Soidades amargas, suspiros amantes: Tangências e Traço de Giz, de Miguelanxo Prado

Traço de Giz - Miguelanxo Prado

O autor de quadrinhos adultos espanhóis? Um quadrinista galego? Um artista internacional? Quem é Miguelanxo Prado e por que deveríamos ler as suas hqs?

1.
No último episódio de
“A história dos quadrinhos espanhóis”…

Tangências e Traço de Giz, os dois gibis de Miguelanxo Prado recentemente lançados no Brasil, existem e são um sucesso porque o quadrinista surgiu em uma época em que estavam presentes as condições que faltaram a Esteban Maroto.

No início do século XX, a Espanha era a terra de uma incipiente, mas rapidamente crescente, cultura de quadrinhos. Diversas revistas, principalmente de caráter infantil ou juvenil, disputavam a atenção dos leitores. A revista Pulgarcito, da que se tornaria a gigantesca editora Bruguera, tinha tiragens de 300 mil exemplares na década de 20.

Com o início da guerra civil, em 1936, o primeiro boom dos quadrinhos espanhóis foi interrompido. Quadrinistas foram presos e mortos e persistiram apenas revistas que eram peças de propaganda. Os exemplos mais notáveis eram as revistas El Pueblo en Armas e Pionero Rojo, publicadas por republicanos, e as Flechas e Pelayos, publicadas por franquistas.

O fim da guerra, em 1939, não levou apenas à retomada dos quadrinhos espanhóis ao status que se encontravam antes do conflito. O sucesso foi multiplicado. A TBO, uma das revistas mais conhecidas do período, teve tiragens de 350 mil exemplares em 1952. A partir desse momentio, se pode falar na existência de uma indústria dos quadrinhos no país. Diversas revistas e formatos, grandes tiragens e o surgimento de seus personagens mais conhecidos. 

Entre os anos 40 e o final dos anos 70, os quadrinhos na Espanha passaram por um período de prosperidade e estabilidade apoiado principalmente em dois gêneros: a aventura de ficção histórica na linha do Príncipe Valente, de Alex Raymond, e o humor slapstick, inspirado no trabalho do quadrinista franco-belga André Franquin. 

Essa indústria estava apoiada em três cidades. Madri era uma delas, mas o seu papel era secundário: lá, continuariam sendo publicados gibis favoráveis ao franquismo até o final da década de 40, inclusive pelo braço editorial da Falange Española Tradicionalista y de las Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista [FET y de las JONS, o partido único do regime franquista]. O exemplo mais conhecido é a Flechas y Pelayos, resultado da fusão das duas revistas franquistas publicadas durante a guerra.

Entre os anos 40 e metade dos anos 50, a cidade mais importante para os quadrinhos espanhóis era Valencia. Lá que estava a Editorial Valenciana, casa dos personagens mais populares do período, El Guerrero del Antifaz, de Manuel Gago García, e Roberto Alcázar y Pedrín, de Juan Bautista Puerto e Eduardo Vañó Pastor. As séries desses personagens estão entre as mais longevas da história da Espanha: a do Guerrero del Antifaz foi publicada entre 1944 e 1966 [quando começou a ser reeditada em cores], em 668 números. Roberto Alcázar y Pedrín foi publicado entre 1941 e 1976, alcançando o recorde de 1219 números.

Finalmente, a cidade mais importante para os quadrinhos da Espanha, principalmente a partir da segunda metade da década de 50, era Barcelona. Lá estava sediada a editora Bruguera, casa do Capitán Trueno. Criado em 1956 por Victor Mora e Ambrós, esse personagem se tornaria um dos mais populares da história dos quadrinhos espanhóis. No processo, transformaria a Bruguera em uma editora que quase exercia um monopólio sobre a produção de gibis daquele país. A Bruguera também publicaria, a partir de 1958, Mortadelo y Filemón, de Ibañez, série de humor que provavelmente seja o gibi espanhol mais conhecido do mundo. 

Foi nesse contexto de domínio da Bruguera que Esteban Maroto começou a sua carreira nos quadrinhos. Como eu expliquei com mais detalhes no ensaio sobre 5 por Infinito, a série foi criada no contexto da agência Seleciones Ilustradas. Criada por Josep Toutain e sediada em Barcelona, a Seleciones Ilustradas intermediava a relação de quadrinistas espanhóis com editoras de outros países. Assim, formou uma geração com acesso a publicações estrangeiras e com a pretensão de fazer quadrinhos sofisticados e adultos, e não infanto-juvenis como aqueles que eram publicados no seu país. No resto da Europa já existiam publicações desse tipo: a Linus começou a ser publicada na Itália em 1965.

As séries produzidas pela Seleciones Ilustradas pensadas para o público estrangeiro não fizeram muito sucesso interno e são tratadas normalmente como uma nota de rodapé na história editorial espanhola. Como diria o roteirista Alfonso Font, naquela época, comentando a repercussão do seu trabalho:

“Alguns podem duvidar se nasceram na Espanha ou nas antípodas. Ser editado em um monte de países diferentes é elogioso, mas não ser editado no seu próprio país é frustrante”

A grande novidade no panorama editorial espanhol dos anos 60 foi o início da publicação dos gibis da DC Comics no país. Mesmo eles, no entanto, eram importados do México, onde eram editados pela Novaro.

Essa situação somente mudaria a partir de 1975, com a morte de Franco, que comandava o país desde o final da Guerra Civil Espanhola [quase quarenta anos antes]. A morte do ditador, que ocorreu em um momento de crise econômica e tensão política, foi o início da transição rumo à democracia e de uma revolução social no país. É nela que se encontra a origem de “La movida madrileña”, o movimento contracultural que se espalharia pela Espanha na década de 80.

Nos quadrinhos, isso se traduziu em desconfiança do público: os gibis passaram a ser vistos como propaganda do regime, especialmente as aventuras históricas como El Guerrero del Antifaz e El Capitán Trueno [cujo subtexto crítico ao regime franquista somente passou a ser reconhecido recentemente]. A resposta veio através da erupção de gibis como os de Maroto. Era o início do que se chama de “boom del cómic adulto español”, ciclo que somente terminaria aproximadamente vinte anos depois.

É aqui que queria chegar com essa retrospectiva histórica. “El boom del cómic adulto” é um dos períodos de maior efervescência criativa da história dos quadrinhos. Uma geração de quadrinistas especialmente talentosos [Maroto, Carlos Gimenez, Jordi Bernet, Alfonso Font: todos nasceram entre 1941 e 1946] e experientes encontraram, no momento de sua maturidade artística, um público sedento por um novo tipo de hq, durante um período de transição do país.

Existem algumas características marcantes nos gibis publicados nesse período. 

A primeira dessas características é o formato da publicação. Em 1977, o milionário ítalo-argentino Roberto Rocca fundou a editora Nueva Frontera e trouxe, para a Espanha, o formato de revistas antológicas de quadrinhos adultos que já triunfara na Itália e na França. Foram cinco no primeiro ano e três no segundo de existência da nova editora. Dessas oito revistas, três marcariam época: Totem, Blue Jeans e Bumerang.

Esse seria o formato característico do período. No auge do boom, durante a década seguinte, eram simultaneamente publicadas trinta revistas antológicas de quadrinhos adultos no país, algumas com tiragens de 50 mil exemplares ao mês, dignas de uma revista de caráter generalista. 

Essas revistas publicavam histórias curtas ou histórias longas, de forma fracionada. Nesse último caso, como no modelo francês, as histórias longas poderiam ser posteriormente reunidas em um álbum. Esse formato, por sua vez, dificilmente era utilizado para publicações inéditas.

A segunda característica é a existência de um conflito estético.

Esse conflito opunha os defensores da “línea clara” e os da “línea chunga”.  Eram quadrinistas identificados com a “línea clara” aqueles que subiram no ônibus europeu do revival da ligne claire franco-belga. O traço é espesso e decorativo, a narrativa é clara e faz uso de recursos cinematográficos. O seu representante mais conhecido, naturalmente, é Hergé, o autor de Tintin. 

O estilo foi bem definido pelo crítico Juan D’Ors no ensaio Manifiesto del “Nuevo Renacentismo” (o que diablos es eso de la “línea clara”), publicado na revista madrilenha La Luna, em abril de 1984:

I) A moderna adaptação do estilo de Hergé não é apenas válida como um retorno ao classicismo, mas também como uma constante renovação desse estilo. A linha de Hergé é tão esquemática e, ao mesmo tempo, tão definida, que é fácil lhe dar continuidade e modernizar-lhe. É esse o verdadeiro interesse do “Novo Renascimento”: é uma atitude clássica e, ao mesmo tempo, moderníssima. Os desenhistas que não criam, plagiam; os que renovam, são criadores. E, ao mesmo tempo, Hergé permanece único e inimitável.

II) O “Novo Renascimento” não é apenas uma atitude estética e estilística: também é uma atitude ética e narrativa.

III) Como Hergé, o Mestre, nós defendemos a Aventura, livre de intelectualismo e sem “mensagem transcendente”. O que não exclui a ironia e o deboche da nossa sociedade. Se a nossa estética é profunda, o nosso fundo é, principalmente, simples e diretamente “contar uma história”.

Os quadrinistas da línea clara costumavam ser publicados pelas revistas editadas por Joan Navarro, como a Cairo. Lá também eram publicados autores de ligne claire europeus dos anos 50, como Edgar P. Jacobs, ou contemporâneos, como Jacques Tardi e Yves Chaland. Os principais quadrinistas espanhóis de línea clara são Daniel Torres…

Daniel Torres

…e Pere Joan:

Pere Joan

Os quadrinhos espanhóis de línea clara desse período não eram necessariamente infantis. Mas eles não se importavam em parecer pelo menos juvenis e aventurescos. Navarro não se constrangia de identificá-los como “tebeos”, ou pelo menos “neotebeos”, palavra equivalente a “gibi” em português — a sua origem é a revista TBO, dos anos 50.

É aí que entrava a divergência com os quadrinistas da línea chunga. “Chunga” significa “tosca”. A ideia é que, se os quadrinhos queriam ser reconhecidos como uma forma de arte adulta, eles deveriam subverter a estética e os temas habituais dos quadrinhos infantis. Era uma irresignação em diversos níveis: os quadrinistas da línea chunga não utilizavam a palavra “tebeo”, que preteriam em favor do neologismo “cómic”. 

A posição, no entanto, era bastante articulada: os quadrinistas associados à línea chunga publicaram pelo menos dois manifestos, Ante un conato de degradación del significado cultural del cómic [Diante de uma tentativa de degradação do significado cultural dos quadrinhos], de 1983, e Manifiesto contra la exposición Tintín y Hergé [Manifesto contra a exposição de Tintin e Hergé], de 1984

Esse último foi redigido diante do anúncio de uma exposição sobre quadrinhos, organizada pela Fundación Miró, dedicada a Hergé e Tintin. Seria a primeira grande exposição sobre quadrinhos da história do país. Nele, se diz:

Na nossa latitude, onde os cómics ainda não conseguiram o prestígio oficial e popular que merecem e que já alcançaram em outros países cultos, resulta extremamente perigoso para o reconhecimento adulto da nona arte que a Fundação Miró escolha, para a sua primeira exposição monográfica sobre cómics, uma obra com destinatários infantis e sem a categoria estética suficiente para ser hospedada por uma entidade com um nome tão conhecido […]. Em países com uma cultura sólida sobre cómics, ou onde Tintin é um patrimônio nacional, essa exposição deixa de ser automaticamente problemática, uma vez que nesses lugares a situação está clara desde o início. [No entanto, na Espanha, essa exposição] perpetua a imagem infantilóide da qual a narrativa desenhada padece.

Em entrevista ao El País, Javier Coma, crítico de quadrinhos e um dos assinantes do manifesto, foi ainda mais enfático. Ele inclusive recorre ao mito da colaboração de Hergé com o nazismo, e deixa claro o caráter subversivo de sua visão:

“O manifesto pretende […] simplesmente colocar no lugar devido a importância de Hergé. Ninguém parece lembrar que o desenhista foi acusado de colaboracionismo com os nazistas e que ele passou dois anos sem publicar nada. A sua redenção cultural tem a sua origem na França, faz uns dez anos, quando Paris descobriu os quadrinhos americanos e tentou procurar um homólogo francófono. É, em parte, uma iniciativa da nova direita francesa”.

Os quadrinistas da línea chunga costumavam frequentar as revistas editadas por Josep Toutain. Depois de comandar a agência Seleciones Ilustradas, ele se tornou um dos grandes editores de gibis do Boom. Como o próprio Toutain, diversos deles assinaram o manifesto contra Tintin, como Jordi Bernet:

Jordi Bernet

Essa divisão consumiu os quadrinhos infantis espanhóis. Das séries infantis, apenas Mortadelo y Filemón sobreviveu aos anos 80; a própria Bruguera, que era um quase monopólio nos anos 60, faliu em 1986 [o que, curiosamente, marcaria o início do fim do boom].

Isso, no entanto, devolveu protagonismo aos outros dois grandes centros de produção de quadrinhos do país. Tanto a editora de Toutain, quanto a editora que publicava as revistas de Navarro [Norma Editorial, até hoje uma grande editora], tinham sede em Barcelona. Mas Navarro, em que pese ele mesmo fosse catalão, era um grande conhecedor [e defensor] da escola valenciana de quadrinhos. Por fim, a Nueva Frontera tinha sede em Madri. Lá, também se publicava a revista Madriz, uma alternativa pós-moderna à disputa entre a línea clara e a línea chunga.

Madriz

Miguelanxo Prado nasceu em 1958. Descobriu os quadrinhos de uma forma relativamente tardia, no final da década de 70, aos 20 anos de idade. Ele foi apresentado ao meio através da obra de quadrinistas como Moebius, Enki Bilal e Hugo Pratt. Se tornou um quadrinista conhecido na Espanha nos anos 80, quando as histórias que formam Tangências foram originalmente serializadas. 

Para entender as suas hqs, o primeiro passo é descobrir a sua relação com o momento que foram produzidas — o mais importante da história dos quadrinhos na Espanha.

2.
Miguel Angel Prado,
quadrinista espanhol

Miguelanxo Prado pode ser considerado um quadrinista do Boom del Cómic Adulto em dois sentidos.

Em primeiro lugar, está o sentido cronológico. A primeira etapa de sua carreira coincide, quase que exatamente, com aquele período histórico.

Normalmente, o Boom del Cómic Adulto é divido em duas fases. A primeira vai 1977, data de início da publicação das revistas da editora Nueva Frontera, a 1986, data de falência da Bruguera e início do declínio do número de revistas adultas publicadas. A segunda, de 1986 a 1995, data de cancelamento da revista Cimoc, da editora Norma. Era a única revista ainda publicada com as características daquelas idealizadas por Roberto Rocca. El Jueves e El Víbora sobreviveriam aos anos 90, mas como revista de humor e de pornografia. Apenas a primeira ainda existe, e é considerada a revista satírica mais importante do país.

El Jueves

As primeiras hqs de Miguelanxo Prado, por outro lado, foram publicadas em fanzines galegos [Xofre e Zero] no final da década de 70. Já em 1981, no entanto, ele publicou a sua primeira história na Creepy. Era uma das principais revistas da Toutain Editor, que misturava histórias originalmente publicadas na Warren [não por acaso, uma cliente da Seleciones Ilustradas] com outras histórias de quadrinistas adultos americanos [como Will Eisner],e mais algumas originais e produzidas por espanhóis. A participação de Prado foi anunciada na capa da revista — com o seu prenome na grafia espanhola, Miguel Ángel, e com erro de digitação em seu sobrenome, que virou Pardo.

Creepy - Miguel Angel Pardo

Entre 1981 e 1986, Miguelanxo Prado permaneceria na Toutain Editor publicando histórias curtas nas suas principais revistas: além da Creepy, a 1984 e a sua sucessora, Zona 84, e Comix Internacional. As histórias desse período seriam posteriormente relançadas em formato álbum: Fragmentos de la Enciclopedia Délfica, Stratos e Crónicas Incongruentes. Ainda em 1986, ele iniciaria na revista El Jueves a publicação das histórias que posteriormente seriam reunidas no álbum Quotidianía Delirante.

Tangências, por sua vez, é formada por oito histórias curtas originalmente serializadas na revista Cimoc entre 1986 e 1995. Traço de Giz foi serializado na mesma revista entre 1992 e 1993. As duas hqs seriam publicadas em formato álbum em 1993 [Traço de Giz] e 1995 [Tangências].

Depois da publicação de Tangências, e com o fim do Boom del Cómic Adulto, Miguelanxo Prado somente lançaria outra hq inédita em 2003. Foi fora do país: ele desenhou uma das histórias curtas de Sandman: Noites Sem Fim, com roteiro de Neil Gaiman.

Na Espanha, o seu próximo trabalho seria lançado apenas em 2004. Foi um gibi educativo escrito em galego e primeiramente distribuído em escolas públicas, La mansión de los Pampín. A hq seria lançada comercialmente em espanhol apenas em 2005, pela editora Norma.

Essa etapa da carreira de Miguelanxo Prado, portanto, coincide cronologicamente com o Boom del Cómic Adulto. Além disso, no entanto, deve ser visto que ela não transcorreu de forma periférica ao fenômeno.

Entre 1980 e 1995, Miguelanxo Prado publicou suas hqs nas principais revistas do período: a Creepy, a 1984 e a sua sucessora, Zona 84, Comix Internacional, El Jueves, Cairo e Cimoc. São revistas criadas pelos editores mais importantes da época, Josep Toutain e Joan Navarro.

Também existe uma certa afinidade em relação ao conteúdo. As histórias de Miguelanxo Prado, finalmente, são dirigidas ao público adulto. Até hoje, o quadrinista fez apenas uma hq dirigida ao público infantil, Pedro y el Lobo. Mesmo assim, a sua abordagem é sofisticada, semelhante à dos livros e gibis de Neil Gaiman que são dirigidos para o público infantil.

Pedro y el Lobo - Miguelanxo Prado

Fragmentos de la Enciclopedia Délfica e Stratos, por outro lado, usam a ficção científica de uma forma satírica. Conforme o próprio Miguelanxo Prado, em uma entrevista publicada na revista Cairo,

“A Enciclopedia Délfica é uma tentativa de fabular o futuro, e de fazê-lo de uma forma pseudo-histórica. Ao longo de 12 capítulos e um espaço de tempo muito longo, tentei estabelecer um fio condutor que tivesse uma lógica dentro dos acontecimentos que se desenrolavam na narrativa. Eu também queria que todos os capítulos tivessem uma leitura negativa. Trata-se de uma série de erros humanos, apesar dos quais podemos constatar que existe uma espécie de evolução histórica que está acima daquela capacidade inata do ser humano de errar. Cada capítulo é um pouco da história das nossas falhas, o que que não impede que o próximo nos mostre um ambiente que evoluiu e, em alguns casos, melhorou”,

Por outro lado, o escritor galego X. L. Méndez Ferrín descreveu Stratos, no prólogo de sua primeira publicação em álbum, assim:

“Stratos supõe uma coisa muito séria: uma reflexão poética sobre a degeneração do sistema capitalista, sobre os diversos absurdos a que a acumulação conduz. Essas reduções (antecipatórias) do que temos hoje aos extremos da utopia, digo da utopia possível no sentido de Esnst Bloch, são assustadoras, porque aquilo que é aparentemente irreal explica e dá sentido ao realmente presente”.

Esse, no entanto, não é o caso de Tangências e Traço de Giz.

Traço de Giz até pode ser considerada uma história de viagem no tempo. Mas essa viagem no tempo é fantástica, e não científica. Tangências, por outro lado, é um álbum que reúne histórias curtas com uma afinidade temática completamente estranha aos gêneros pulp: são oito contos sobre pessoas que se encontram, de forma tangencial, em um romance breve e desprovido de significado. 

Uma das histórias de Tangências, Privilégios Dourados, flerta com a sátira social. Ela nos mostra um romance entre um rapaz comum e uma aristocrata moderna. O romance parece uma versão de Romeu e Julieta: um casal separado pela hierarquia social. A sátira está no fato de que é a mulher que rejeita o romance por acreditar na validade da divisão de classe que separa os protagonistas da história — o que faz com que esse se suicide mais por vingança do que por amor.

Essa história, no entanto, é a exceção. Tangências e Traço de Giz não são histórias satíricas. Elas até propõem reflexões sobre a vida moderna, mas não o fazem de forma agressiva. A preocupação é menos com a vida social, e mais com a vida íntima.

A grande diferença entre Miguelanxo Prado e os demais quadrinistas do Boom del Cómic Adulto é estética. As suas hqs podem ter sido publicados na Cairo e na Comix, mas dificilmente podem ser consideradas como um exemplo de línea clara ou de línea chunga.

É possível atribuir essa diferença a dois motivos.

O primeiro motivo é que essa discussão tinha por pressuposto um dilema que era completamente estranho a Miguelanxo Prado. A controvérsia entre a “línea clara” e a “línea chunga” se estabeleceu como uma reflexão sobre o legado dos quadrinhos infanto-juvenis. As alternativas propostas consistiam em desafiá-lo ou adaptá-lo para interesses adultos.

Isso não está entre as preocupações de Miguelanxo Prado por dois motivos: ele não era um leitor de quadrinhos em sua infância e adolescência. Ele foi apresentado ao meio por um colega de faculdade, já aos vinte anos, através de quadrinistas como Moebius e Enki Bilal. Para ele, não existia um legado de quadrinhos infanto-juvenis a ser enfrentado. Para Prado, quadrinhos adultos eram um pressuposto.

Prado frequentemente cita Esteban Maroto e Moebius como influências do início de sua carreira. Ele abandonou qualquer parentesco artístico com Maroto, no entanto, ao deixar os fanzines galegos, onde desenhava histórias de fantasia heroica. 

A Petadura do Orballo - Miguelangel Prado

De Moebius, Miguelanxo Prado trouxe, em primeiro lugar, o tom nonsense da proposta de histórias como aquelas que formam Fragmentos de la Enciclopedia Délfica, que são contadas desde o ponto de vista de uma civilização futurista controlada por golfinhos [delfines, em espanhol].

Em segundo, mais do que o estilo, Miguelanxo Prado aprendeu com Moebius a confiar na qualidade da impressão, que lhe permitiria reproduzir na página de uma revista um traço no qual coubessem as suas verdadeiras referências. O quadrinista, que fora estudante de artes e de arquitetura, fora menos influenciado por desenhistas e ilustradores, e mais por pintores. Mais especificamente, George Grosz, nas caricaturas de Enciclopedia Delfica e Stratos, e Egon Schiele, no caso de Traço de Giz e, especialmente, Tangências.

Fragmentos de la enciclopedia délfica - Miguelanxo Prado
Tangencias - Miguelanxo Prado

Os encontros tangenciais que Tangências nos mostra tem caráter quase que exclusivamente sexual. A relação é mostrada por Miguelanxo Prado de forma explícita, de forma que não é sensual, nem romanceada. 

Essa é a  primeira característica que a hq tem em comum com a obra de Schiele. O artista austríaco se tornou conhecido pelas suas pinturas de pessoas nuas. Não é, no entanto, uma nudez erótica. É uma nudez vulgar, protagonizada por corpos perfeitamente ordinários, a começar pelo do próprio Schiele, que pintou diversos autorretratos nus. Ao longo de sua carreira, essa vulgaridade foi frequentemente confundida com pornografia, o que trouxe diversos problemas para o pintor na primeira fase de sua carreira — não ajudava em nada o fato de que ele usava modelos menores de idade. 

Os corpos que Miguelanxo Prado desenha são parecidos com os da segunda fase da carreira de Schiele [que foi do seu retorno da Primeira Guerra Mundial, em 1917, até a sua morte precoce, vítima da gripe espanhola, em 1918]. Não são os corpos magros, quase cadavéricos, dos anos iniciais de sua carreira [1907 a 1915], mas ainda não é uma nudez idealizada — apenas mais… flácida.

Mulher nua deitada de bruços - Egon Shiele
Auf dem Bauch liegender weiblicher Akt, ou Mulher nua deitada de bruços, de 1917

A outra característica de Schiele que Miguelanxo Prado parece emular é relativa às próprias características do desenho. Como o pintor, Prado desenha as suas figuras com linhas contínuas e moduladas, e se esforça para que elas tenham textura. Visualmente, as suas páginas parecem ásperas.

Tangências - Miguelanxo Prado

Os recursos que o quadrinista utiliza para produzir esse efeito, no entanto, não são os mesmos. Tangências e Traço de Giz são desenhados utilizando lápis de cor e tinta acrílica sobre papel Canson Mi-Teintes. É uma folha espessa, fosca, colorida e texturizada [alveolar de um lado, grão fino do outro]. A combinação entre tinta acrílica branca e papel texturizado e escuro para desenhar os corpos nus sugere uma coloração e uma densidade corporal bastante semelhante à dos quadros de Schiele.

O segundo motivo pelo qual Miguelanxo Prado não participa daquela discussão é que, na verdade, ele está inserido em outra tradição. É uma tradição que permite que ele articule o seu conhecimento sobre belas artes e a linguagem de quadrinhos e que também é identificada em termos geográficos.

Prado é um quadrinista do Boom del Cómic Adulto porque esse forneceu os meios necessários para ele seguisse a tradição da BDG, a Banda Deseñada Galega.

3.
Miguelanxo Prado,
quadrinista galego

Existe um argumento a se fazer no sentido de que a tradição dos quadrinhos galegos é anterior à dos quadrinhos espanhóis.

Como em diversos outros países, na Espanha se defende a existência de um antecedente remoto nacional que seria a origem da linguagem das hqs. No caso espanhol, esse antecedente seria As Cantigas de Santa María, do século XIII, cuja autoria é atribuída ao rei Afonso X. Afonso X, diga-se de passagem, poderia ser perfeitamente considerado como Rei Nerd: fazia gibi, ordenou a produção do Libro de los juegos [uma compilação de regras e estratégias de jogos de mesa e de dados] e era conhecido como “el sabio”. 

Libro de los juegos - Afonso X
Quis plus vis est, Rem aut Hulk?

Afonso X não era galego. Mas As Cantigas de Santa María foram escritas em galego-português, idioma medieval do leste da península ibérica que, como você deve ser capaz de imaginar, deu origem ao galego e ao português. O galego-português medieval era utilizado como um idioma culto, especialmente para fins líricos, pela sua sonoridade.

Também existem uma série de quadrinistas de renome originários da Galícia. Suso Peña, que desenhava cenários para Esteban Maroto em 5 por Infinito, é da mesma geração dos quadrinistas da Seleciones Ilustradas. O ilustrador Victor Moscoso, um dos colaboradores da Zap Comix e capista de discos do Jerry Garcia, nasceu em Culleredo, a cidade em que está localizada o aeroporto de Coruña. José Luis García-López se mudou com a sua família para Buenos Aires ainda na sua infância, mas é natural de Pontevedra, uma das maiores cidades da Galícia. Das Pastoras é de Riveira, outra pequena cidade próxima de Coruña. David Rubín é de Ourense, a terceira maior cidade da Galícia.

Esses quadrinistas, no entanto, não fazem propriamente quadrinhos galegos. Eles participam de outras tradições das hqs: a da Seleciones Ilustradas e do Grupo de la Floresta, no caso de Peña; a underground psicodélica sessentista, no caso de Moscoso; a dos super-heróis, no caso de García-López. Das Pastoras mistura Richard Corben e Moebius. David Rubín, um pouco de tudo: o seu traço lembra o de quadrinistas ecléticos como Paul Pope ou Rafael Grampá.

A banda deseñada galega, por sua vez, é mais do que uma denominação de origem. Ela é um estilo próprio, que tem a sua origem no início dos anos 70, principalmente no trabalho de dois artistas, Reimundo Patiño e Xaquín Marín. 

A importância de Patiño e Marín para os quadrinhos galegos está materializada na hq 2 Viaxes, considerada pela crítica como o primeiro álbum de BDG. A hq, de 128 páginas em preto e branco, reúne duas histórias, cada uma de autoria de um desses quadrinistas. A primeira, de Marín, é intitulada O longo camiño de volta dende as estrelas; a segunda, de Patiño, A saga de Torna no Tempo. 

Ainda que cada uma das histórias seja obra de um dos autores, as duas tem pelo menos três elementos comuns que se tornariam características definidoras da BDG.

Conforme diz Xulio Carballo Dopico, autor de uma fantástica tese de doutorado sobre quadrinhos galegos [Para unha historia da Banda Deseñada Galega: a narración a través da linguaxe gráfico-textual], isso não é de se estranhar:

[As histórias] “possuem um nexo narrativo muito semelhante, mas isso não é estranho, uma vez que os dois autores eram muito amigos e dividiam o material de referência que passava pelas suas mãos: filmes, quadrinhos, literatura, etc, motivo pelo qual as suas influências e visões artísticas dividiam um certo espectro comum, independentemente do seu estilo pessoal. Nesse sentido, pode-se destacar o gosto pelos livros de ficção científica que era tanto de Patiño quanto de Marín: Philip K. Dick, Aldous Huxley, George Orwell ou, mais próximo do terror, Lovecraft”. 

Assim, as duas hqs nos contam histórias de ficção científica pessimista, ambientadas em uma Galícia distópica. Como diz Carballo:

“Tanto Xaquín Marín como Reimundo Patiño desenvolvem nas suas narrações a projeção de galegos que se sentem estrangeiros no próprio país, observadores da perda de identidade, de valores e de espírito de superação dos problemas que afundam aos poucos a Galícia, uma terra que após séculos de ‘centralismo deformante’, nas palavras de Antón Patiño, não é reconhecida pelos seus próprios habitantes.

[…] Através das convenções do gênero científico, a emigração, o capitalismo alienante, o complexo autodestrutivo e regionalista ou a industrialização sem freios aparecem refletidos sob o manto das viagens intergaláticas e as lutas entre seres de diferentes tempos e lugares, mas que na verdade só representam uma gente e uma cultura, a galega”.

Visualmente, as páginas de O longo camiño de volta dende as estrelas e A saga de Torna no Tempo mais parecem telas. Não existe uma grade de quadrinhos regular, e cada página foi claramente pensada como uma unidade que se desdobra, de forma orgânica, em diferentes quadrinhos:

2 Viaxes
2 Viaxes

Isso faz com que as páginas pareçam pinturas. Especificamente, pinturas vanguardistas, sem parentesco aparente com outras histórias em quadrinhos. De novo conforme Carballo:

“Os dois apresentam uma estética vanguardista, e mesmo underground, como costumam ser definidos, e totalmente autossuficientes, ao não poderem ser enquadrados de forma clara sob a influência de nenhum outro autor de quadrinhos. Ainda que existam alguns traços e temas que os aproximem de outras obras e/ou autores, o seu estilo é totalmente inovador. Xaquín Marín, nesse sentido, sempre afirmou não seguir ninguém e se proclamou autodidata”. 

2 Viaxes, portanto, não foi influenciada diretamente por outros quadrinhos, principalmente espanhóis. As suas referências são da literatura de ficção científica estrangeira, que unia os interesses de Marín e Patiño, e do mundo da arte.

Mais do que nos quadrinhos espanhóis que lhe eram contemporâneos, a origem da BDG está no Rexurdimento, movimento artístico galego do século XIX que procurava revitalizar a cultura galega depois dos “Séculos Escuros”, em que o uso do galego foi preterido em favor do castelhano e do português.

Assim, a denúncia que Marín e Patiño fazem da exploração da Galícia pelo governo espanhol lembra uma versão em ficção científica pulp do poema Castellanos de Castilla, formado por Rosalía de Castro a partir de um canto popular. É um dos poemas que forma a obra Cantares Gallegos, de 1863, obra inaugural do Rexurdimento.

En verdade non hai, Castela,
nada coma ti tan feo,
que aínda mellor que Castela
valera dicir inferno.

¿Por que aló fuches, meu ben?
¡Nunca tal houberas feito!
¡Trocar campiños floridos
por tristes campos sen rego!

¡Trocar tan claras fontiñas,
ríos tan murmuradores
por seco polbo que nunca
mollan as bágoas do ceo!

Mais, ¡ai!, de onda min te fuches
sen dó do meu sentimento,
e aló a vida che quitaron ,
aló a mortiña che deron.

Morriches, meu queridiño,
e para min non hai consolo,
que onde antes te vía, agora,
xa solo unta tomba vexo.

O uso da linguagem dos quadrinhos, nesse contexto, é consequência da necessidade de produzir um estranhamento que faça o leitor perceber a anormalidade das condições da Galícia real. Diz Carballo [citando, ao fim, Miguel Angel Muro Munilla e o seu livro Análisis e interpretación del cómic]:

“É por isso que os dois autores se vêm obrigados a aplicar um espectro invertido na hora de difundir esse sentimento: através de uma Galícia com o tempo e o espaço deformados, se projeta uns acontecimentos que escapam à realidade cotidiana para que seja o próprio leitor quem se depare com essa verdadeira realidade que não é capaz de ver no seu dia a dia, porque, como se um quadro fosse, a realidade as vezes tem que ser vista com um certo prisma de distanciamento para ser compreendida na sua totalidade. Assim, esse “estranhamento” ao que se submete o leitor seria duplo: por um lado, teríamos o estranhamento produzido por um tempo e um lugar distópico e, por outro, o do próprio meio, os quadrinhos, considerando que ‘a utilização do signo icônico já supõem um estranhamento em relação à comunicação usual’.”

Como última característica, finalmente, está aquele caráter reivindicativo da cultura galega que Patiño e Marín trouxeram do Rexurdimiento. Podemos dizer que 2 Viaxes apresenta a cultura galega através da denúncia das mazelas político-sociais da região. Nas duas histórias da hq, região é uma Arcádia que deve ser restaurada pelo regresso de um de seus filhos, em um empreendimento fadado ao fracasso.

Esse fatalismo é o sentimento extremamente galego: a palavra mais conhecida do idioma, morriña, descreve uma nostalgia triste pela terra natal. O fenômeno social mais conhecido da Galícia é a migração: a Galícia é um lugar que se abandona em busca de uma vida melhor. Sem ir mais longe, todos os quadrinistas citados até aqui emigraram da Galícia; até mesmo Martín e Patiño moravam em Madri. O tom fatalista disso é evidente em Castellanos de Castilla, o lamento de uma mulher que perdeu o amado enquanto esse trabalhava nos desertos da Espanha

O tom fantástico das hqs de Patiño e Marín também é tipicamente galego. A Galícia é uma região com forte relação com o mar e os seus mistérios. Inclui diversas ilhas e arquipélagos, e tem a maior longitude de costa da Espanha [quase o triplo da segunda região com mais área costeira, a Andaluzia].  A sua origem lendária atribui a colonização da região aos celtas, povo ao qual se atribuem características mágicas.

Nenhuma dessas características é resultado do acaso. 2 Viaxes pode ser o primeiro álbum de BDG, mas ele é a culminação dos esforços de Patiño. 

Patiño era um artista plástico em atividade desde a década de 50 e que flertou com diversos “ismos” vanguardistas. Sempre almejou encontrar uma linguagem contemporânea e popular que lhe possibilitasse produzir arte para as massas. O seu objetivo era mostrar para o povo galego a sua opressão, atribuída ao governo central espanhol, e incitá-lo a revoltar-se.

Isso, naturalmente, tem um contexto. Durante o franquismo, as identidades nacionais das diferentes regiões da Espanha foram reprimidas. O lema do governo, não por acaso, era “España, Una, Grande y Libre”. O uso dos idiomas regionais [e o galego é um dos três principais idiomas do país] foi desestimulado entre a população e banido das escolas e dos meios oficiais. 

Patiño encontrou, nos quadrinhos, uma linguagem que considerava ter o potencial de atingir os seus objetivos. O problema, no entanto, era que não tinha acesso aos meios necessários para publicá-los, o que somente conseguiria alcançar por ocasião do lançamento de 2 Viaxes.

O interesse de Patiño pelos quadrinhos, portanto, antecede 2 Viaxes. A sua primeira manifestação concreta é O home que falaba vegliota, de 1972. Trata-se de um conjunto de 12 quadros, de 1 metro x 1 metro, que contavam uma história.

Essa obra já reúne as principais características de sua história em 2 Viaxes. Ela usa a linguagem das hqs, mas as suas páginas funcionam como uma imagem que incorpora os quadrinhos de forma orgânica e trata da cultura da galega em chave de reivindicação política. O assunto da hq é a perseguição ao idioma galego, que é comparado com o vegliota, dialeto dalmático que foi extinto no século passado.

Patiño morreu de forma precoce em 1985, aos 49 anos. Deixou um roteiro que seria adaptado para os quadrinhos por Marín em 1988, O home que falaba arameo, publicado em 1988.

Marín foi o principal discípulo de Patiño, e quem carregou a sua bandeira por mais tempo. A sua última hq é de 2010. Mas não foi o único artista inspirado por O home que falaba vegliota. Outros artistas que deram uma contribuição importante para a formação da BDG foram Xosé Díaz, Rosendo Díaz Roxo, Luís Esperante e Xesús Chichi Campo, que formaram o Grupo do Castro. 2 Viaxes pode ser formada pelas duas primeiras hqs de várias páginas da BDG. Mas o Grupo de Castro publicou A cova das choias, primeira revista de quadrinhos galegos, formada por diversas histórias curtas de uma página. 

A Cova das Choias

São, de novo, histórias que seguem o caminho aberto por Patiño e que levaria a 2 Viaxes. Devem mais às vanguardas artísticas do que aos quadrinhos, e tem por assunto a Galícia e a denúncia política. É possível perceber na inspiração Arte Naïf dos quadrinistas da revista o interesse em resgatar a arte popular galega, algo que também estava presente em 2 Viaxes.

Miguelanxo Prado começou a sua participação profissional no Boom del Cómic Adulto com uma história curta publicada na revista Creepy, assinada com o nome Miguel Ángel Prado, a grafia espanhola de seu nome. Em seguida se mudaria para Barcelona, com o objetivo de se aproximar das grandes editoras de quadrinhos daquele momento.

Mas o contexto no qual ele surgiu para o mundo dos quadrinhos era o da BDG. As suas primeiras histórias foram publicadas no fanzine Xofre. Se o nome deixasse alguma dúvida, a capa tratava de dissipá-las: era uma revista de “historieta galega”, quadrinhos galegos. 

Xofre

Ao migrar para Barcelona em busca de uma oportunidade nos quadrinhos espanhóis, Miguelanxo Prado levou a Galícia na sua bagagem. Passou a utilizá-las especialmente depois de retomar o uso do seu nome na grafia galega, um ato que não é desprovido de simbolismo, conforme o próprio reconhece:

“Recuperar a forma galega do meu nome não deixava de ser um simples símbolo. Simplesmente recuperar uma identidade, como ao restaurar a casa que você herdou de seus avós em uma cidadezinha perdida. Esse momento supôs o início de uma implicação muito maior da minha parte em todo tipo de questões culturais e políticas”.

Ainda nos anos 80, Miguelanxo Prado retornou para a Galícia. Mudou-se para uma pequena cidade rural nas proximidades de Corunha, onde mora até hoje. Desde 1998, dirige o Viñetas desde o Atlántico, principal festival de quadrinhos da Galícia e um dos principais da Espanha. 

Pôster de Viñetas desde o Atlántico

Tangências e Traço de Giz são duas hqs que podem ser consideradas a culminação desse processo de redescoberta e reivindicação das próprias origens galegas. Um processo que lhe aproxima novamente da BDG, com quem aquelas hqs mantém diversas características em comum.

A primeira delas é a influência de artistas que são externos ao mundo dos quadrinhos. Conforme já foi comentado, mais do que outros quadrinistas, as figuras desenhadas por Miguelanxo Prado são influenciados por Egon Schiele — uma referência oriunda do mundo das belas artes.

Schiele, no entanto, não é o único artista plástico que aparece nas páginas daquelas hqs. Em primeiro lugar, também é possível perceber a influência de Henri de Toulouse-Lautrec na colorização. No caso de Tangências, isso é perceptível no uso do amarelo:

Tangências - Miguelanxo Prado
Divan Japonais - Henri de Toulouse-Lautrec
Divan Japonais, de 1894

Em Traço de Giz, por outro lado, a influência de Toulouse-Lautrec está no uso do verde esmeralda:

Traço de Giz - Miguelanxo Prado
Au Moulin-Rouge - Toulouse-Lautrec
Au Moulin-Rouge, 1892
Detalhe de Au Moulin-Rouge - Toulouse-Lautrec

Essa última é particularmente interessante. O verde esmeralda, também conhecido como verde-Paris, é um pigmento inorgânico extremamente tóxico: depois de sua descoberta, no início do século XIX, passou a ser utilizado como inseticida. Existia, portanto, uma fascinação mórbida com o seu uso.

Por outro lado, o verde esmeralda também é a cor do absinto, bebida supostamente alucinógena e amplamente consumida pela boêmia parisiense do início do século XX [inclusive pelo próprio Toulouse-Lautrec]. É exatamente essa atmosfera fantasmagórica, irreal e ameaçadora que Miguelanxo Prado pretende evocar ao utilizar o verde-Paris para colorir a ilha de Traço de Giz.

Monsieur Boileau au café - Toulouse-Lautrec
Repare no copo de absinto
[Monsieur Boileau au café, 1893]

Mas Miguelanxo Prado, como Marín e Patiño, não traz influências apenas das artes visuais. Em Traço de Giz, são especialmente perceptíveis as influências vindas da literatura, com citações a Mulher do Porto Pim, do escritor ítalo-português Antônio Tabucchi, e La invención de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares. São duas histórias de mistério marítimo.

A influência do livro de Bioy Casares é especialmente notável. Como Traço de Giz, La invención de Morel é a história de alguém que chega em uma ilha perdida e misteriosa, onde se apaixona por uma mulher aparentemente distante e hostil. 

A diferença é que o mistério da ilha de La invención Morel é paranoico e trágico: o seu protagonista está cego pelo mistério da ilha. A fantasia, por outro lado, está mais próxima do que você esperaria de uma ficção científica. Nas palavras de Jorge Luis Borges na introdução do livro, a sua proposta é “fantástica mas não sobrenatural”.

Existe mistério, paranoia, tragédia e fantasia em Traço de Giz. Mas a ilha de Miguelanxo Prado também é nostálgica, melancólica, arcaica, e fatalista. Nela, o protagonista da história poderia ser feliz se ao menos fosse capaz de reconhecer as suas circunstâncias. A diferença entre a ilha de Traço de Giz e a ilha de La invención de Morel, em outras palavras, é que a primeira é ainda mais galega.

É o mesmo fatalismo que está presente nas hqs de Marín e Patiño. Em Tangências e Traço de Giz, no entanto, ele não é apresentado como reivindicação política como poderia ser o caso, conforme já comentado, de Stratos ou Quotidianía Delirante. Ele se apresenta de forma interior e contemplativa.

Faz sentido que isso seja assim, diante do contexto que as histórias foram originalmente publicadas. Marín e Patiño publicaram as suas hqs, como já comentado, durante a repressão do fraquismo às nacionalidades que formam a Espanha. Nesse contexto, produzir gibis sobre a Galícia, escritos em galego, era quase que necessariamente uma forma de resistência política.

Esse não era mais o caso no final dos anos 80 e no início dos anos 90. Ainda que a Constituição Espanhola de 1978 estabeleça a “la indisoluble unidad de la Nación española”, também “garantiza el derecho a la autonomía de las nacionalidades y regiones”. Estabelece diversos mecanismos para assegurar essa autonomia, especialmente em relação à Galícia, ao País Vasco e a Catalunha. O Estatuto da Autonomia da Galícia, de 1981, estabelece o galego como idioma oficial da região juntamente com o espanhol. Hoje em dia, O home que falaba vegliota está exposto em Madri, no Museo Reina Sofia. 

Isso também está Tangências, ainda que não de forma tão facilmente perceptível. Os personagens dessa hq habitam uma versão moderna, não-fantástica e ordinária desse mesmo universo simbólico.

A história que melhor exemplifica isso é exatamente aquela que dá título para a hq, Tangências. Nela, dois ex-namorados se encontram depois de sacrificar o seu amor “para saciar o desejo das nossas irrenunciáveis ambições”: ele migrou para se tornar um arquiteto famoso; ela, uma atriz. Nenhum dos dois planos foi bem sucedido: ele se tornou bancário, ela bibliotecária. No fim, os dois agendam o próximo encontro como quem marca uma consulta no dentista. É uma história curta e perfeita no seu propósito de encapsular em poucas páginas a ideia que Miguelanxo Prado desenvolveria através de outros recursos em Traço de Giz: o mar, a nostalgia melancólica, a sensação de inadequação temporal e o fatalismo. 

Tangências - Miguelanxo Prado

No formato original de publicação, Tangências e Traço de Giz são típicos gibis do Boom del Cómic Adulto: foram serializadas em uma das principais revistas do período, editadas por uma de suas grandes editoras.

No conteúdo, no entanto, as duas hqs são uma versão atualizada e despolitizada da BDG de Patiño e Marín: elas evocam, através de influências externas aos quadrinhos, uma visão de mundo tipicamente galega. São BDG, publicadas no formato que permitiu que os quadrinhos espanhóis adultos triunfassem, em um momento de conciliação do país.

Essa conclusão, por sua vez, nos leva a um segundo mistério. As duas hqs foram lançadas anteriormente no Brasil pela editora Meribérica [em edições, inclusive, que são as que eu estou utilizando para escrever esse ensaio]. Isso não é por acaso: Tangências e, principalmente, Traço de Giz, foram o início do sucesso internacional de Miguelanxo Prado.

De fato, Traço de Giz foi publicada de forma simultânea na Espanha e na França, onde foi serializada na clássica revista (À suivre), uma das principais cabeceiras de quadrinhos adultos de todos os tempos. Na França, o seu sucesso crítico foi imediato. A hq, publicada em formato álbum pela Casterman em agosto de 1993, ganhou o prêmio Alph-Art do festival de Angoulême de melhor álbum estrangeiro em janeiro de 1994. Ainda em 1994, ganharia o Prix des libraires de bande dessinée.

O hiato na carreira de quadrinista de Miguelanxo Prado que se seguiu à republicação das duas histórias em formato álbum na Espanha tem a sua explicação nesse sucesso internacional. Prado deixou os quadrinhos temporariamente para se dedicar à animação americana. Ele se tornou o principal desenhista da série Men In Black, produzida pelo próprio Steven Spielberg.

MIB - Miguelanxo Prado

Como é possível que Miguelanxo Prado, com as suas geograficamente idiossincráticas, tenha se tornado um sucesso internacional? A resposta está em outra influência aparente do quadrinista nestes gibis, igualmente oriunda do mundo das belas artes: o pintor americano Edward Hopper.

4.
Miguelanxo Prado,
sucesso internacional

Existem diversos elementos comuns entre Tangências, Traço de Giz e a obra de Hopper.

O mais perceptível é a ambientação. Tangências é formada por oito histórias curtas urbanas. É verdade que várias delas estão ambientadas nas proximidades de uma cidade, e não no seu centro. Mas uma cidade é muito mais do que o lugar onde estão os seus principais prédios: ela é um conjunto de relações sociais, uma forma de organização hierárquica, um determinado conjunto de profissões, etc. É através disso tudo que Tangências nos mostra a vida urbana moderna.

Traço de Giz, por outro lado, não faz referência a nada disso. A sua ambientação é fantástica, uma ilha desconhecida, perdida no tempo e no espaço, pela qual passam pessoas que não estão organizadas em uma hierarquia formal. Nesse sentido, a hq pode até mesmo ser considerada uma história de fronteira. Ela está ambientada em um lugar distante do centro onde as regras, inclusive aquelas que definem a própria realidade material [como o tempo e o espaço], se fazem presentes de uma forma rarefeita.

Essa mesma diferença de ambientação pode ser encontrada na obra de Hopper. O pintor americano talvez seja mais conhecido pelas suas obras urbanas, como Nighthawks, Automat, ou Chop Suey…

Chop Suey - Edward Hopper
Chop Suey, de 1929

…mas ele também nutria um evidente fascínio pelo litoral da Nova Inglaterra. Especialmente por Cape Cod, onde ele manteve uma residência de verão entre 1930 e 1967, e para onde se mudaria ao final de sua carreira. Ele admirava a cidade pelo seu isolamento e pela sua luminosidade, similar ao de uma ilha. Nas suas palavras:

“Escolhi morar aqui porque o verão é mais longo. Gosto muito do Maine, mas fica frio no inverno. Existe alguma coisa suave em Cape Cod que não me agrada muito. Mas existe uma luz muito bonita aqui, muito luminosa, talvez porque esteja tão longe para dentro do mar. É quase uma ilha”.

Existe até mesmo uma proximidade geográfica entre Cape Cod e a Galícia, região que tem na ilha de Traço de Giz uma versão fantástica. As duas regiões estão praticamente no mesmo paralelo e estão separadas “apenas” pelo Atlântico.

Cape Cod - Galícia

Mas essa semelhança é a mais superficial entre aquelas que unem Tangências, Traço de Giz e a obra de Hopper. Pode até mesmo ser uma coincidência. Hopper também pintava com frequência paisagens rurais. Quase qualquer obra de ficção, portanto, tem por cenário um ambiente como aqueles que ele pintou.

Mais interessante, portanto, são as outras conexões que se pode estabelecer entre as duas hqs e a obra do pintor. Como eu sugeri no capítulo anterior, existe um ponto em comum entre Traço de Giz e Tangências: as duas hqs são melancólicas e nostálgicas. Para produzir esse efeito, Miguelanxo Prado nos mostra a atomização do indivíduo na sociedade moderna como a perda de um paraíso que não pode ser retomado, principalmente porque os protagonistas da história não estão conscientes do que foi perdido. É por isso que os relacionamentos que Tangências nos mostra são… tangenciais: as pessoas envolvidas não se conhecem e ignoram a vida interior de seu par.

A obra de Hopper transmite uma sensação parecida, ainda que de forma muito mais direta. Os seus quadros mais conhecidos também transmitem essa sensação de alienação e isolamento típica da vida moderna.

A já citada Automat, de 1927, é um brilhante exemplo disso. Nessa pintura, uma jovem mulher toma uma xícara de café, de forma introspectiva, em uma lanchonete automat, em que todo o serviço é fornecido de forma automatizada por máquinas.

Automat - Edward Hopper

Outro excelente exemplo de isolamento urbano nas obras de Hopper é Office in a Small City, de 1953. A pintura também é protagonizada por uma figura solitária. Dessa vez, no entanto, é a de um homem, com o olhar perdido no horizonte diante do que parece ser um emprego insípido, em um belo retrato da solitária vida em cubículos. 

Office in a Small City - Edward Hopper

Mas isso não acontece apenas nas pinturas protagonizadas por uma figura solitária. Eu poderia citar, aqui, Nighthawks, uma pintura que é famosa precisamente por isso. Mas Hotel Lobby, de 1943, é um exemplo mais claro de “pintura de incomunicação”.

Hotel Lobby - Edward Hopper

Existe algo de alienante no lobby de um hotel: é o lugar onde pessoas que estão longe de casa esperam ser alocadas em uma fração de mundo impessoal e intercambiável. A alienação, como em Traço de Giz, é resultado do deslocamento para um lugar desconhecido onde o tempo não passa.

A pintura, no entanto, vai além. Ela é protagonizada por uma moça absorvida pela leitura de um livro e por um casal cujo olhar não se encontra. No desenho preliminar da pintura, é perceptível que Hopper decidiu enfatizar a distração do marido. A alienação, como em Tangências, nos é mostrada através do desencontro de um casal.

Hotel Lobby, estudo preliminar - Edward Hopper

Automat me permite apresentar outra relação entre Edward Hopper e Miguelanxo Prado. Ela é uma pintura que costuma ser utilizada para explicar a influência dos artistas franceses do início do século XX na obra de Hopper. O pintor americano se mudou para a França em outubro de 1906, aos 24 anos. Foi lá que ele se formou como artista: temas e técnicas que ele conheceu nessa época reapareceriam ao longo de toda a sua obra. Automat, nesse sentido, parece uma versão americana de L’Absinthe, de Edgar Degas.

L'Absinthe - Edgar Degas
L’Absinthe, 1873

Degas, por outro lado, não era apenas conterrâneo e contemporâneo a Toulouse-Lautrec: a obra dos dois conversam entre si. Se você quiser mais detalhes, recomendo esta bela palestra, disponível no YouTube. Por aqui, digo apenas que os dois são pintores da Paris do absinto — como a própria pintura L’Absinthe evidencia. 

Finalmente, um quarto aspecto comum a Hopper, Tangências e Traço de Giz é a sensação de que a cena que nos é exibida é apenas o fragmento de uma história maior. 

É comum ler que que o próprio Hopper costumava comparar os seus quadros com um still de cinema. Novamente olhando com cuidado para Automat, se pode perceber o motivo. Além da xícara de café, existe um outro pequeno prato na mesa, vazio. Seria um lanche já consumido? A moça que protagoniza o quadro, por outro lado, está vestida como se estivesse preparada para uma ocasião social. Ela está esperando alguém? Finalmente, ela tirou apenas uma de suas luvas. Ela não acreditava que permaneceria tanto tempo no interior do automat? Existe uma história na sua espera, que inicia e termina de uma forma que o público não conhece.

Outro exemplo brilhante disso na obra de Hopper é a pintura Hotel Room, de 1931.  Conforme explica Gail Levin no livro Edward Hopper: The Art and the Artist, se trata de “um dos melhores trabalhos de Hopper” e “um drama conciso e intenso à noite”. Ele segue:

“A mulher, alta, esguia e pensativa, está sentada em uma cama, de cabeça baixa, meditando sobre a carta que acabou de ler. O que quer que seja que ela descobriu na carta a confunde e perturba, como Hopper transmite pelas roupas espalhadas pelo quarto. Combinando um assunto comovente com um arranjo formal poderoso, Hopper produziu uma composição de força e refinamento, puro o suficiente para se aproximar de uma sensibilidade quase abstrata, mas com camadas de significado poético para o observador”.

De novo, isso também é verdade nas pinturas com mais de um protagonista. Um bom exemplo é Soir Bleu, de 1914, que parece o momento que antecede o ápice de um filme especialmente instigante. Trata-se, ainda, de outra pintura que pode ser relacionada à pintura francesa do início do século XX, por ter por figura central uma prostituta.

Hopper, Edward

Isso é facilmente perceptível na maioria das histórias de Tangências. Elas não são uma história com início, meio ou fim, mas fragmentos de uma história maior que é sugerida.

Assim, Tangências, a história que dá título para o álbum, não tem início ou fim. É o mesmo caso de Café ao Meio da Tarde, A partir de Agora e Divindades Ociosas. Cintilações no Cristal, a primeira história, e Longo Crepúsculo de Outubro, a quarta, são as que estão mais perto de ter um fim. As demais, Privilégios Dourados e Balada de Saxo e Neões, nos apresentam o fim de um relacionamento — mas, no seu último quadrinho, enfatizam que aquele não é o fim da história.

No final de Traço de Giz, por outro lado, descobrimos que a hq é apenas um fragmento de uma história de desencontro potencialmente infinita. Ao final da hq, Miguelanxo Prado nos mostra que Raul e Ana estão aparentemente condenados a procurar-se por toda a eternidade, e a história que nos é apresentada é apenas um fragmento dessa Odisséia de diferenças cronológicas. É o eterno momento de pinturas como Automat e Hotel Room transformado em hq.

Não são poucas, como se vê, as semelhanças entre as pinturas de Hopper e as duas hqs de Prado. Essas, no entanto, são apenas as semelhanças comuns às obras do pintor e às duas hqs. É possível enxergar outras, específica a cada um dos dois álbuns. 

4.1 Hopper e Tangências

Existem mais detalhes que merecem ser observados em Automat. Vamos nos concentrar agora naqueles relativos ao ponto do de vista do espectador, a forma pela qual ele é manipulado por Hopper e o que isso nos sugere.

Percebam como toda a composição dirige o seu olhar para a moça que protagoniza a pintura. A iluminação refletida na janela converge na sua direção. Ela e a sua mesa se destacam do fundo do quadro. Ao seu lado, existe um vaso com frutas coloridas.  

Ao mesmo tempo, no entanto, ela não está no centro do quadro, mas ligeiramente à direita. Isso, por um lado, assegura a harmonia da composição, em observância à Regra dos Terços. Mas também evita que o espectador a perceba como uma figura objetivamente exposta.

Existem outros recursos que nos sugerem a subjetividade do ponto de vista. A moça e a sua mesa são apresentados de forma parcial. Você não as enxerga em sua totalidade, como corresponderia a uma exposição objetiva. Não existem parâmetros aparentes para identificar a linha do horizonte, mas o olhar do espectador parece formar um ângulo reto em relação à figura da moça. Ou seja, os dois estão na mesma altura — sentados.

Através desses recursos, o que Hopper faz é incluir-nos na pintura. Você não está do lado de fora, olhando para uma pintura ou para a tela do seu computador. Você está do lado de dentro, sentado em uma mesa da lanchonete, espiando a moça sem encará-la. Você está intrigado com o seu comportamento, talvez até mesmo pelas suas pernas. Elas foram pintadas por Hopper com um tom excepcionalmente claro, incoerente com a iluminação do ambiente, porque a sua importância dentro da hierarquia perceptiva da pintura é a mesma que foi atribuída pelo espectador furtivo.

Ou seja, Hopper faz do espectador um voyeur, o espião dissimulado de um momento íntimo. Outro exemplo, ainda mais óbvio, de como isso se manifesta na obra de Hopper é Night Windows, de 1928:

Em Tangências, Miguelanxo Prado faz a mesma coisa. O que ele nos mostra do relacionamento dos protagonistas de cada história é uma relação sexual e, com frequência, a separação do casal, que podem ser considerados os dois momentos mais íntimos de um relacionamento afetivo.

Nas suas pinturas, Hopper frequentemente estabelece um contraste entre o olhar do voyeur e o isolamento da vida contemporânea. Esse é o caso de Room in New York, de 1932, em que o espectador assiste pela janela a vida privada de um casal. O que ele percebe é que esse casal nem se olha: podem estar lado a lado, mas estão sozinhos.

Hopper, assim, nos mostra o contraste da vida urbana moderna [em um comentário que, hoje em dia, é ainda mais pertinente]. Todos nós somos espiões solitários e dissimulados da solidão e do isolamento alheio. A circularidade desse fenômeno é evidente em pinturas como Eleven A.M., de 1926. Nesse quadro, espiamos uma mulher nua que está, por sua vez, espiando o mundo:

O nosso voyeurismo em relação ao isolamento alheio reaparece em diversas das conhecidas pinturas de Hopper que nos mostram mulheres nuas ou seminuas olhando pela janela. 

Morning in a City, 1944
Morning Sun, 1952
A Woman in the Sun, 1961

Prado, por outro lado, parece fazer expressa referência a isso ao reproduzir, em diversas das histórias que formam Tangências, a imagem de uma mulher pensativa, nua ou seminua, olhando pela janela.

Tangências - Miguelanxo Prado

O desenho de Prado, influenciado por Schiele, é mais sexual que as austeras pinturas de Hopper. Mas isso acontece porque Prado quer nos mostrar que a sexualidade de suas histórias é hedonística. Não existe romance em Tangências. 

Tangências - Miguelanxo Prado

Isso, por sua vez, apenas faz que as histórias de Tangências sejam coerentes com o sentido do comentário de Hopper sobre o voyeurismo e a solidão da vida urbana. Em Tangências, como nas pinturas de Hopper, você está espiando um casal em um momento íntimo. Mas essa intimidade, a tangência que dá título ao álbum, é exclusivamente sexual. Os protagonistas não têm envolvimento sentimental, e pelo menos duas histórias tratam precisamente do fato de que esses protagonistas ignoram os interesses do outro. 

Em Tangências, portanto, Miguelanxo Prado emula outros dois aspectos da obra de Hopper. Ele transforma o seu leitor em um voyeur. Mas ele faz isso de uma forma que coloca em evidência que, na vida moderna, todos nós somos voyeurs da solidão alheia.

Existe outra coisa a se observar na progressão que une Eleven A. M. e A Woman in the Sun. Hopper trata o assunto de forma cada vez mais austera e irreal. Eleven A. M. se esforça em parecer um cômodo real de um apartamento contemporâneo à pintura. O quarto de A Woman in the Sun não tem móveis além da cama [o mínimo necessário para caracterizá-lo como um quarto] e está localizado em uma pradaria de iluminação irreal e onírica. 

Essa irrealidade está presente em diversas pinturas de Hopper. Ela também aparece nas hqs de Miguelanxo Prado — especialmente em Traço de Giz. 

4.2 Hopper e Traço de Giz 

Falta um último aspecto a se analisar em Automat: o fundo.

Observem que o fundo da imagem é irreal. A vitrine do automat apenas reflete as luzes do interior da lanchonete e nada nos mostra sobre o mundo exterior. A luz, ainda, se reflete de forma fantástica e ilógica. Através desse recurso, Hopper insere o automat, um ambiente que é retratado de forma que reproduz a realidade, em um espaço infinito. Não é um lugar e um momento específico dentro do mundo, é um momento encapsulado e exibido fora do seu tempo.

Em Automat, Hopper produz essa sensação através do uso da escuridão. Mas o mais comum, principalmente com o avançar de sua carreira, é que o faça através da luz e da manipulação do espaço em que transcorre a cena retratada na sua pintura. 

Essa escala entre realidade/ficção tem no seu centro pinturas como Sunlight in a Cafeteria, de 1958, uma versão espelhada de Nighthawks. Percebam como a arquitetura da cafeteria, com a sua janela gigantesca, é fantástica, e como a iluminação, quase onipresente, não se orienta por critérios físicos, mas psicológicos. É uma cena de incomunicação urbana pintada de forma irreal:

No extremo da irrealidade, tem a pintura que me interessa agora mesmo, Rooms by the Sea, de 1951.

Rooms by the Sea é a obra de um mestre que domina perfeitamente o seu meio. Nela, Hopper se permite pintar o vazio. Comparando a obra final com o seu estudo preliminar, é possível verificar que ele subtraiu elementos do primeiro desenho, com o objetivo de alcançar uma composição ainda mais austera.

Ao pintar dois quartos vazios, Hopper está evocando o isolamento e a solidão que caracterizam a maioria de suas pinturas. A genialidade de Rooms by the Sea está em como ele sugere o desconforto desses sentimentos através de sutis alterações da lógica espacial da cena.

Entre essas alterações, a mais evidente é a supressão de qualquer elemento entre a casa e o oceano, como a praia que separaria um do outro.  

Outras podem ser percebidas ao comparar a pintura com uma fotografia da casa que serviu de modelo para Hopper, como a quase supressão da porta.

Finalmente, existem alterações na lógica espacial que podem ser percebidas quando você compara a pintura com um modelo em 3D. Felizmente, existe um produzido pelo arquiteto David Burt precisamente com esse objetivo. Ele nos mostra como a casa teria que ser construída para produzir, em algum momento do dia, sombras com a forma daquelas que aparecem na pintura.

O próprio ângulo do ponto de vista do espectador está distorcido. As linhas de fuga simplesmente não fazem qualquer sentido.

É nesse contexto que as figuras humanas das pinturas de Hopper também devem ser entendidas. Em alguns de seus quadros, elas parecem rígidas e estranhas. Mas isso é porque elas não são naturais, mas surreais.

Rooms by the Sea nos mostra isso. É uma de suas pinturas que está mais próxima do surrealismo, especificamente de La Conditione Humane, quadro de René Magritte de 1935.

Em Traço de Giz, Miguelanxo Prado utiliza um recurso parecido. Se, em Rooms by the Sea, Hopper subverte a lógica espacial para deixar o espectador desconfortável com a visão de um quarto vazio, e assim mergulhá-lo na solidão e no isolamento, Prado, em Traço de Giz, produz o mesmo efeito através da subversão da lógica temporal.

Ele faz com que o romance de Raul e Ana seja impossível por inseri-los em linhas temporais diferentes, ao menos dessincronizadas, para que o leitor perceba que aquele é um romance impossível. Ou seja, que os seus protagonistas estão sozinhos e isolados por uma barreira intransponível.

Nos dois casos, os recursos utilizados por Hopper e Prado lembram precisamente aqueles utilizados por Marín e Patiño, os criadores da BDG. Todos esses artistas distorcem o tempo e o espaço para causar no leitor/espectador uma sensação de estranhamento sobre a sua própria existência e mostrar a sua alienação. No caso de Hopper e Prado, esse estranhamento nos aponta para a nossa vida interior. No caso de Marín e Patiño, para o mundo externo.

Existe, por fim, uma figura recorrente nas pinturas de Hopper que aparece em Traço de Giz, igualmente em uma condição de protagonismo: o farol. 

Hoje em dia, faróis podem parecer um assunto óbvio para uma pintura, diante de seu evidente caráter simbólico. Mas isso é uma consequência do trabalho de Hopper, que ao longo de sua carreira fez do farol o protagonista de diversas de suas pinturas. De fato, trata-se da segunda figura mais presente em suas obra. Está atrás apenas de sua esposa, Jo, modelo para todas as mulheres que o artista pintou.

Alguns críticos extraem disso uma relação: Hopper pintaria faróis como uma metáfora de sua esposa, uma pessoa alta que orientava a sua vida. Outros, que eles seriam uma metáfora para o próprio Hopper — que também era uma pessoa alta, quase dois metros, e altiva. A própria Jo, ao que se sabe, costumava dizer que Hopper se pintava em seus faróis.

Essas associações podem ser feitas porque os faróis pintados por Hopper transmitem essas características. Veja, por exemplo, The Lighthouse at Two Lights, de 1929. A pintura nos mostra o farol de Cape Elizabeth, o mais frequente nas obras de Hopper [duas pinturas a óleo e pelo menos seis aquarelas], ativo até os dias de hoje.

Existe, é claro, o aspecto técnico. Pintar um farol deveria ser uma atividade prazerosa para Hopper. Ele gostava de pintar, conforme já foi comentado, luz. Mas também construções de arquitetura peculiar.

House by the Railroad, 1925

Certa vez, disse que o seu sonho era pintar apenas a luz refletida na parede de uma casa. Finalmente, as suas pinturas são pensadas quase que de forma abstrata. Ele pinta figuras naturais, mas organiza a sua pintura através da disposição harmônica de formas geométricas.

Um farol é a oportunidade perfeita para fazer tudo isso ao mesmo tempo. É uma construção arquitetônica peculiar e característica, localizada em um ponto proeminente perto do litoral, sujeita a luz solar abundante, reconhecível pela sua forma geométrica.

Mas a grande pergunta é: o que essa oportunidade, pintada daquela forma, evoca? Parece claro que Hopper, ao nos pintá-lo iluminado pelo sol, dominando a composição e em contra-plongée, está mostrando o farol de Lighthouse at Two Lights de uma forma idealizada e altiva. A sua exposição lhe dá até mesmo um aspecto de resistência estóica aos elementos: é o farol, o céu, e nada mais.

Um assunto recorrente na obra de Hopper é a fronteira entre a cidade e a natureza. Esse é o tema de Gas, de 1940, e também de Cape Cod Morning, de 1950.

Essas duas pinturas nos mostram que não se pode reduzir Hopper a um pintor anti-urbano. A sua obra, como seria de se esperar de alguém que pinta fragmentos da vida cotidiana, é mais ambígua do que isso. 

Assim, Gas nos mostra um posto de gasolina na fronteira entre a natureza e a civilização. A natureza, aqui, tem um aspecto ominoso, enquanto que o posto de gasolina emana luz pura, como se fosse um templo. As bombas do posto de gasolina se encontram à margem da fronteira [que é a estrada], e parecem sentinelas — ou, o que na verdade dá no mesmo, totens pagãos. O homem está de costas para a natureza, a serviço dos totens. Se Hopper pretende censurar a vida urbana, como explicar que ele faz do posto de gasolina um santuário? Se quer celebrá-la, como explicar que ele faz do homem um servo solitário e resignado? 

A mulher que protagoniza Cape Cod Morning, por outro lado, contempla a natureza com uma reação súbita e assombrada. Teria ela percebido o contraste que a pintura apresenta? A sua reação é medo ou maravilhamento? 

Nesse contexto, o farol de Lighthouse at Two Lights pode ser interpretado como o posto de gasolina de Gas. Ele é o último e altivo enclave entre a civilização e a natureza, entre a ordem e o caos. Como em Rooms by the Sea, o protagonista da pintura não é uma de suas figuras; é o espectador. O contra-plongée, portanto, tem por objetivo nos deixar assombrados pela nossa visão como a protagonista de Cape Cod Morning. 

O farol de Traço de Giz opera com base nessa mesma lógica. A ilha que lhe serve de cenário uma fronteira. A história transcorre, no entanto, além da estrada de Gás. Como comentei antes, a ilha está tão longe do centro que nela nem as regras do tempo e do espaço se aplicam. O seu “inutile phare de la nuit” não funciona: é assim que Prado nos diz que, naquela ilha, não existe civilização. Nossos protagonistas estão perdidos.

Você, no entanto, também deve está-lo. No final das contas, como isso nos ajuda a entender o sucesso internacional das hqs de Miguelanxo Prado?

4.3 A América de Edward Hopper e a Galícia de Miguelanxo Prado

Espero ter conseguido convencer vocês de que Prado, ainda que através de um traço que está mais próximo de Schiele, trata nas suas hqs de temas que interessam a Hopper, até mesmo através dos mesmos símbolos. 

O problema, no entanto, é que Hopper é considerado o principal pintor americano do século XX por motivos que vão além do local indicado em sua certidão de nascimento. Ele é considerado o principal pintor da América — esse seria o seu principal assunto.

É fácil entender o motivo pelo qual ele é assim considerado. Depois de estudar na Europa no início do século XX, em 1913, ele pintaria um de seus primeiros quadros: New York Corner.

Ele nunca mais sairia dos EUA. Diversas de suas pinturas identificam a localização geográfica da cena retratada: New York Interior [1921], New York Restaurant [1922], Manhattan Bridge Loop [1928]… São lugares ordinários [Hopper nunca pintou uma atração turística; de fato, ele pintou diversas pontes nova-iorquinas, mas nunca a mais conhecida delas, a Ponte do Brooklyn], mas reais e americanos.

As pinturas que não identificam a localização geográfica da cena retratada, por outro lado, nos mostram flagrantes tipicamente americanos da vida comum. É o caso de diversas pinturas já citadas ao longo do texto, como Automat e Chop Suey [1929], que nos mostram a América do Jazz dos anos 20. Em 1927, o crítico de arte Lloyd Goodrich, um dos principais admiradores do trabalho de Hopper, diria que “é difícil encontrar um pintor que consiga comunicar mais características da América em suas telas do que Edward Hopper”.

Por outro lado, e conforme já foi argumentado, Miguelanxo Prado coloca a Galícia em suas hqs. Isso também ocorre através de referências mais específicas. Em Privilégios Dourados, por exemplo, a diferença que separa o casal que protagoniza a história não é apenas econômica. É de classe social: a história sugere que a mulher integra a aristocracia espanhola. Ela diz para o seu jovem interesse romântico que ele é uma pessoa ordinária, e que ela pretende se casar com alguém de uma família de renome — provavelmente por conta de algum título nobiliário, algo completamente estranho a países não-monárquicos.

Esse exemplo é interessante por nos mostrar que a divergência entre Prado e Hopper não é necessariamente geográfica. Como já comentei, a Nova Inglaterra, cenário de grande parte da obra do pintor americano, não é tão distante, geograficamente, da Galícia. O mesmo não se pode dizer, no entanto, do seu contexto.

Como resolver essa aparente incompatibilidade?

A resposta está na carreira dos dois artistas. Hopper, como Prado em relação à Galícia e à Espanha, tornou-se artista em um momento no qual a arte americana buscava reivindicar-se e diferenciar-se de sua origem francesa. O próprio Hopper, enquanto desenvolvia o seu estilo, tentou se distanciar de seus anos em Paris. Em 1927, ele escreveria:

da horda de seguidores, imitadores e pessoas que estão atrás de publicidade que se associam a todos os movimentos na arte, na ciência e na política, estão surgindo certos artistas, originais e inteligentes, que não mais procuram ser cidadãos do mundo da arte, mas acreditam que agora, ou no futuro próximo, a arte americana deve ser desmamada de sua mãe francesa. Esses homens, nos seus trabalhos, fornecem uma expressão concreta para a sua crença. O ‘cheiro da terra” está se tornando cada vez mais evidente em suas pinturas”. 

Foi nesse contexto que Hopper amadureceu e se tornou um pintor admirado pela crítica: como um integrante da cena americana. Já nos anos 30, no entanto, alguns críticos começaram a perceber as limitações desse movimento. Em 1931, Guy Pène du Bois, crítico de arte, pintor e amigo de Hopper, escreveu:

[esse movimento] “acredita que só através da completa devoção ao cenário americano a arte americana será criada. Acredita que artistas americanos provavelmente vão perder a sua pureza nacional em terras estrangeiras. Vai mantê-los provincianos em seu pensamento, em suas palavras e no seu trabalho”.

O próprio du Bois acreditava que Hopper era um artista que ultrapassava essas limitações com a sua visão pessoal. Com o tempo, o próprio Hopper passaria a manifestar a sua inconformidade com aqueles que lhe encaixotavam na categoria “American Scene”

“O que me incomoda é esse negócio de ‘American Scene’. Nunca tentei pintar a América da forma que fizeram Benton e Curry ou os outros pintores do meio-oeste. Acho que os pintores do American Scene fazem uma caricatura da América. Eu sempre quis pintar eu mesmo”.

Estava claro que Hopper podia pintar cenas da América moderna, mas com o objetivo de refletir preocupações próprias, internas. A principal delas era o papel da própria interioridade na vida moderna. Ele não era um pintor provinciano, ainda que de uma “província” de crescente importância mundial; ele era um pintor humano e, consequentemente, universal.

Mesmo que sem tentar se diferenciar de forma tão expressa da BDG, a “cena galega” dos quadrinhos, é possível perceber essa mesma preocupação na carreira de Miguelanxo Prado [pelo menos, na forma que ele se apresentava no momento do lançamento de Tangências e Traço de Giz]. Ele é um quadrinista que, inserido no contexto da BDG e dos quadrinhos espanhóis da década de 80, conta histórias sobre preocupações próprias. Entre as quais está o papel da interioridade na vida moderna. 

Edward Hopper e Miguelanxo Prado, portanto, não estão unidos pela geografia ou pelo contexto cultural. Mas eles estão unidos pelas preocupações pessoais e internas que os motivam a articular essa geografia e esse contexto em uma obra de arte. Isso não é algo que eles tenham em comum apenas um com o outro. É algo que eles tem em comum com qualquer um que esteja preocupado com a sua vida interior: em comum com qualquer um, de qualquer lugar, em qualquer tempo.

5.
“A todos, que á Virxen
axuda pedín…”

Tangências e Traços de Giz foram recentemente publicados no Brasil pelas editoras Conrad e Pipoca e Nanquim, respectivamente. Se esse ensaio te convenceu a comprá-las, e eu espero sinceramente que esse seja o caso, você pode fazê-lo através destes dois links: um e dois. Escrevi o ensaio com base nas edições que eu já tinha, da Meribérica. Mas tenho certeza que as duas editoras fizeram um excelente trabalho de edição.

Não teria sido possível escrever esse ensaio sem apoio bibliográfico: pra começo de conversa, o meu conhecimento sobre a BDG, uma peça fundamental do quebra-cabeça montado, era praticamente inexistente.

Citei, ao longo do texto, os livros, ensaios e vídeos mais importantes. Para enfatizar, no entanto, permita-me repetidos aqui. São eles: 

1) A fantástica tese de doutorado de Xulio Carballo Dopico, Para unha historia da Banda Deseñada Galega: a narración a través da linguaxe gráfico-textual [disponível aqui]. 

2) O excelente livro de Gail Levin sobre Edward Hopper, The Art and the Artist [compre aqui]. 

3) E a brilhante palestra de John Walsh na Universidade de Yale sobre a pintura Rooms by the Sea, de Edward Hopper, At Edward Hopper’s Doorstep [assista aqui].

Também li diversos outros ensaios sobre a história dos quadrinhos espanhóis e sobre as hqs de Miguelanxo Prado. No primeiro grupo, vale destacar os seguintes: 

1) 1970-1995: Un reloj atraso y otro tren perdido, de Antoni Guiral [conhecido crítico e editor espanhol; aqui].

2) La historieta española en Europa y en el mundo, de Viviane Alary [crítica de quadrinhos francesa especializada em hqs espanholas; aqui].

No segundo grupo, estão os seguintes: 

1) Vintedous Fragmentos: Unha aproximación á obra de Miguelanxo Prado, texto que acompanhou uma exposição sobre o quadrinista, escrito por Agustín Fernández Paz [aqui]. 

2) Intertextualidad y metaficción en Trazo de Tiza de Miguelanxo Prado, de Antía Marante Arias [aqui].

3) Tangencias en el tiempo: Sobre Trazo de Tiza de Miguelanxo Prado, de José Manuel Trabado Cabado [aqui]

4) De Miguel Ángel à Miguelanxo: Réflexions sur l’itinéraire de Prado, dessinateur et illustrateur galicien, de Guy Abel [aqui].

Finalmente, o título do ensaio [Soidades amargas, suspiros amantes] vem de dois versos de um dos cantares que Rosalía de Castro reuniu em Cantares Gallegos. Mais especificamente, da parte IV do pimeiro cântico, “Has de cantar” [aqui].

Faça um esforço para lê-lo em galego. Primeiro, porque não é tão difícil: galego e português são idiomas semelhantes. Segundo, porque assim você me ajuda a não cometer esse crime que é traduzir uma poesia. E terceiro, para despedir-se do texto de forma tipicamente galega: pela via melancólica.

Cantarte hei, Galicia,
teus dulces cantares,
que así mo pediron
na veira do mare.

Cantarte hei, Galicia,
na lengua gallega,
consolo dos males,
alivio das penas.

Mimosa, soave,
sentida, queixosa;
encanta si ríe,
conmove si chora.

Cal ela, ningunha
tan doce que cante
soidades amargas,
sospiros amantes,

misterios da tarde,
murmuxos da noite:
Cantarte hei, Galicia,
na beira das fontes.

Que así mo pediron,
que así mo mandaron,
que cante e que cante
na lengua que eu falo.

Que así mo mandaron,
que así mo dixeron…
Xa canto, meniñas.
Coidá que comenzo.

Con dulce alegría,
con brando compás,
ó pé das ondiñas
que veñen e van.

Dios santo premita
que aquestes cantares
de alivio vos sirvan
nos vosos pesares;

de amabre consolo,
de soave contento,
cal fartan de dichas
compridos deseios.

De noite, de día,
na aurora, na sera,
oirésme cantando
por montes e veigas.

Quen queira me chame,
quen queira me obriga:
Cantar, cantareille
de noite e de día,

por darlle contento,
por darlle consolo,
trocando en sonrisas
queixiñas e choros.

Buscaime, rapazas,
velliñas, mociños,
buscaime antre os robres,
buscaime antre os millos,

nas portas dos ricos,
nas portas dos probes,
que aquestes cantares
a todos responden.

A todos, que á Virxen
axuda pedín,
porque vos console
no voso sufrir,

nos vosos tormentos,
nos vosos pesares.
Coidá que comenso…
Meniñas, ¡Dios diante!