O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata: “Um verso escrito com sangue”

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata

1. Hiroshi Hirata e a vida de Yukio Mishima

A melhor forma de se entender O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata, é através da lente fornecida pelo mais famoso admirador do quadrinista, Yukio Mishima.

Mishima é um dos grandes escritores japoneses da modernidade. Certamente é um dos mais prolixos e fascinantes: ao longo de sua vida, escreveu mais de trinta novelas, quarenta peças de teatro, vinte livros de histórias curtas e trinta de ensaios; também foi modelo fotográfico, ator, kendoka e fisiculturista.

Em tudo isso existia uma tensão.

Mishima, até os 12 anos de idade, foi criado pela sua avó materna, descendente de Ieyasu Tokugawa e próxima da família imperial. Ela perdera o título de familiar, mas não as pretensões aristocráticas. Não foi exatamente uma criação calorosa. A avó era uma presença dominante na vida de Mishima, afastando-lhe do convívio materno e da companhia de outras crianças. Também era hipocondríaca: mantinha Mishima afastado até mesmo do contato com a luz solar.

Aos 18 anos, Mishima foi recrutado para servir ao exército japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Foi dispensado, no entanto, por razões médicas: supostamente, apresentava sintomas de tuberculose. Mishima, no entanto, nunca desenvolveu a doença. A dispensa, que ele passaria a interpretar como um ato de covardia de sua parte, marcaria profundamente a sua personalidade.

A ruptura com a sua vida anterior viria em 1949. Depois de tentar brevemente seguir os passos de seu pai em uma carreira burocrática no Ministério das Finanças, Mishima publicou o livro que lhe tornaria conhecido: Confissões de uma Máscara. Era a mórbida história de um jovem homossexual que precisa esconder a sua verdadeira natureza da sociedade. É um livro entupido de detalhes biográficos, fonte de grande parte do conhecimento que se tem sobre a sua infância.

Também é um livro que já revela o outro lado daquela tensão. Mishima, o escritor, deve muito de seu estilo à estética luxuriosa e decadente do romanticismo e do fin-de-siècle europeu: Baudelaire e Oscar Wilde estão entre seus escritores favoritos.

Isso faz parte de uma influência ocidental maior, que se contrapunha à sua criação tradicional. Em 1952, Mishima viajou à Grécia com o objetivo de estudar as origens da tragédia. O fez sob a influência de Nietzsche, outra de suas grandes influências, e do livro O Nascimento da Tragédia. Ele usava roupas ocidentais e logo se tornaria o escritor japonês com mais livros traduzidos para o inglês da história. 

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata - Yukio Mishima, samurai ocidental

O Templo do Pavilhão Dourado, livro que ele escreveu em 1956, é um bom exemplo de como essa tensão se apresentam em sua obra. Na história, inspirada em fatos reais, um aprendiz de monge budista inicia uma espiral descendente de paranoia e alienação inspirada pela beleza do Kinkaku-ji,um dos principais templos zen do Japão. A espiral lhe empurra à decisão de incendiá-lo e suicidar-se.

O fascínio que domina o aprendiz é pelo templo como uma abstração: antes de ser arrebatado pelo seu reflexo em um lago, ele se decepciona com a aparência decadente do templo “real”. Na sua jornada, ele é obrigado por um soldado americano bêbado a pisotear o ventre de uma geisha grávida. Se surpreende ao desfrutar da sensação. A história apresenta um dilema entre o fascínio perverso por um passado idealizado que foi corrompido e a modernidade sórdida e degradante.

Essa relação ambígua com um passado anacrônico e um presente insuficiente também se faz presente na vida de Hiroshi Hirata — ainda que de forma menos romântica e mais proletária.

Hirata é o calígrafo responsável pelo kanji de Akira, de Katsuhiro Otomo: uma arte milenar a serviço de um mangá de ficção-científica pós-apocalíptica. É um senhor recluso que se tornou conhecido por suas histórias de samurai, mas que tem por hobby montar os seus próprios aparelhos eletrônicos. É o desenhista de mangás que comparece a eventos com roupas tradicionais japonesas.

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata - Hiroshi Hirata, mangaka samurai

Mas a admiração de Mishima por Hirata não é uma especulação extraída dessa coincidência. Ela era expressa. Em fevereiro de 1970, a revista Sunday Mainichi publicou um ensaio de Mishima sobre os mangás do responsável por O Preço da Desonra.

No livro Manga! Manga! The World of Japanese Comics, o primeiro grande estudo sobre mangás a ser publicado no ocidente, Frederik Schodt transcreve dois parágrafos do ensaio de Mishima:

Em 1952, quando eu fui aos Estados Unidos pela primeira vez, me surpreendi primeiramente pela enchente de gibis que eu vi por lá, e depois pelo fato de que eles eram ‘baratos’, sem nenhum resquício da sofisticação das tiras de Blondie, e lidos majoritariamente por adultos. Comparados com os gibis americanos, os do Japão contém uma forma de erotismo e violência, mas o seu humor é de vanguarda. O meu interesse pelos gibis japoneses se desenvolveu através dos gibis de samurai, em busca de algo que não existisse na América.

As bibliotecas de aluguel de quadrinhos que, antigamente, podiam ser encontradas nos mercados de quinquilharias de Ueno tinham dez vezes mais vulgaridade, crueldade, desapego selvagem e vitalidade que aqueles de hoje em dia. Eles eram o que se chamava de ‘material impróprio para a leitura’. Mas, nos mangás de samurai de Hiroshi Hirata, com o seu estilo artístico direto e sério, eu vejo uma nostalgia pelos kami-shibai de antigamente, e uma sensibilidade no estilo daquela das violentas gravuras de guerreiros do final do período Edo.

Nesses dois parágrafos, Mishima define os mangás de Hirata com base exatamente naquele contraste. Ao contrário dos gibis americanos, os mangás são eróticos, violentos e vanguardistas. Mas essas características são preservadas apenas naqueles que mantém a nostalgia pelo “kami-shibai de antigamente”; aqueles que, como os mangás de aluguel do passado [kashi-hon], são vulgares, violentos, cruéis, selvagens e vivos. Aqueles, finalmente, que são desenhados por Hirata.

A crítica de Mishima é pertinente em relação ao O Preço da Desonra, mesmo que o mangá tenha sido lançado no ano seguinte ao da publicação do ensaio da revista Sunday Mainichi e da própria morte prematura de Mishima. Como o resto da obra de Hirata, O Preço da Desonra não é um comic americano. Mas também não é como os outros mangás.

2. Não é um comic: violência, erotismo e avant-garde em O Preço da Desonra

Yukio Mishima diferencia os quadrinhos americanos dos japoneses com base em três características: violência, erotismo e humor de vanguarda.

As duas primeiras são as mais evidentes. Um mangá como O Preço da Desonra nunca seria publicado nos EUA dos anos 50, quando Mishima visitou o país. Também não seria publicado nos anos 70, quando foi lançado no Japão. Em uma editora mainstream, talvez não fosse lançado até mesmo hoje em dia. A história é principalmente violenta, mas também erótica e até mesmo escatológica, de uma que os quadrinhos americanos não costumam ser.

Na década de 50 ocorreu o auge da patrulha moralista ao conteúdo dos gibis americanos, em que capas como essa…

Crime Suspenstories #22

…eram consideradas ultrajantes.

Nos anos 70, a Marvel e a DC começaram a desafiar o CCA, o Código de Ética auto-imposto pelas editoras americanas como consequência daquela patrulha, pela primeira vez. Mas as duas fizeram isso com histórias edificantes sobre o consumo de drogas: a primeira em The Amazing Spider-Man #96, a segunda em Green Lantern/Green Arrow #85.

A história da DC, mais explícita que a da Marvel, tinha essa capa:

Green Lantern/Green Arrow #85

Enquanto isso, em O Preço da Desonra, de 1971, Hirata desenhava páginas como essa:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata

Existe, é claro, a diferença da censura.

No Japão também houve um pânico moralista pelo conteúdo dos quadrinhos nos anos 50. O próprio Hirata teve um mangá censurado pela pressão de grupos anti-discriminatórios em 1962 [Chidaruma Kempo, que supostamente reforçaria preconceitos contra a minoria burakumin]. Mas esse pânico não teve o mesmo alcance que teve nos EUA, e não se transformou em um Código de Ética como o do CCA, imposto ou auto-imposto.

No período do shogunato, havia censura no Japão. Até mesmo durante a ocupação americana, no pós-guerra, existia controle sobre críticas anti-americanas. Mas nos anos 70, essas restrições, cujo caráter era mais político do que moralista, haviam desaparecido. Perdurava, apenas, o art. 175 do Código Penal japonês, relativo à distribuição de pornografi. Mas os esforços no sentido de assegurar a sua aplicação eram mínimos.

A principal diferença, no entanto, não é legislativa. É cultural.

A melhor forma de explicitar isso é através da sexualidade e da escatologia. No Japão, piadas sexuais e escatológicas aparecem até mesmo em mangás infantis. De fato, Kazuyoshi Torii, um dos discípulo de Fujio Akatsuka [o pai do mangá de piada nonsense moderno], iniciou nos anos 70 uma série chamada Toiretto Hakase [“Professor Privada”]. Ela era formada inteiramente por piadas escatológicas.

Toiretto Hakase, de Kazuyoshi Torii

Isso não é uma novidade moderna. Toba Sōjō, monge budista que viveu nos séculos XI e XII, é considerado o pai do cartum japonês. A sua obra mais famosa é o Chōjū-giga, conjunto de pergaminhos do século XII com piadas protagonizadas por animais antropomórficos. É a Disney da Idade Média:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata - Choju-giga

Mesmo a Toba Sōjō, no entanto, são atribuídos cartuns de yobutsu kurabe [concursos fálicos] e hohigassen [concursos de peidos]:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata - Hohigassen

Nada disso é agressivo ou ultrajante. Apenas está em desacordo com a sensibilidade do público ocidental. Uma série como Professor Privada, aqui, não faz sentido por que as pessoas não consideram piadas sobre cocô engraçadas o suficiente como para sustentar uma série sobre o assunto.

É dentro desse contexto que páginas de O Preço da Desonra como esta devem ser lidas:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata

Por fim, é verdade que O Preço da Desonra não é um mangá de humor. Na verdade, ele nem mesmo usa a violência, o erotismo e a escatologia de forma bem-humorada, como no caso dos mangás como Professor Privada, ou contracultural, como talvez ocorresse no ocidente em publicações underground.

Porém, isso não significa que ele não possa ser considerado vanguardista de outra forma. Hirata normalmente é considerado um desenhista “realista”. É fácil entender o motivo: o seu desenho não é, na composição das figuras, cartunesco como o que normalmente se espera de um mangá.

Isso, no entanto, não se aplica ao seu traço, que é extremamente expressivo. Hirata não o esconde, como se poderia esperar de um desenhista realista que quer fazer com que o leitor esqueça que está vendo um desenho. Ao contrário: as linhas são moduladas e agressivas, quase raivosas. Uma parte considerável da violência e do movimento que o desenho de O Preço da Desonra sugere está no emaranhado de riscos que Hirata coloca no papel.

Frank Miller e Bill Sienkiewicz incorporariam esse recurso nos quadrinhos americanos nos anos 80. É algo parecido com o o que J. M. W. Turner fez em seus quadros ao se tornar progressivamente mais pré-impressionista. Ao pintar cenas caóticas [naufrágios, incêndios, tempestades, etc], Turner se despreocupava com o aspecto representacional. Ele usa a tinta para pintar a confusão, formando uma imagem quase abstrata:

Slave Ship, de JMW Turner
O Navio Negreiro [Slave Ship ou
Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying, Typhoon Coming On], 1840, 91 x 123 cm,
óleo sobre tela, Museu de Belas Artes de Boston

O efeito alcançado por Hirata é similar, ainda que de forma mais comedida e substituindo-se a tinta a óleo por nanquim:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata

Um dos usos que Hirata dá para esse recurso é o de sugerir movimento. Ele faz isso em detrimento de outros recursos mais típicos dos quadrinhos japoneses. Essa, portanto, pode ser uma das formas pelas quais O Preço da Desonra não parece um gibi americano. Mas também é uma das formas pelas quais também não parece um mangá.

3. Não é um mangá: mais violência, nostalgia e narrativa kami-shibai em O Preço da Desonra

Ao citar o ensaio de Mishima, Schodt transcreveu dois de seus parágrafos. No primeiro, Mishima diferencia os quadrinhos japoneses dos quadrinhos americanos. Como eu espero ter te mostrado no capítulo anterior dessa resenha, é um raciocínio que se aplica por tabela a O Preço da Desonra.

O segundo parágrafo, no entanto, é mais específico: nele, Mishima diferencia o trabalho de Hirata dos outros mangás. As palavras chave que ele usa nessa comparação são kashi-hon e ao kami-shibai.

Essas eram duas formas narrativas tradicionais japonesas que ressurgiram no pós-guerra. Kashi-hon, na verdade, pode ser definido de mais adequadamente como uma forma de distribuição. A expressão significa, literalmente, “livro de aluguel”, mas é utilizada para identificar os livros e histórias ilustradas que eram produzidas para alimentar as lojas que os alugavam [apelidadas de shomin no toshokan, bilbliotecas das pessoas comuns].

Kami-shibai, por sua vez, significa literalmente teatro de papel. Trata-se, agora sim, de uma forma narrativa: um artista ambulante apresenta, em um pequeno teatro de madeira, uma sequência de imagens, pintadas em cartolinas impermeabilizadas. É muito mais fácil de entender com uma foto:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata - Kami-shibai

As histórias distribuídas por kashi-hon e contadas em kami-shibai tem algumas coisas em comum. Ainda que sejam duas formas tradicionais de se contar histórias, tiveram uma segunda vida no pós-guerra. Era um país destruído com uma população sedenta por entretenimento barato.

As duas eram produzidas por artistas mal remunerados sob nenhuma supervisão: ninguém se importava muito com o que eles desenhassem, com tal de que o fizessem por 15 horas por dia e que o resultado capturasse a atenção do público de qualquer forma.

Finalmente, tanto o kashi-hon quanto o kami-shibai foram atropelados pela modernidade. Em 1947, Osamu Tezuka lançou o seu primeiro mangá, Shintakarajima [A Nova Ilha do Tesouro].

Shintakarajima, de Osamu Tezuka

A Nova Ilha do Tesouro é o marco zero dos mangás modernos. Mas é um marco zero montado a partir de referências ocidentais: era uma história de 200 páginas, que misturava Robert Louis Stevenson, Robinson Crusoé e Tarzan. Também misturava a estética dos desenhos de Walt Disney e Max Fleisher com cinema europeu. 

Nas palavras do próprio Tezuka:

Os quadrinhos eram desenhados como se fossem exibidos em um palco com o público sentado, onde atores surgem e interagem. Isso fazia com que fosse impossível criar efeitos psicológicos e dramáticos, então eu comecei a usar técnicas do cinema […], filmes franceses e alemães que eu assisti quando era criança de tornaram o meu modelo. Experimentei usar close-ups e ângulos diferentes, e, ao invés de usar apenas um quadro para uma cena de ação ou para o clímax [como era normal], eu deliberadamente mostrava movimento, ou expressões faciais, com vários quadros, até mesmo em várias páginas”.

Shintakarajima, de Osamu Tezuka

Mangás como os de Tezuka, com a ajuda da televisão [a partir de 1953, quando começaram as transmissões televisivas no Japão], logo tomariam conta do espaço de formas de entretenimento popular japonês como o kashi-hon e o kami-shibai. Esse crescimento se deu cooptando a atenção do público, mas também a mão de obra. Shigeru Mizuki, de Marcha para a Morte!, é um exemplo de artista que começou a sua carreira como artista de kashi-hon e kami-shibai e migrou para os mangás.

A Nova Ilha do Tesouro é uma história infanto-juvenil. Mas, ainda nos anos 50, alguns artistas jovens que trabalhavam com histórias de kashi-hon [como Takao Saitō e o brilhante Yoshihiro Tatsumi] começaram a desenhar histórias mais adultas. Elas foram batizadas por Tatsumi de gekigá, um termo cuja tradução literal resulta em algo bastante próximo de “graphic novel”.

A diferença entre o gekigá e os mangás como o de Tezuka, no entanto, era principalmente de conteúdo e público, e não tanto de linguagem. Conforme Sharon Kinsella, no livro Adult Manga: “Enquanto o mangá era percebido como uma forma de entretenimento infantil limpa e saudável, o gekiga foi associado com jovens trabalhadores urbanos mal instruídos e política anti-establishment”.

A estética era menos infantil, mas ainda cartunesca; a narrativa, extremamente dinâmica.

Black Blizzard, de Yoshihiro Tatsumi
Black Blizzard, de Tatsumi, publicado em 1956

Foi nos anos 60 que essa nova forma de narrativa pictográfica se consolidou. Essa mudança não foi apenas estética. Os mangás no estilo que Tezuka inaugurou logo se transformaram em uma indústria de sucesso. As histórias kashi-hon normalmente eram produzidas em Osaka. Os mangás, por grandes editoras de Tóquio. Lá, eram lançados em revistas periódicas como a Manga Shōnen.

As revistas eram publicadas em preto e branco, de forma semanal, e em tiragens milionárias. Tinham um público alvo bem segmentado: jovens, mulheres, adultos, etc. As suas histórias em seguida se transformavam em desenhos animados.

Ao contrário dos desenhistas de kashi-hon e kami-shibai, os quadrinistas de mangá são proprietários de suas criações e tem de considerável prestígio. Mas, pela periodicidade das revistas, ainda são máquinas de produzir. Existe uma dinâmica entre editores que precisam tratar desenhistas com luvas de pelica e, ao mesmo tempo, obrigá-los a produzir em um ritmo frenético, que frequentemente rende anedotas engraçadas.

O gekigá se tornou progressivamente mais realista. Mas esse realismo estava dentro de um contexto. De novo conforme Kinsella, era um realismo “associado com superar obstáculos para o progresso pessoal, atitudes apaixonadas pela sociedade, e política de esquerda”. Essa lógica era aplicada até mesmo em dramas históricos, como as histórias de samurai de Sanpei Shirato [autor de A Lenda de Kamui]: os seus mangás mostravam o levante das massas no Japão feudal, de inspiração evidentemente marxista.

No início dos anos 70, o gekigá abandonaria esse tipo de realismo, mas em favor de histórias abstratas e surreais. Também eróticas e grotescas: quase que uma tentativa deliberada de forçar as autoridades a aplicar o art. 175 do Código Penal japonês. Diversas dessas histórias foram publicadas na revista Garo, criada em 1964 por Katsuichi Nagai principalmente como uma plataforma para Sanpei Shirato publicar as suas histórias de samurai.

Ainda que seja, em tese, um gekigá, O Preço da Desonra ocupa, dentro desse cenário, um espaço inabitado. De fato, parece procurar deliberadamente o ponto cego dessa indústria.

Primeiro, o óbvio. Hirata é um autor que se colocou fora desse sistema de trabalho. Ele produz pouco e tem uma vida reclusa. O conteúdo de O Preço da Desonra não é, evidentemente, o de um mangá de aventura juvenil como aqueles que Tezuka produziu no início de sua carreira. É um drama histórico desenhado de forma não caricata, completamente desprovido de humor.

Mas ele também não é como os outros gekigás. Em primeiro lugar, o gekigá manteve a narrativa cinematográfica e fluída do mangá. Esse, no entanto, não é o caso do O Preço da Desonra. A expressividade do traço de Hirata é tão importante para sugerir o movimento do desenho porque não utiliza os movimentos de câmera que Tezuka trouxe do cinema europeu para A Ilha do Tesouro.

É uma narrativa fragmentada, em que uma ação não se desdobra em diversos quadrinhos. É muito parecida com o que Tezuka chamou de “normal” em sua autobiografia — ou seja, com com a narrativa kami-shibai e kashi-hon.

Olhe comigo para essas duas páginas. Não esqueça que você deve lê-las da direita para a esquerda:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata
O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata

Agora, vamos voltar para A Nova Ilha do Tesouro:

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata - Shintakarajima

Tezuka faz com que os seus quadrinhos dialoguem uns com os outros através de recursos cinematográficos [como movimento de câmera ou zoom out]. Em três páginas, ele não nos conta objetivamente nada. Essas três páginas tem por objetivo exclusivo criar a ilusão de que o desenho é animado.

Por outro lado, naquelas duas páginas de O Preço da Desonra, cada quadrinho de Hirata apresenta uma informação e é seguido de um “corte” para outra cena. O auge da sequência de cenas é um quadrinho maior e mais trabalhado que os outros, que apresenta diversas ações simultâneas. Poderia, perfeitamente, ser um “quadro” de uma apresentação kami-shibai.

Hirata também não usa a ambientação histórica de O Preço da Desonra como uma analogia para narrativas contemporâneas — políticas ou costumbristas. Ao contrário: é uma preocupação evidente de Hirata retratar o período em que a história transcorre de forma fidedigna.

O objetivo, no entanto, não é contar uma história anacrônica. Ao ambientar a sua história no passado, Hirata quer quer reforçar a sua atemporalidade.

Ao procurar o sentido O Preço da Desonra no que ele conta, você vai encontrar uma mesma situação no cerne de todas as suas histórias. É um conflito transcendental sobre os deveres de um bushi, um homem honrado. É uma situação trágica.

4. É uma tragédia grega: conflito, Sófocles e ainda mais violência em O Preço da Desonra

Pureza total é possível se você transformar
a sua vida em um verso escrito com sangue
Cavalo Selvagem, de Yukio Mishima

O protagonista aparente de O Preço da Desonra é Hanshiro, um tomador de promissórias de vida. Uma promissória de vida é um título de crédito que um samurai que perdeu uma luta em uma batalha emite em favor de quem o derrotou para que esse poupe sua vida. Hanshiro recebe essa promissória dos credores [o vencedor], e procura os samurais derrotados para cobrar a dívida. Se eles não forem capazes de pagá-la, ele deve matá-los: a dívida é garantida pela vida que foi poupada.

Por mais bizarro que possa parecer, tudo isso é real: no Japão feudal, existiam promissórias de vida e samurais encarregados de cobrá-las.

Os personagens de O Preço da Desonra, no entanto, não são históricos. Hanshiro, o protagonista, na verdade quase não é um personagem. Ele é uma máquina de matar insensível que não tem olhos ou, o que quase dá no mesmo, personalidade própria.

Hanshiro não tem personalidade própria porque o seu papel nas histórias que formam O Preço da Desonra exige que ele não a tenha. Ele está perto dos grandes monstros imparáveis e sem rosto do cinema de terror americano dos 80 [Michael Mayers, Jason, T800]. Ele é uma mistura de inevitabilidade do destino e de juiz de caráter. De fato, no Capítulo Segundo [“Unidos pelo ódio”], ele parece ser onisciente.

O início da história do Capítulo Primeiro [“Viver em inanidade, morrer pela verdade] ilustra isso muito bem. Nele, Hanshiro surge de um nada fantasmagórico e, na medida em que se aproxima do leitor, é desenhado de forma mais detalhada — ou seja, é progressivamente identificado. É como se ele fosse uma personificação que está se encarnando na frente do leitor.

Hanshiro
Hanshiro
Hanshiro

Nesse papel, o que Hanshiro faz é revelar o verdadeiro protagonista da história, como a final girl de um filme de terror oitentista: o emitente da promissória. Ele também nos revela a verdadeira personalidade desse protagonista, ao simbolizar o seu reencontro com as consequências de suas ações.

Ao contrário dos monstros do cinema de terror dos anos 80, no entanto, Hanshiro não está perseguindo adolescentes pecadores. 

O Preço da Desonra é formado por seis capítulos, além de um inicial não numerado que mais parece um teste do conceito do que uma parte da mesma história que os outros. Cada um desses capítulos conta uma história diferente e independente, que tem em comum apenas o mote do mangá [Hanshiro se apresenta para cobrar uma promissória].

Entre os capítulos numerados, no primeiro [“Viver em inanidade, morrer pela verdade”], terceiro [“Cobranças em Hida”], quarto [“Os onze bandidos”] e quinto [“Sob a lua cheia de uma noite de outono”], o emitente da nota promissória se revela um autêntico bushi. Ele aceita a possibilidade de morrer como consequência dos acontecimentos desencadeados pela chegada de Hanshiro: ele não teme a morte.

“Cobranças em Hida” é um exemplo claro disso. A história faz um contraponto entre a reação do emitente da nota promissória e a sua esposa: ele se resigna; ela se desespera. Não se trata de condescendência com as mulheres: o que Hirata está fazendo é contrapor o desespero da natureza humana, representada no caso pela esposa, e a frieza da consciência de seus deveres, representada pelo bushi.

Se isso é assim, por que motivo os protagonistas dessas histórias emitiram a promissória em primeiro lugar? 

Nessas quatro histórias, eles o fizeram porque estavam premidos por obrigações conflitantes. Agora, os melhores exemplos são as histórias do Capítulo Primeiro e do Capítulo Quarto. Na primeira, ele precisava preparar o seu filho para substituí-lo; na segunda, para preservar a vida de onze crianças inocentes.

Esses dois pontos em comum desses quatro capítulos, por sua vez, coincidem com duas características das histórias trágicas.

A primeira delas é, precisamente, a consciência do personagem principal do motivo de seu sofrimento. Conforme explica Albin Lesky em A Tragédia Grega, essa é uma característica especificamente grega, ainda que de validade geral, da tragédia:

O sujeito da ação trágica, o que está enredado num conflito insolúvel, deve ter elevado à sua consciência tudo isso e sofrer tudo conscientemente. Onde uma vítima sem vontade é conduzida surda e muda ao matadouro não há impacto trágico. Decerto, na tragédia grega, a reflexão racional e a selvagem e apaixonada manifestação dos afetos aparecem separados por limites formais bem precisos. Às vezes, a justaposição parece um pouco rude à sensibilidade moderna.

A segunda característica está na solução que encontra o impasse que o protagonista enfrenta: a morte. É uma solução que se fundamenta em uma camada superior, que opera em termos absolutos: ao aceitar a sua morte, o bushi está reconhecendo a existência de deveres que são superiores à sua existência.

A relação disso com a tragédia está exposta, de novo, no livro de Lesky, ainda que ele se socorra de Friederich Sengle para explicá-la. Para Sengle, diz Lesky,

A verdadeira tragédia existe tão-somente quando o conflito trágico alcança solução numa esfera superior, dado que nela se torna significativo. O verdadeiro autor trágico deve atravessar a camada conflituosa da catástrofe, para chegar, na esfera superior, à compreensão conciliadora. “A grande tragédia jamais acaba em desarmonia ou dúvida, porém, antes, numa palavra de fé avassaladora que afirma o destino representado no drama e a dolorosa constituição do mundo que nele se manifesta”.

Dentro dessa perspectiva, é nessas quatro histórias que Hirata, em relação ao conflito revelado por Hanshiro, mais se aproxima de Sófocles. De novo conforme o livro de Lesky,

Constitui também grave mal-entendido a suposição feita recentemente de que Sófocles se achava em crise religiosa quando escreveu esta tragédia. O certo é o contrário: que, por cima do horror deste conflito trágico, levado até a completa destruição, encontramos a fé inabalável do poeta na grandeza e sabedoria dos deuses de sua crença. No mesmo drama que nos mostra a queda da criatura tragicamente golpeada, encontramos o canto coral em louvor às leis eternas, a serem piedosamente honradas.

Os capítulos segundo [“Unidos pelo ódio”] e sexto [“O desejo de um lacaio”] dialogam com essa perspectiva, mas desde o outro ponto de vista. O ponto de vista de um falso bushi.

“Unidos pelo ódio” é bastante similar ao belíssimo filme Harakiri, de Masaki Kobayashi. Na história, um samurai sem mestre [ronin] se apresenta na propriedade de um clã e pede auxílio para cometer suicídio ritual, o seppuku: a prática exige a presença de um samurai executor. Trata-se, no entanto, de um blefe: ele esperava comover o senhor feudal com a sua disposição para o sacrifício e, assim, conseguir um emprego; até mesmo a sua espada era de bambu. O ronin, então, é torturado e morto de forma indigna.

O que a chegada de Hanshiro revela, nessa história, é que o próprio senhor feudal, Terada, era o causador da desgraça do ronin — e da desgraça diversos outros. Ele passa, então, a extorqui-lo para garantir o sustento das esposas dos ronins falecidos. No final da história, e após Hanshiro frustrar uma emboscada traiçoeira, Terada comete seppuku. Mas isso é apenas um estratagema para salvar a honra de sua família.

Tudo que ele faz na história é perverter as suas obrigações de bushi.

O senhor feudal de “O desejo de um lacaio” também é um falso bushi: alguém que apenas cultiva a aparência de respeitabilidade mas se comporta, na verdade, de forma covarde. Antes da chegada de Hanshiro, ele recebe um outro cobrador de promissórias. Esse, no entanto, está apenas atrás de um emprego comum. O protagonista da história aceita empregá-lo para manter a emissão da promissória em segredo.

Dentro da história existe uma dinâmica muito interessante entre os dois personagens: um é mais desonrado que o outro, mas parte da desonra do cobrador está na mediocridade de sua ambição, e na do emitente está em não apenas tolerá-la, como também aproveitar-se dela. Mas o que nos interessa é o que a chegada de Hanshiro revela: que promissória do primeiro cobrador era falsa, e que o seu emitente está disposto a fazer tudo para esconder a sua covardia.

Vale a pena observar que, nessas duas histórias, existe uma ligação entre comportamento traiçoeiro, decadência social e uso de armas — que foram introduzidas com sucesso no Japão no século XVI por ocidentais.

O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata

Se, naqueles capítulos anteriores, o sacrifício consciente do emitente da nota promissória resultava na validação de valores fundamentais, aqui a situação é a contrária. Nessas duas histórias, Hanshiro se depara com a degradação moral de um suposto bushi, o abandono daqueles valores e, consequentemente, a iminente degradação social. É entre esses dois pólos que Hirata escreve O Preço da Desonra.

Talvez aquelas duas características sejam as únicas que O Preço da Desonra tenha da tragédia grega. O que importa, aqui, é que elas dão para o mangá esse sentido: existe uma beleza redentora em uma morte honrada; existe uma degradação social insidiosa em uma vida mesquinha.

Isso, em primeiro lugar, novamente afasta Hirata dos mangás e dos gekigás: o tema central de suas histórias, o sacrifício trágico como forma de validação dos valores tradicionais e, talvez, de redenção, não é precisamente aventuresco e juvenil. Certamente não é contemporâneo, urbano ou político.

Em segundo lugar, nos devolve para o ponto inicial desta resenha: Yukio Mishima. Mais especificamente, àquela que é, infelizmente, a obra sua mais conhecida: a sua morte.

5. Hiroshi Hirata e a morte de Yukio Mishima

O bushi é aquele que não teme a morte!
Ele jamais hesita, nem quando a sua vida é ameaçada!
O Preço da Desonra, de Hiroshi Hirata

Em 1967, aos 39 anos e no auge de sua fama, Mishima se alistou na Força Terrestre de Autodefesa do Japão [FTA].

Não era o exército imperial da adolescência de Mishima. Com a sua derrota na Segunda Guerra Mundial e a sua adesão à declaração de Postdam, o Japão renunciou ao direito de beligerância. A renúncia foi consagrada no famoso artigo 9º da Constituição japonesa, através do qual “o povo japonês renuncia à guerra como um direito soberano da nação e ao uso da força como instrumento de resolução de conflitos internacionais” e, consequentemente, estabelece que “forças terrestres, aéreas ou marítimas nunca serão mantidas”.

A FTA é uma consequência dessa renúncia: trata-se da força armada terrestre que substituiu o exército imperial, mas com atribuições limitadas à defesa contra ameaças internas e catástrofes naturais, em um primeiro momento, e, após o retorno das tropas americanas estacionadas no Japão, contra ataques externos ao território japonês.

Mishima não planejava, no entanto, se tornar mais um soldado. Um ano após o seu alistamento, Mishima foi autorizado a manter uma milícia própria, a Tatenokai [Sociedade do Escudo]. Mishima estava preocupado com a ascensão de grupos de extrema-esquerda no Japão. A milícia, formada por 100 integrantes, quase todos jovens universitários, treinava nas instalações da FTA.

Tate no Kai, a Sociedade do Escudo de Yukio Mishima

O seu agir levantou algumas suspeitas: Mishima era uma figura politicamente controversa. Mas a Sociedade do Escudo era tratada como uma excentricidade. O The New York Times, em agosto de 1970, publicou um perfil de Mishima que descreve a sua milícia com perceptível desdém:

Ainda que críticos de esquerda tenham, ocasionalmente, alertado que Mishima e seus jovens homens são proto-fascistas dispostos a reviver o militarismo do Japão dos anos 30, os jovens homens da Tate No Kai se comportam mais como escoteiros do que como a juventude hitlerista. Com certeza não se envolvem em nenhuma atividade política séria. Mishima diz que eles estão se preparando para ajudar as forças armadas caso aconteça algum tipo de rebelião esquerdista no Japão. O que eles fazem, principalmente, é se exercitar e cantar a música deles, aprender karatê e, durante algumas semanas do ano, treinar à beira do monte Fuji.

Em três meses, o perfil do The New York Times se tornaria tragicamente anacrônico.

Em 25 de novembro de 1970, Mishima e outros quatro integrantes da Sociedade do Escudo, armados com espadas samurai, se reuniram com um general das FTA no quartel de Ichigaya, em Tóquio. Eles renderam o general e ameaçaram matá-lo, caso as tropas do quartel não fossem reunidas para ouvir um manifesto escrito por Mishima.

As tropas foram reunidas. Mishima, na sacada da sala do general, iniciou o seu discurso. Ele pretendia incitar as tropas a aderir a um golpe de estado. Pretendia derrubar a Constituição de 1945, ressuscitar o exército imperial e restaurar o status de divindade do imperador japonês.

Em janeiro de 1946, o Imperador Hirohito, obrigado pelas Forças Aliadas e através de um édito imperial que se tornou conhecido como Declaração de Humanidade, reconheceu a sua não divindade. Mishima, influenciado por Nietzsche, viu nisso não apenas uma demonstração de desprezo pelo sacrifício dos soldados japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, mas a própria morte da nação japonesa. Através da Declaração de Humanidade, deus se suicidou; Mishima pretendia ressuscitá-lo antes que a sociedade japonesa se afogasse no mar de sangue.

O golpe de Mishima rapidamente se transformou em um circo. Era horário de almoço. As tropas estavam impacientes. A sacada era muito alta. A imprensa fora avisada, e três helicópteros sobrevoavam o quartel. Ninguém conseguia ouvi-lo. Rapidamente, todos se puseram a insultá-lo. Mishima pretendia discursar por trinta minutos. Depois de sete, somente era possível ouvi-lo conclamando os soldados à morrer pela causa: “Rebelem-se e morram! Rebelem-se e morram!”.

Yukio Mishima prestes a pagar O Preço da Desonra

Quando ele desistiu do discurso, o circo se tornou um holocausto. Mishima retornou para a sala do general. Olhou para os seus discípulos e disse “acho que não me ouviram muito bem”. Se ajoelhou. Com a sua wakizashi, a pequena espada samurai, perfurou o seu ventre. Depois, despejou as suas entranhas no chão com um corte lateral. Era um suicídio ritual, o seppuku.

Um de seus recrutas, Masakatsu Morita, fora previamente designado como executor e deveria decapitá-lo. Não conseguiu fazê-lo, mesmo depois de três tentativas. Outro recruta, Hiroyasu Koga, então assumiu o seu posto. Com um golpe certeiro, decapitou um agonizante Mishima. Enquanto isso, o próprio Morita se ajoelhou e, como o escritor, eviscerou-se. Koga, então, decapitou-lhe com um golpe. Os boy-scouts do The New York Times se tornaram uma seita suicida.

Existem alguns indicativos concretos no sentido de que a sua morte não foi a consequência do fracasso de seu plano. Foi exatamente a sua conclusão. Desde o início, o plano de Mishima era morrer.

Quase 100 jovens formavam a Sociedade do Escudo. Mishima planejou o golpe ao longo de um ano, em segredo, com apenas quatro deles. Conforme os dois sobreviventes, nas semanas imediatamente anteriores à data fatal, eles ensaiaram apenas o seu suicídio. Na madrugada anterior à sua morte, Mishima concluiu o que seria o seu último livro, A Queda do Anjo. Era a última parte da tetralogia O Mar da Fertilidade. Pela manhã, postou o livro no correio. Antes de sair de casa, deixou um bilhete suicida para a sua esposa.

Mais importante, a sua obra revela uma certa fascinação com pelo suicídio. No início de 1963, em um ensaio literário, Mishima escreveu:

“Já comecei a sentir que a juventude e o florescimento da juventude são bobagens de pouco valor. O que sobra é o conceito da morte. Me parece provável que esse é o único conceito verdadeiramente sedutor, verdadeiramente vivo, verdadeiramente erótico”.

Em Confissões de uma Máscara, o protagonista, um stand in para o próprio Mishima, tem o seu despertar sexual ao contemplar o quadro O Martírio de São Sebastião de Guido Reni. Mishima, como modelo, reproduziria essa cena de forma evidentemente erotizada, explicitando a combinação entre impulso sexual com auto-destruição:

São Sebastião, de Guido Reni
O Martírio de São Sebastião [Saint Sebastian], 1616,
128 x 98 cm, óleo sobre tela, Musei Capitolini
Yukio Mishima e São Sebastião

Em uma resenha do livro Star, no Los Angeles Review of Books, Jan Wilm explica a relação dessa contradição com a obra de Mishima exatamente como teatro:

O suicídio é verdadeiro, na sua totalidade, mas, ao mesmo tempo, é um evento de puro artifício. Ao invés de deslizar para a morte involuntariamente, o suicídio é o único ato da morte que é precisamente isso, um ato, que tem significado por partir de uma escolha, um ato que chega o mais perto possível de ser a interpretação do que é um não-evento. E é isso que faz dele, para Mishima, um ato belo”.

Diante de tudo isso, é quase impossível não interpretar o suicídio de Mishima como arte performática.

O ensaio de Mishima sobre Hirata teve um efeito negativo: de certa forma, o escritor engoliu o quadrinista. No próprio Manga! Manga!, Schodt se limita a descrever Hirata como “o desenhista que Mishima admirava”.

No entanto, O Preço da Desonra foi publicado no ano seguinte ao da morte de Mishima. Consequentemente, podemos usá-lo para fazer o caminho contrário: ao invés de apenas usar Mishima para interpretá-lo, usá-lo para interpretar Mishima.

Se você utilizar O Preço da Desonra como uma lente, vai enxergar, na dispensa de Mishima do exército, a emissão de uma promissória de vida. O dever de Mishima, desde o seu próprio ponto de vista, não era apenas entrar no exército e defender o seu país na guerra. O seu dever era morrer pelo imperador.

Ao emitir a sua promissória, Mishima prosperou. O Japão, porém, perdeu a guerra. Dentro dessa lógica, a derrota teve por causa a existência de pessoas como Mishima, que  não estiveram dispostas a sacrificar-se pelo seu país. Sim, Mishima prosperou; mas como resultado de uma covardia que levou à degradação do Japão nas mãos do ocidente, representada no reconhecimento, por parte do imperador, de sua não divindade.

O seu suicídio, desde esse ponto de vista, é o pagamento dessa dívida. A responsabilidade pela queda do Japão não era do imperador. Era de Mishima e de pessoas como ele, que deveriam pagar o preço.

Contudo, como em O Preço da Desonra, esse pagamento não era apenas uma redenção pessoal. Também era uma afirmação: Mishima estava morrendo com base nos valores que a sua covardia tornara ultrapassados. O fato de Mishima ter praticado seppuku para restaurar o poder imperial já era suficiente para restaurar, ao menos de forma simbólica, uma fração do poder do imperador. Mesmo que os soldados não aderissem à sua rebelião, ela seria bem sucedida.

Conforme explica John Nathan, autor de Mishima: A Biography e um dos maiores críticos ocidentais da literatura japonesa, em um artigo no New York Review of Books:

Em março daquele ano, o Japão comemorou a sua transformação em uma poderosa economia global ao receber a Expo’70, que levou o futurista Herman Kahn a predizer que o século XXI seria dos japoneses. Agora, nove meses depois, Mishima atrasou o relógio cem anos, em direção a uma era feudal na qual a morte por hara-kiri era a forma de um samurai reconhecer a derrota de uma forma honrosa ou mostrar a sua lealdade ao seu chefe.

Existe, no entanto, uma falha nesse raciocínio. Mishima descobriu a tragédia grega através de O Nascimento da Tragédia, de Nietzche. Nas palavras de John Gray, na New Statesman: “a sua tentativa nietzcheana de superar o nihilismo através do culto da individualidade era mais influenciada pelas ideias ocidentais do que pelas tradições japonesas que ele queria reviver”.

Se tivesse lido O Preço da Desonra, Mishima poderia ter intuído, no momento anterior ao de sua morte, o fracasso iminente de seu plano. Bastaria que ele tivesse percebido que a mão de Morita tremia. O seu executor não era Hanshiro. Não era impiedoso, mortal e honrado como deveria ser o encontro com o destino de um verdadeiro bushi.

O Preço da Desonra
Hiroshi Hirata
[Pipoca & Nanquim, 2019]