido [+] da vida] se vale de um estratagema recorrente: usa quadrinhos amplos [frequentemente splash-pages], através dos quais os personagens desfilam, com quadrinhos menores servindo como plano detalhe de algum elemento específico. Assim, ó:
Poderia usar toda essa história, a última, como exemplo
De resto, Martín é de fato um narrador hábil. Saca só essa página, e como os quadrinhos balançam na página na direção dos golpes, o que, por si só, serve para dar movimento para a troca de socos:
POW SOC TUM
Existe outra característica comum a todas as edições dos dois primeiros arcos que nos fazem passar da PATA UM para a PATA DOIS do nosso TRIPÉ: todas elas começam com uma cena do que a crítica especializada convencionou em chamar de PORRADARIA. A vontade de colocar uma cena de ação pra abrir a história é tão grande que ela nem precisa fazer sentido dentro da história: essa última página, por exemplo, é do início da segunda edição, uma briga entre o Demolidor e o Capitão América [aliás: dois heróis brigando é algo TÃO Marvel…] que dura quatro páginas e não tem razão de ser nenhuma – além, é claro, da referência ao ritmo desenfreado dos gibis das antigas [que, invariavelmente, continuam uma cena de ação] e uma janela para Martín se exibir.
Pra ficarmos na segunda edição, além daquela página de abertura, nós temos esse splash-page duplo [páginas três e quatro], que sozinhos justificariam o que você quisesse:
Marcos Martín: “Desenhei isso, logo sou inocente do assassinato
daquele bebê-foca, excelentíssimo!”
Outra cena de ação inicial que ILUSTRA bem a PATA DOIS é a que abre a quarta edição: Demolidor contra LEÕES. O PARADIGMA ALEGRE se revela pela via da comparação: na fase de Frank Miller [+], o Demolidor lutava contra CROCODILOS nos ESGOTOS; agora, contra LEÕES no zoológico. A semelhança está em que nem Miller sabia desenhar crocodilos, nem Martín, leões:

A última história não é nem tão sutil. Depois de DESFILAR pela cidade, comendo DAMASCOS e tocando VIOLINO NO METRÔ, Matt Murdock discursa para Foggy Nelson: “Eu enxergo. Que eu quero viver. […] Sei que ando agindo de um jeito… diferente… desde que voltei […]. Os últimos anos foram miseráveis. […] Então, decidi mudar meu jeito”.

E, falando de TEXTO, lembramos de Mark Waid e da PATA TRÊS. Partindo do pressuposto que os dois primeiros arcos seguem a estrutura de uma história de aventura, em cada um deles nós temos o herói [Demolidor], um vilão [Klaw no primeiro, uma associação dos grupos terroristas da Marvel no segundo] e a vítima [pense na tradicional dama em apuros].
Começo pelo fim: as vítimas. Os dois primeiros arcos de Demolidor #1 funcionam com base na seguinte lógica: se é minoria, é vítima. No primeiro, temos um pequeno comerciante muçulmano [você sabe isso porque é dito e porque ele usa turbante: é um personagem de religião cosmética], o Ahmed Jobrani, vítima da brutalidade policial: um clichê politicamente correto por si só. Não para por aí: antes de chegar à Murdock & Nelson, passou por diversos outros advogados que, ameaçados, recusaram o seu caso. E esses “diversos outros advogados” são representados na história por um advogado de meia idade e homossexual, Gene Loren, cujo namorado seria atacado caso aceitasse defender o Sr. Jobrani.
No segundo arco, a vítima é um oriental talentoso e cego, demitido de uma grande corporação sem justa causa: de novo, um personagem clichê [o asiático hiper-inteligente, franzino e inofensivo], versão cosmética. Austin Cao é demitido pelo seu superior, uma figura paterna que pretende protegê-lo da cadeia de comando [que pretende eliminá-lo por saber demais], e que, ao final da história, é DESTERRADA. Perceba que, na estrutura dessa história, temos uma vítima minoritária [que se incorpora ao elenco de personagens secundários multicultural da série]; uma figura paterna que se curva aos interesses empresariais, motivo pelo qual é semi-vilanizada; e, como vilão-vilão, uma empresa má-má-má e sem rosto [os seus líderes são executivos de meia-idade perfeitamente intercambiáveis; ela não tem objeto social discernível] que negocia com todos os grupos terroristas da Marvel, etnicamente neutros e sempre mascarados.
TESTE: Encontre o vilão!
Klaw, o vilão da primeira história, em que pese a sua origem como inimigo do Pantera Negra [que, líder de um país africano, enfrentava um personagem que encarnava a colonização ocidental], aparece em versão ainda mais genérica. A empresa do segundo arco é má porque representa o capitalismo sem-coração; Klaw é um vilão porque você sabe que ele é um vilão. Ele até mesmo é apresentado de forma genérica: o Demolidor não luta contra Klaw, especificamente, mas contra uma reunião de suas cópias xerox do personagem, sombras sem nome do vilão propriamente dito e que pretendem invocá-lo.
Essas escolhas reproduzem uma VISÃO: as vítimas de Demolidor #1 são indivíduos [têm nome e sobrenome] minoritários, de características específicas ainda que em versão aguada, subjugadas por forças genéricas e difusas não identificadas, que representam interesses obscuros [no caso da segunda história, pautados pelo lucro]. Nesse contexto, o Demolidor é um CAMPEÃO DOS OPRIMIDOS [um que gosta de DAMASCOS e odeia COMIDA INDUSTRIALIZADA]: de fato, o seu escritório de advocacia se torna uma espécie de assessoria jurídica para o little guy que não tem como contratar um advogado para que o represente, o que ilustra perfeitamente bem o que eu quero dizer.
O da direita está dizendo que existem
advogados de bom coração.
 
Noutras palavras, Demolidor #1 te dá, por R$ 18,90, três histórias de narrativa desbundante colocada a serviço de uma narrativa que é uma versão alegre e século XXI da lógica de filme brasileiro [lembre-se de Paulo Francis: “se vejo um pobre num filme brasileiro tenho vontade de sair gritando: é santo! é santo!”]. Não sei, no entanto, se Mark Waid, um liberal [no sentido americano] declarado e convicto, se deu conta do que fez: em uma época em que a vanguarda politicamente correta defende que as minorias devem se orgulhar de suas diferenças, tratou-as como vítimas e lhes deu como defensor um advogado branco, loiro, atlético e católico. [PARA OS FORTES]