Sem Medo: O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Demolidor x Mercenário

Capítulo 1: 1978, Ano Zero

“A triste verdade é que a verdadeira vida do homem consiste
“eu tinha um porfólio gigante de desenhos que eu queria
mostrar para o Neal Adams. Quase quebrou o nariz dele
quando ele abriu. Ele olhou para os meus desenhos e
disse ‘de onde você é?’. Eu disse ‘Vermont’.
‘Você deveria voltar para lá e virar frentista.
Você nunca vai ser bom'”.
–Frank Miller

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é o ápice de uma época.

Ao longo da década de 70, diversos fãs de quadrinhos se tornaram quadrinistas profissionais. Eram quadrinistas com ideias pretensiosas sobre o potencial do meio para tratar de assuntos sérios. A série Green Lantern/Green Arrow, de Dennis O’Neil e Neal Adams, talvez seja o primeiro exemplo. Warlock, de Jim Starlin, publicado entre 1976 e 1977, talvez seja o melhor.

Aqueles quadrinistas, no entanto, ainda produziam hqs que eram destinadas a serem consumidas de forma voraz e fugaz. A temática poderia ser séria, mas a abordagem era a mais direta possível. dificilmente contemplava nuances de forma sutil, sóbria ou profunda.

Assim, O’Neil e Adams escreveram histórias sobre problemas sociais polêmicos, como poluição, excesso populacional e drogas. Mas elas não expressavam qualquer ambiguidade em relação a esses problemas. Também eram protagonizadas por um Arqueiro Verde que usava o mesmo chapéu engraçado de sempre. Frequentemente envolviam monstros alienígenas — para não falar do careta de plantão e titular da cabeceira da série, o Lanterna Verde, que é um policial cósmico.

Não muito diferente, Starlin escreveu uma space-opera sobre Nietzsche, Kierkegaard e Freud. Mas ele fez isso usando ciano, magenta, amarelo, diálogos expositivos e tubarões espaciais.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Warlock x Tubarão
O que é, evidentemente, legal pra caramba, mas não muito sério.

Eram hqs pensadas para o leitor ocasional. A parceria entre O’Neil e Adams iniciou em Green Lantern #76, quando a série foi rebatizada de Green Lantern/Green Arrow [ainda que mantendo a mesma numeração] e encerrou-se em Green Lantern #89. No período, as aventuras se sucederam como em um gibi dos anos 60: uma por edição, a exceção dos números #85 e 86, sem qualquer efeito sobre a história anterior ou seguinte. A temática social muitas vezes parecia mais um atalho do que um assunto — como vilões de origem animal na série do Homem-Aranha.

O Warlock de Jim Starlin até contemplava uma continuidade em suas histórias [uma marca da Marvel desde o seu início]. Os leitores fiéis, mesmo assim, não estavam no topo da lista de prioridades: a história passou por 4 cabeceiras diferentes, terminando na Marvel Two-In-One Annual #2 [o Coisa enfrenta o Homem-Aranha!] como um favor de Archie Goodwin, o editor da Marvel naquele momento, para Starlin. 

Foi em 1978 que isso mudou.

Em primeiro lugar, o mundo externo aos quadrinhos parecia estar pronto para recebê-los no panteão das artes que devem ser levadas a sério. 

Em 1978 foram lançados Cão em Fuga, Don Delillo, e O Fator Humano, de Graham Greene. São dois livros de literatura “de verdade” que operavam com base em elementos mais típicos da literatura low brow. Roger Zelazny lançou mais um livro da série Crônicas de Amber, The Court of Caos. Zelazny estava inserido em um espaço considerado low brow [livros de ficção científica como os de Michael Moorcock], mas escrevia personagens que fumavam e vestiam gabardina. Foi dessa forma que ele se tornaria uma das grandes influências de Neil Gaiman, um dos mais articulados roteiristas de quadrinhos. 

Também é o ano em que estreou o primeiro filme do Super-Homem. Você pode dizer que ele era um filme comercial. Mas é facilmente perceptível pelos nomes que lhe foram associados [Marlon Brando, sem ir muito longe] que era um filme comercial que tinha seu valor como validação.

Finalmente, 1978 também foi o ano em que faleceu Norman Rockwell. O acontecimento é emblemático. Rockwell talvez seja o artista americano que mais fez por dar credibilidade artística à arte popular.

Em segundo lugar, o mundo dos quadrinhos tinha percebido a existência de uma oportunidade.

Foi em 1978 que a Marvel publicou o seu último gibi original de Jack Kirby. Kirby talvez seja o maior quadrinista de super-heróis de todos os tempos. Mas ele conquistou essa merecida posição a base de gibis para consumo feroz e fugaz. O seu afastamento da editora que publicou as principais hqs de sua carreira, portanto, é um acontecimento igualmente emblemático.

Mais: a sua última hq, Silver Surfer: The Ultimate Cosmic Experience, também é significativa nesse sentido. Ela é a adaptação para os quadrinhos de um roteiro que Stan Lee escreveu para um filme do Surfista Prateado que não saiu do papel.

O filme seria protagonizado por Dennis Wilson e teria trilha sonora dos Beach Boys. A hq, hoje em dia, é considerada a primeira Marvel Graphic Novel.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Silver Surfer: The Ultimate Cosmic Experience

Isso nos leva, por sua vez, à grande estrela dos quadrinhos de 1978: Um Contrato com Deus, de Will Eisner. Pode ser que a hq, no final das contas, não seja a primeira a se auto-identificar como graphic novel. Mas foi a primeira a ser calculada como uma obra completamente externa ao mundo dos gibis de banca. É uma coletânea de contos costumbristas, publicada por uma editora de livros e lançada apenas em livrarias. Também era a obra através dos quais Eisner tentava dar sentido a uma tragédia pessoal: a morte precoce de sua única filha, Alice, de leucemia.

A Marvel, por outro lado, iniciaria uma revolução interna que lhe deixaria pronta para os anos 80. Além de ser o último ano de Kirby na editora, 1978 foi o primeiro ano de Jim Shooter como editor-in-chief. 

Quando Shooter assumiu o posto, a Marvel e Phil Seuling já tinham negociado a entrada da editora no que se tornaria o mercado direto. Foi ele, no entanto, que percebeu que ali poderia estar uma parte importante do futuro da empresa. No seu primeiro ano como editor, a renda oriunda de hqs distribuídas para lojas de quadrinhos praticamente dobrou. 

Ainda que o mercado direto, hoje em dia, seja visto como um dos grandes vilões dos quadrinhos, foi ele que salvou os gibis de super-heróis do que era visto como ruína certa. Também possibilitou que fossem publicadas hqs que não eram dirigidas apenas ao leitor ocasional — o que ampliaria de forma considerável as possibilidades do meio.

Isso, no entanto, acabou se tornando um pequeno detalhe na biografia de Shooter. Ele se tornou mesmo conhecido por ter organizado uma editora que, depois de passar por quatro editores em quatro anos, tinha virado uma bagunça. Das 45 séries com publicação prevista para janeiro daquele ano, 26 foram entregues fora do prazo. 

Shooter, que era um discípulo de Mort Weisinger, não organizou a Marvel distribuindo sorrisos. Ele demitiu funcionários e incomodou quadrinistas. Não foi, até onde eu sei, o caso de Kirby, mas o agito editorial levou à saída de parte do talento criativo da editora. Isso, por sua vez, abriu espaços para outros quadrinistas. 

Daredevil, a série do Demolidor, era um problema. Com vendas baixas e periodicidade bimensal, ela passara pelas mãos de diversos escritores e desenhistas. Eles tentaram, sem sucesso, dar para o personagem uma cara própria.

Depois de escrever, ele mesmo, nove edições da série, Shooter encontrou um roteirista disposto a substituí-lo: Roger McKenzie. McKenzie era roteirista de gibis de terror, com diversas histórias publicadas em revistas da Warren como Vampirella, Creepy e Eerie, e pretendia dar um tom mais sinistro para a série.

Faltava, no entanto, encontrar um desenhista. Gene Colan, um dos grandes desenhistas da Marvel e, durante muitos anos, do próprio Demolidor, aceitou retornar à série para segurar as pontas enquanto Shooter procurava por um novo desenhista titular. 

De início, o veterano Frank Robbins aceitara a missão. No entanto, ele desenhou apenas um número da série [Daredevil #155] e desistiu dos quadrinhos. Se mudou para a cidade de San Miguel de Allende, no México, e se tornou pintor. 

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Daredevil #155
Também não é como se ele estivesse com muita vontade.

Frank Miller, no entanto, estava à espreita.

Oriundo da pacata Montpellier, em Vermont, Miller morava em Nova Iorque desde 1977. Ele migrara para a cidade com o sonho de se tornar um quadrinista. Fazia parte, portanto, da geração que mudou a cara dos quadrinhos na década de 70.

Ele não era, no entanto, apenas um fã de quadrinhos. Miller sempre fora um leitor voraz — de gibis e de livros. Em Nova Iorque, morava no SoHo: um bairro de artistas, ainda que eles estivessem lá, como o próprio Miller, pelo aluguel barato. Ao chegar na cidade, procurou a tutela de Neal Adams. Adams era crítico e relutante, mas também era o grande nome dos quadrinhos dos anos 70.

Tudo mudou nos quadrinhos americanos em 1978. O mundo estava pronto; os quadrinhos sabiam disso. O acaso dera início a um realinhamento de astros que colocaria a série do Demolidor no colo de um jovem quadrinista. O jovem quadrinista certo: um ambicioso fã de gibis, preparado para aproveitar a oportunidade que passava à sua frente.

Daredevil #158: “A Grave Mistake” [“Erro Lapidar”]

Daredevil #158 é o primeiro gibi da série do Demolidor que foi desenhado por Frank Miller. Na história, Matt Murdock é sequestrado por The Unholy Three [Homens-Animais, na tradução nacional] e levado para um cemitério, onde o seu líder, Death-Stalker [Arauto da Morte] quer se vingar.

A história, como você deve ter percebido, é bem qualquer-coisa. Deixa claro, no entanto, o que McKenzie entendia por uma história mais adulta. O Arauto da Morte nada mais é do que a nova identidade de Exterminator [Eliminador], um vilão meio bobo criado por Stan Lee e Gene Colan em Daredevil #39. Em sua versão original, no entanto, ele é um vilão de ficção científica. McKenzie transforma ele em um vilão de aspecto fantasmagórico.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Do Eliminador ao Arauto da Morte
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Não é de se estranhar, portanto, que a história transcorra em um cemitério e seja colorida com o abundante uso de roxo. Se a história tem algum subtexto, é este: ela pode ser interpretada como uma analogia para o processo de transformação da série de gibi de super-heróis de ficção científica para gibi de super-heróis de terror gótico. O Arauto da Morte inclusive mata os Homens-Animais, livrando-se explicitamente das tralhas deixadas pelos moradores anteriores da casa.

O que não é normal é a quantidade de ideias narrativas por página que Miller já coloca em sua primeira edição. Logo no início da história, ele faz com que a ação transcorra pela frente do edifício Flatiron, o arranha-céus neo-renascentista que é uma marca de Nova Iorque.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Flatiron

Com isso, Miller está, já nessa primeira edição, tentando ancorar o seu desenho em Nova Iorque: o próprio edifício Flatiron é desenhado de forma fotorrealista.

Esse realismo, no entanto, tem os seus limites. Os elementos da cena são desenhados de forma realista; mas eles são selecionados pela sua utilidade para caracterizar o tom da história. E esse tom é evidentemente sombrio.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Noir

Por outro lado, Miller utiliza uma série de recursos para sugerir movimento. Alguns desses recursos são típicos da gramática dos quadrinhos:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Krigstein

Manter a “câmera” estática com pequenas alterações na posição dos elementos da imagem é um recurso criado por Bernard Krigstein em “Master Race”, clássica hq publicada em Impact #1:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Master Race
Meses depois, em Daredevil #164, Miller citaria essa
mesma história ao recontar a origem do Demolidor

Outros recursos, no entanto, foram roubados de outras mídias. 

Em The Illusion of Life: Disney Animation, Frank Thomas e Ollie Johnston [dois dos Nove Anciões da Disney] explicam os “12 princípios básicos” da animação: as regras que foram desenvolvidas e usadas na era de ouro do estúdio para que os seus desenhos animados fossem mais críveis.

Diversos desses princípios são relativos à naturalidade dos movimentos dos personagens. Desses, alguns podem ser aplicados a desenhos estáticos: um desenho animado, no final das contas, é uma série de imagens estáticas que, em sequência, transmitem a sensação de movimento; por lógica, as imagens estáticas podem ser desenhadas de forma a favorecer essa impressão. Esses truques, por sua vez, podem ser utilizados em um meio em que se apoia apenas naquelas imagens estáticas. 

De fato, é possível verificar 4 daqueles 12 princípios em operação nas páginas de Daredevil #158. Assim, as figuras desenhadas por Miller se encolhem em um quadrinho para se expandir no seguinte [Squash and Stretch]:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Squash and Stretch
O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Squash and Stretch

Iniciam um movimento indo na direção contrária daquela na qual ele será concluído [Antecipation]:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Antecipation
O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Antecipation

Os personagens são desenhados de forma a dar ênfase à sua posição mais extrema no início e no final do movimento [Slow In and Slow Out]:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Slow in and Slow out

É, no que é o recurso cujo uso é mais frequente, os movimentos sugerem arcos [Arcs]. Logo na segunda página existe um exemplo particularmente virtuoso desse recurso: Miller usa a sequência de Fibonacci para sugerir o arco no movimento no centro da cena e, ao mesmo tempo, compô-la com diversos outros elementos dispostos de forma harmoniosa.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Arcos
O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Arcos

Não é tão difícil fazer o link entre essas técnicas e Miller. Ainda que The Illusion of Life somente tenha sido publicado em 1981, o livro apenas explicita os princípios que já eram seguidos. E mesmo que ele não tenha aprendido a utilizá-las estudando desenhos animados, é possível que o tenha feito a partir do trabalho de algum dos diversos quadrinistas da Era de Prata que trabalharam no meio. 

Algumas dessas regras, inclusive, inclusive foram incorporadas em manuais como The Illusion of Life, mas dos quadrinhos. Existe uma versão para quadrinhos da regra Slow In and Slow Out, por exemplo, em How to Draw Comics the Marvel Way. O livro, escrito por Stan Lee e John Buscema, não faz qualquer referência à sua origem na animação.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - How to draw comics the Marvel Way

Por outro lado, Miller usa um dos recursos característicos da composição de página de Kirby para sugerir movimento. O recurso consiste em guiar os olhos do leitor pela página ao relacionar pela proximidade diferentes elementos. Nessa página, por exemplo, Kirby dispõe os elementos da página de forma a sugerir movimento de câmera:

Os três primeiros quadrinhos desta página seguem uma lógica parecida com a do Kirby: os elementos do desenho sugerem o movimento de câmera.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Entre o realismo, o uso de elementos da animação para sugerir movimento, e o uso de recursos dos quadrinhos para sugerir movimento de câmera, parece fácil concluir que Miller está com os olhos postos na narrativa cinematográfica. 

Ele até mesmo usa a grade de quadrinhos para favorecer essa impressão. Os quadrinhos de Miller nas páginas de Daredevil #158 invariavelmente tem o ângulo de 90 graus. Não suficiente, algumas filas suprimem a divisão em diferentes colunas. São formadas por apenas um quadrinho longo, deixando que a divisão em colunas seja sugerida pelas ações que transcorrem na cena. 

Em outras palavras: ele usa uma grade de 2 ou 3 colunas de quadrinhos na fila; ele apenas não a desenha, para não sacrificar o seu aspecto retangular-horizontal/cinematográfico e dar “espaço” para os personagens se mover.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - 3 colunas

No entanto, Miller, com apenas 22 anos, encarou a sua primeira grande oportunidade nos quadrinhos com uma ideia concreta do que ele queria fazer. Essa ideia era mais específica do que simplesmente “usar uma narrativa cinematográfica”.

Vamos voltar para o primeiro quadrinho da página 5 de Daredevil #158.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Noir

Percebam o cenário que Miller escolheu para desenhar esse establishing shot. Os detalhes urbanos, as sombras, as massas de cor uniforme, a fumaça. O esmero que Miller colocou nesse quadrinho, comparado com o seu descaso ao desenhar o cemitério em que transcorre a parte final da história, deixa claro que ele não queria desenhar uma história de terror. 

Quando Miller se ofereceu para desenhar o gibi do Demolidor, ele estava desiludido. Ele fora um jovem apaixonado por gibis de super-heróis que se tornou um leitor voraz de livros de Mickey Spillane, Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Apesar de seus esforços, no entanto, não conseguira emplacar uma hq “puramente” policial. O gênero, no final das contas, saíra de moda nos quadrinhos, com uma forcinha do CCA, ainda nos anos 50. 

O Demolidor, no entanto, oferecia uma possibilidade. Ele era, no final das contas, o herói cego: a sua característica definidora era uma deficiência de caráter bastante simbólico para um meio visual. E personagens definidos por uma falha são a matéria prima do noir. 

Quando procurou Mary Jo Duffy, a sua amiga e editora da série, para se oferecer para o cargo de desenhista de Daredevil, era isso que Miller tinha em mente. Ele queria que Daredevil fosse um filme policial.

Aquele quadrinho de Daredevil #158 é uma prova disso. A sua narrativa é cinematográfica, e Miller pretere os elementos de terror gótico do roteiro de McKenzie em favor daqueles mais urbanos e noir.

Esse, no entanto, foi apenas o seu ponto de partida. Uma vez que Miller se tornou desenhista e escritor da série, essa ideia foi progressivamente substituída por outra ainda melhor.

Miller se deu conta de que os quadrinhos estavam preparados para ser muito mais do que uma adaptação em papel de um tipo de filme.

Capítulo 2: O Homem sem Medo e seus símbolos

“A triste verdade é que a verdadeira vida do homem consiste
em um complexo de oposições inexoráveis — dia e noite,
nascimento e morte, alegria e miséria, bem e mal.
Nós não sabemos qual vai prevalecer sobre o outro,
se o bem vai superar o mal, se a alegria vai superar a dor.
A vida é um campo de batalha. Sempre foi, sempre será;
e se não fosse, a existência iria acabar”.
–Carl G. Jung, O Homem e Seus Símbolos

Uma das características dos filmes noir é que os seus elementos não são necessariamente literais. Eles representam o estado mental do protagonista, ou aquele que o autor quer sugerir ao espectador. A imagem está cheia de sobras; talvez de fato elas estejam lá; o certo é que alguém está enxergando-as.

Esse é um dos sentidos em que o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson pode ser considerado noir. Os desenhos não estão lá para representar a realidade. Estão lá para sugerir algo, de forma mais ou menos sutil.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Garrafa

Por exemplo, nessa página de Daredevil #181, a garrafa foi desenhada de forma evidentemente desproporcional: mais parece um galão de água. 

Isso, no entanto, tem um evidente propósito narrativo: ela está posicionada no canto superior esquerdo da página, que é onde o leitor começa a leitura. Assim, o seu tamanho desproporcional faz com que ela influencie a interpretação do leitor para o resto da página. Ela não é coerente com a realidade, mas com a importância da bebida no comportamento do Mercenário naquele momento.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Dentes

Da mesma forma, no primeiro quadrinho de Daredevil #184, a boca do personagem é tão desproporcional em relação ao garfo que esse mais parece um palito. Ela também está cheia de dentes. Não contei quanto eles são, mas apostaria que isso não corresponde a uma arcada dentária humana normal. Assim, no entanto, Miller e Janson sugerem que o personagem é um predador. 

Por outro lado, entre os exemplos menos sutis, temos a cela do Mercenário conforme ela aparece em Daredevil #181. Perceba como ela não tem paredes, banheiro, cama, nada: apenas grades. Isso é assim porque ela é apresentada conforme o Mercenário a enxerga: como uma jaula.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Cela

Consigo imaginar três motivos para que isso seja assim. Em uma ordem de mais a menos cínico, o primeiro motivo seria a limitação técnica do próprio Miller. Pra ficar nos dois exemplos mais evidentes: as suas figuras humanas frequentemente parecem meio estranhas; a perspectiva também não é lá grandes coisas. Relativizar a importância do realismo do desenho pode ser uma forma de driblar esse problema.

O segundo é relativo às possibilidades do meio. Os pontos fortes e fracos dos quadrinhos e do cinema não são os mesmos. Fazer de uma hq um filme, portanto, é abrir mão dos recursos daquela linguagem em troca… das limitações da segunda.

O exemplo mais claro disso no caso do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é a grade de quadrinhos. De início, conforme deu pra ver no exemplo de Daredevil #158, Miller tenta usar quadrinhos retangulares-horizontais com o objetivo de ser mais cinematográfico.

Com o passar das edições, Miller mantém os quadrinhos retangulares, mas agora na orientação vertical. Em algumas edições [exemplos: Daredevil #172 e 178], quase todos os establishing shots são estreitos e verticais. Com isso, Miller ele reforça a verticalidade da skyline nova-iorquina: ele está transpondo os retângulos que formam a cidade para a página.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Retângulos

É um exemplo de como Miller utiliza a janela através da qual o leitor percebe o mundo em que transcorre a história de uma forma que não está ao alcance de um cineasta. 

O terceiro motivo está relacionado com as possibilidades do próprio personagem. De todos os heróis dos quadrinhos, o Demolidor é o que interage com o mundo de forma mais explicitamente subjetiva. O Demolidor não enxerga; ele “cria” a sua realidade mentalmente, a partir da cacofonia de estímulos que os seus demais sentidos captam. Ele percebe a mudança na direção do vento, escuta batimentos cardíacos, sente cheiro de suor e conclui: alguém vai me dar um soco.

As histórias nas quais ele é perde o controle sobre os seus poderes [ao redor de Daredevil #177, depois de novo no #187] abordam isso de forma mais clara. Como o seu mentor, Stick, costuma enfatizar, a verdadeira causa do transtorno é mental. O universo se torna um caos de estímulos contraditórios porque o Demolidor perdeu a disciplina necessária para dar-lhes significado. Ele precisa, parafraseando o que o próprio Miller escreveria anos depois em O Cavaleiro das Trevas, forçar o mundo a fazer sentido.

Isso, por sua vez, transforma o Demolidor em um herói inusitado: o super-Expressionista. 

O Expressionismo, se vocês me permitem o didatismo, é um movimento artístico do início do século passado que, em oposição ao Impressionismo, apresenta o mundo em uma perspectiva puramente subjetiva. A ênfase não está na realidade objetiva, mas na experiência subjetiva dessa realidade.

No livro Art: A New History, Paul Johnson descreve o Expressionismo de uma forma que torna a relação disso com o Demolidor mais perceptível:

“Essa forma de pintura inverte o processo normal, no qual o olho vê, a mente registra e instrui as mãos para desenhar ou pintar. No Expressionismo, entendido de forma adequada, a mente concebe, instrui a mão, e então o olho enxerga e corrige”.

No cinema, são colocados sob o guarda-chuva do expressionismo cineastas como Fritz Lang, Robert Wiene e F. W. Murnau. Os seus filmes, por sua vez, são uma grande influência do cinema noir. O caminho que vai de O Grito a Daredevil #158, portanto, é menor do que parece. 

Miller deve tê-lo recorrido, percebido a sua relação específica com o Demolidor e agido de forma correspondente. 

Em The History of Art, E. H. Gombrich cita uma carta de Van Gogh [um dos maiores pintores expressionistas] em que esse descreve o seu processo para terminar um retrato depois de pintá-lo “do jeito certo”. Diz Van Gogh:

“Eu exagero a cor certa do cabelo, uso laranja, cromo, verde limão, e atrás da cabeça eu não pinto a parede trivial da sala, mas o Infinito. Faço um cenário simples a partir do azul mais intenso e rico que a paleta pode fornecer. A cabeça loira e luminosa se sobressai do cenário azul forte misteriosamente, como uma estrela no céu. O público, meu amigo, não vai ver nada além de caricatura nesse exagero, mas porque isso nos importaria?”.

As palavras de Van Gogh se revelariam proféticas. Miller faz exatamente isso, mas em versão quadrinhos [mass media de reprodução industrial], e, na sua recente queda em desgraça, chacais passaram a acusá-lo exatamente de caricato.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - O Grito
O Grito, de Edvard Munch [fonte]
O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - O Profeta
O Profeta, de Emil Nolde [fonte]
O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Ben Urich
Ben Urich, gibi de Frank Miller e Klaus Janson

A partir de tudo isso, quero te convencer do seguinte: apesar de ser conhecido como um gibi realista, o Demolidor de Frank Miller é Klaus Janson é surpreendentemente pouco literal.

Isso, por sua vez, é um convite à interpretação. Se a hq é contada desde um ponto de vista subjetivo, para entendê-la é preciso descobrir até que ponto o que ela narra tem um papel simbólico. 

Se você embarcar nessa jornada, vai descobrir que o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é uma hq bastante mais complexa do que aparenta.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Monstro
SPOILER ALERT
Esse monstro não existe

Miller, com frequência, contrasta personagens de uma história com o objetivo de caracterizá-los. Assim, uma boa forma de entendê-los [por tabela, a história também] é observando como eles se relacionam. E, para fazer isso, o melhor ponto de partida é comparar a principal criação de Miller durante a sua fase na revista, Elektra, com os outros dois personagens que formam o triângulo que está no centro da hq: Demolidor e Mercenário.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Daredevil #181

No início cronológico de sua história, o Demolidor e a Elektra são personagens parecidos. Os dois são amantes, atléticos, inteligentes, perdidamente apaixonados e movidos pela busca por emoções. 

No que é apenas um das dezenas de twists que Miller espalha pela sua saga, o ápice de sua semelhança entre os dois está no fato que coloca Elektra no caminho que metaforicamente tira ela de seus braços: a trágica morte do seu pai.

O pai, comumente, representa a ordem. Por isso que, nas fábulas de cavaleiros, reinos que enfrentam problemas costumam ser liderados por reis moribundos: eles são a personificação da ordem naquela sociedade. É de esperar, portanto, que o pai do Demolidor e o pai da Elektra sejam figuras que nos informem a visão que esses personagens tem da ordem social.

No caso do Demolidor, Jack Murdock certamente é apresentado como a autoridade suprema na vida de seu filho: deseja que ele se torne um profissional respeitado [ou seja, se submeta à ordem] e não um arruaceiro [ou seja, não se submeta à ordem], e direciona a vida de seu filho nesse sentido. 

No entanto, ainda que a sua morte tenha sido injusta, não se pode ignorar que Jack era um homem falho. Isso coloca o Demolidor em uma posição única nos quadrinhos americanos. Ainda que existam vários heróis órfãos, eles costumam ser filhos de figuras paternas idealizadas como Ben Parker, Jor-El e Thomas Wayne.

É por conta dessa falha, no entanto, que o Demolidor conhece a existência do lado tirânico da autoridade. Conforme descobrimos de forma bastante explícita em Daredevil #191, ele decidiu se tornar um advogado por ter aprendido que o exercício concreto da autoridade por uma pessoa sobre a outra precisa ser mediado para não ser tirânico. Por ter aprendido, em outras palavras, que as pessoas precisam estar sujeitas a regras externas e abstrata.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Pai

Essa, inclusive, é a pedra de toque de sua atuação como advogado. Os casos retratados no gibi invariavelmente envolvem o exercício injusto de uma autoridade de uma pessoa em posição de superioridade sobre outra que lhe é inferior na hierarquia.

“Child’s Play”, a história publicada em Daredevil #183 e 184, parece ter sido escrita para ilustrar esse ponto. Nela, o Demolidor precisa impedir que o Justiceiro assassine Hogman, um traficante que vende drogas para criança, levando uma delas à morte. Difícil argumentar que exista alguém que merece morrer mais do que um traficante de drogas que causam a morte de crianças.

O ponto, no entanto, não é esse: o Demolidor precisa evitar que o Justiceiro exerça as próprias razões e atue de forma ilimitada. Ele precisa garantir o império da lei — inclusive para evitar que o irmão da vítima de Hogman se corrompa, tornando-se ele mesmo um Justiceiro.

A relação entre Elektra e a morte de seu pai está no lado oposto do espectro. Ainda que ele também tenha sido assassinado, foi vítima de um erro da polícia. E Elektra amava ele de forma incondicional e irrestrita.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson
O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Morte do pai de Elektra

Assim, antes de vê-lo morrer, Elektra não aprendeu a lição que Jack involuntariamente ensinara ao seu filho: a de que o exercício concreto da autoridade nunca é inocente. Ela aprendeu a lição contrária: a morte do rei bondoso foi consequência da inépcia da da autoridade legítima. É por isso que ela abandona o curso de Direito: para ela, agora toda autoridade é tirânica. Deus está morto, e o mundo real é um grande cada um por si.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Elektra desiste

Essa é a posição representada pelo Mercenário. Ele não acredita na existência de qualquer limite válido para o exercício da autoridade que não seja a sua própria vontade. Ele é o anti-Demolidor: em Daredevil #181, Miller inclusive lhe reduz a uma sombra do herói. A diferença é que o Mercenário não irradia ondas de radar, mas está no centro de círculos concêntricos.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Anti-Demolidor

A assimilação de Elektra pela posição do Mercenário se concretizaria através de um paradoxo interessante [e nada freudiano]: através de sua submissão à organização do Rei do Crime. Ou seja, a negação da existência de uma autoridade que não seja a própria vontade leva à submissão a uma autoridade tirânica.

Essa  dinâmica é um dos motores do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson. Diante desse fato, resta uma pergunta: o que a morte de Elektra significa? 

Elektra pode ser interpretada como um analogia para a própria humanidade: ela é aquela que deve ser salva pelo herói. Em Daredevil #181, ela reconhece Foggy Nelson, o eterno melhor amigo de Matt. Ao fazê-lo, contraria o Rei do Crime, que havia ordenado a sua morte, e decide poupá-lo. É a resolução da dinâmica: ela não será totalmente corrompida e não se tornará o novo Mercenário.

Imediatamente ela é assassinada, de uma forma que mais parece um estupro, precisamente nas mãos do Mercenário.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - A Morte de Elektra

O que Miller está dizendo com isso? Que a humanidade é irredimível? Que estamos condenados a nos tornar tiranos ou escravos?

Isso tudo já seria suficiente para fazer do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson uma hq de super-heróis incrivelmente ambiciosa. A dupla, no entanto, foi além: a dinâmica que move a história não é óbvia e binária. 

Para Miller, não existe hierarquia e ordem inocente. Até a promotora de “Child’s Play”, a história que foi escrita para mostrar a importância da aplicação das regras, não está preocupada com a verdade, mas com a sua carreira. Ou seja, com o seu papel na hierarquia.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Promotora

Isso, por sua vez, também é verdade em relação ao Demolidor. O Mercenário é superior ao herói da hq em pelo menos um aspecto: ele não está mentindo pra ele mesmo. O Demolidor é frequentemente incoerente, disfuncional e tirânico como o seu arqui-inimigo.

A história secundária que inicia em Daredevil #183 é a que melhor explicita isso. Depois da morte de Elektra, Matt pede a sua namorada, Heather, em casamento. Se dispõe, ainda, a “salvá-la”: ela sucedeu o próprio pai na presidência da empresa familiar, apenas para se envolver com negócios ilegais ao ser manipulada por um executivo ambicioso. Negócios que o Demolidor decide investigar e revelar, levando a empresa à ruína.

Matt sabe que esse é o resultado inevitável de sua ação. Ele deseja isso: dessa forma, ela precisará ser salva por ele. A salvação que ele propõe é a submissão total dela a ele. Não dá pra saber o que é mais terrível: a estratégia ou o fato dele não perceber que a está colocando em prática. Completamente cego à imoralidade de suas ações, como o Demolidor poderia ser considerado um herói?

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Heather
Essa página é fantástica.

O Demolidor sabe que o seu agir levará Heather à ruína. Ele deseja isso: dessa forma, ela precisará ser salva por ele. A salvação que ele propõe é a submissão total dela a ele. Não dá pra saber o que é mais terrível: a estratégia ou o fato dele não perceber que a está colocando em prática. Completamente cego à imoralidade de suas ações, como o Demolidor poderia ser considerado um herói?

Depois dessa história, é impossível ignorar a forma pela Miller caracterizou o personagem nos gibis anteriores da série. Matt Murdock não é moralmente confuso apenas em sua relação com a Heather. Ele é moralmente confuso em relação à sua própria existência. É um advogado obcecado com as leis como mecanismo de impedir que as pessoas imponham a sua vontade sobre os outros… que atua como um vigilante fora da lei que se diverte espancando criminosos na madrugada. Ele é um caubói que acredita que caubóis não devem existir. 

Miller constantemente chama a atenção do leitor para essa contradição. O Demolidor se comporta de forma atrevida, debochada e juvenil:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Bigode de leite

Turk, o capanga pé rapado com mania de grandeza, frequentemente parece uma paródia do próprio Demolidor:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Grotto
Ele tem até um sidekick gordinho, Grotto

Esse comportamento é apresentado como a verdadeira natureza do personagem. A composição de página sugere isso: o Demolidor se movimenta através de saltos acrobáticos circulares através dos retângulos que formam os quadrinhos e os prédios. Como Demolidor, ele é livre. Não é de se estranhar que o jovem Matt tenha se tornado o Demolidor: estranho é que ele tenha se tornado advogado. 

De novo, Daredevil #181 trata dessa contradição de forma exemplar. No início da hq, o Mercenário se delicia com a graça de que o Demolidor seja um advogado cego. Existe, é claro, o absurdo intrínseco à situação; mas também existe a ironia de que Matt não se dá conta de que, como super-herói, ele é essencialmente um fora da lei. Ele é cego em relação à sua própria vida. 

O Mercenário deixa de acreditar que o Demolidor e o advogado são a mesma pessoa quando é atacado pelo primeiro enquanto observa o segundo estudando. Ele já estava em dúvida: um niilista como o Mercenário não poderia acreditar em uma ironia como essa, tão perfeita que pressupõe a existência de uma lógica no universo. 

Ele precisa apenas de um empurrão, que Miller dá de forma extremamente irônica. O Matt que está estudando é um boneco [“dummy”]. 

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Dummy

Para a ironia ficar explícita, ele está ouvindo um trecho do Keith case [United States v. U.S. District Court, 407 U.S. 297, para aqueles que querem a referência específica].

Trata-se de um landmark case da Suprema Corte americana, em que foi decidido, de forma unânime, que o governo deveria obter um mandado para promover a vigilância eletrônica mesmo quando ela fosse destinada a investigar grupos terroristas internos [no caso específico, o White Panther Party, organização de extrema esquerda associada aos Black Panthers, mas formada por homens brancos]. O caso foi julgado em 1972: é o mesmo ano do escândalo de Watergate, que tem em seu centro precisamente escutas ilegais. 

Em outras palavras, enquanto o “dummy” Matt estuda as limitações impostas à polícia para investigar organizações terroristas, o Demolidor troca socos com o Mercenário. 

Miller, não suficiente, não trata essa contradição como simples hipocrisia. O Demolidor pode ser cego, mas talvez seja necessário: a hq ressalta que as limitações que ele se auto-impõe, mesmo que sejam ilusórias, lhe tornam ineficiente. 

Um dos coadjuvantes criados por Miller para a  série é o detetive Manolis. Ele é um homem cansado e descrente, um comissário Gordon que desistiu. Ele atribui o seu fracasso às limitações inerentes ao sistema. Ao final de Daredevil #169, depois que o Demolidor salva o Mercenário faz um belo discurso, é Manolis que aponta para a sombra que ele projeta: o Mercenário voltará a matar.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Sombras

Assim, a caracterização do Demolidor nos deixa em um lugar pior do que aquele em que estávamos depois da morte de Elektra. Não é só que a humanidade seja irredimível e que estejamos condenados a nos tornar tiranos ou escravos: é que o nosso herói é ou hipócrita, ou maluco; certamente insuficiente. 

Existiria alguma saída? Em outras palavras: o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é um gibi niilista?

Daredevil #190, “Ressurrection” [“Ressurreição”]

“Ressurection”, a história de Daredevil #190, é outra pequena jóia da Marvel.

Nessa história, o corpo de Elektra é exumado pelos ninjas do tentáculo, que pretendem ressuscitá-la e arregimentá-la para o seu clã. O Demolidor, evidentemente, tenta impedi-los. Para isso, conta com a ajuda de Stick e seus atuais discípulos — outro clã ninja que tem no Tentáculo o seu arqui-inimigo. 

Durante o enfrentamento entre os grupos, o Demolidor abandona a luta para, ele mesmo, tentar ressuscitar a Elektra. Ele acredita não ter fracassando; o corpo de Elektra, no entanto, desaparece. 

No prólogo, a história faz um acréscimo que à vida de Elektra pós-morte do pai, pré-volta para Nova Iorque. Nele, aprendemos que Elektra procurou Stick e seu clã para desenvolver as suas habilidades marciais ao máximo. 

Ela foi acolhida por Stick em seu clã, contra a vontade de seus discípulos e apesar de ter falhado o teste inicial: escalar uma montanha impossível de ser escalada. Durante o seu treinamento, Elektra se revela uma discípula tão eficiente quanto brutal. Stick, no entanto, percebe o seu erro e a expulsa do clã: ela está cheia de “dor e ódio”, e apenas aprendeu a usá-los.

Isso, é claro, coloca Elektra na rota do Tentáculo. O clã ninja do mal aceita Elektra e já, em sua primeira missão, faz com que ela assassine o sensei que lhe encaminhara para treinar sob as ordens de Stick. Ela então se torna parte do Tentáculo, e depois a mercenária que nós aprendemos a amar durante a saga de Miller/Janson. 

Isso, por sua vez, rima com o epílogo de Daredevil #190: Elektra está na montanha impossível de ser escalada; termina de escalá-la e ressurge, purificada, em seu topo.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Elektra

Ao contrário do que o nerdismo de quadrinhos costuma sustentar, a morte/ressurreição de um personagem não é, necessariamente, um truque caça-níquel. Muito pelo contrário: não é por acaso que isso, de forma mais ou menos simbólica, seja uma etapa da Jornada do Herói. 

A Jornada do Herói, por sua vez, é o mapa que precisamos para entender como Daredevil #190 levou o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson do niilismo da morte de Elektra nas mãos do Mercenário à sua redenção, bem como o seu significado. Assim como Jonas foi engolido por uma baleia e Neo levou meia dúzia de tiros no peito antes de virar The One, Elektra enfrentou a encarnação do seu monstro pessoal para, renascer como heroína.

Isso, é claro, coloca Elektra como protagonista da jornada e faz do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson um Mad Max: A Estrada da Fúria das hqs de super-heróis.

É especialmente claro em Daredevil #190 que uma as formas que a dupla Miller/Janson encontrou de desafiar as expectativas do leitor foi inverter os papéis tradicionalmente atribuídos a homens e mulheres em quadrinhos de super-heróis. 

Assim, na introdução e no prólogo de Daredevil #190 o rosto de Elektra é inspirado no da modelo e atriz Bo Derek [Matt Murdock, diga-se de passagem, é a cara do Robert Redford]. O seu corpo, no entanto, ainda é o de Lysa Lyon. Lyon é uma fisiculturista dos anos 80 que foi modelo do fotógrafo Robert Mapplethorpe. Ou seja, ela é sexy, porém musculosa e apresentada do ponto de vista de um artista homoerótico.

De fato, um Frank Miller adolescente elogiou a Marvel por criar uma heroína que desafia o papel que era atribuído às mulheres nos gibis em uma carta que foi publicada na revista The Cat #3, em 1972.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Carta do Miller

Miller e Janson, no entanto, utilizam a Jornada do Herói em sua história: eles  apenas jogam com a sua apresentação concreta, mas sem desconsiderar o seu caráter simbólico. De fato, eles fazem isso inclusive de forma a utilizar o sentido desse caráter de forma coerente com o tema da história. 

Assim, o Demolidor purifica Elektra através da abnegação de seu amor. Ele coloca todo o sucesso de sua missão, para não falar da vida de seus companheiros, a risco diante da mínima chance de ressuscitá-la.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Isso, em primeiro lugar, é uma inversão de papéis. Como no exemplo de Matrix, o autossacrifício amoroso normalmente seria realizado por uma personagem feminina.

Em segundo lugar, é uma resolução para a trama de Heather. O Demolidor queria sacrificar a autonomia de sua noiva para poder salvá-la e, assim, salvar-se. Agora, é ele que se prostra em um sacrifício puramente altruísta.

Finalmente, isso dá um sentido para o próprio Demolidor.

Uma das palavras que se poderia usar para descrever a sua hipocrisia arruaceira juvenil seria “egoísmo”. Ele sistematicamente destrói o bar da Josie, uma pessoa alheia e concreta, para “salvar” um valor abstrato [o império da lei]. Ao prostrar-se pela salvação de Elektra, ele não está mais salvando o mundo: está salvando alguém. Para isso, não está mais colocando terceiros em risco: está se arriscando ele mesmo.

Esse, no entanto, só é um aspecto incidental da história. Como eu disse, a protagonista da jornada é a Elektra, e é a sua morte e ressurreição que são sentido ao Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson.

Talvez por isso que “Ressurreição”, em seu prólogo e epílogo, utilize uma linguagem [tanto no texto quanto no desenho] quase que totalmente simbólica.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

As quatro primeiras e as quatro últimas páginas de Daredevil #190 são tão minimalistas e abstratas que praticamente não retratam nada. Isso porque Miller e Janson apostam que os leitores vão conseguir reconhecer nelas, talvez inconscientemente, três etapas da Jornada do Herói que estão entre a morte e a ressurreição do herói: a reconciliação com o pai; apoteose; a grande conquista.

A reconciliação com o pai [Atonement with the Father] é o momento da jornada em que o herói, bom, resolve o seu conflito com o seu pai. Isso não precisa ser necessariamente conciliatório [o herói pode derrotar o seu pai em uma luta, por exemplo], nem com quem é literalmente o pai do personagem [pode ser uma figura paterna, ou uma figura de autoridade]. 

Em ” Ressurreição”, Stick é evidentemente uma figura de autoridade — um pai substituto para Elektra. A história é de reconciliação entre os dois: a missão do Demolidor de dos demais discípulos de Stick é impedir que ela seja absorvida pelo Tentáculo, na direção do qual ela fora empurrada, originalmente, por Stick. 

No epílogo, a superação do obstáculo enfrentado por Elektra no curso da escalada da montanha impossível no início da história é um símbolo dessa reconciliação bem sucedida: a incapacidade de Elektra em fazê-lo no início da história é um símbolo da falha que leva Stick a expulsá-la do clã, ou seja, da dor e do ódio que ela sofre pela morte de seu verdadeiro pai.

A apoteose é o momento da jornada que o herói, depois de se reconciliar com o seu pai, atinge um patamar quase divino. É o seu ápice: o fim da escalada de uma montanha impossível de ser escalada é algo evidentemente apoteótico, a forma mais direta de se descrever alguém em seu ápice.

Finalmente, a grande conquista é o momento em que o herói atinge o objetivo de sua jornada. No caso de Elektra, o objetivo era livrar-se da dor e do ódio que ela sentia pela morte do seu pai; ou seja, purificar-se: o próprio Stick, ao expulsá-la, diz que ela não está “limpa”. É para representar isso que, no topo da montanha, Miller e Janson mostram que o uniforme de Elektra agora é branco [ou seja, puro].

A graça, no entanto, não é reconhecer quais foram as etapas da jornada que foram usadas em ” Ressurreição”. É entender a sua pertinência em relação aos temas da fase.

Parece evidente, assim, que o fim da jornada de Elektra envolveria a reconciliação com o pai: foi um desacerto com a figura paterna que definiu o seu conflito e o início de sua jornada. 

Mas, em O Herói das Mil Faces, Campbell define a reconciliação nos seguintes termos:

“Consiste em nada mais do que o abandono do monstro duplo autogerado — o dragão que se considera Deus [o superego] e o dragão que se considera o Pecado [o id reprimido]. Mas essa ação requer o abandono do apego ao próprio ego, e aí reside a dificuldade”.

O conflito que Elektra enfrenta ao longo da série é exatamente esse: o dragão que se considera Deus, o superego: o Demolidor; o dragão que se considera o Pecado, o id reprimido: o Mercenário.

Por outro lado, e ainda conforme Campbell,

“a dificuldade do encontro do herói com o seu pai é abrir a sua alma de tal forma que ele esteja pronto para entender como as tragédias doentias e malucas desse cosmos vasto e implacável são validadas pela majestade do Ser”.

E esse entendimento é a “grande recompensa” que Elektra alcança em “Ressurreição”. Ela se purifica da dor e do ódio decorrentes de sua recusa em aceitar a arbitrariedade da morte de seu pai.

Nada disso, espero que tenha se tornado evidente, é uma simples transposição. Miller e Janson aplicam a Jornada do Herói de forma a enfatizar o tema da hq: o conflito entre ordem e indivíduo, entre autoridade e liberdade. 

Esse conflito, como era de se esperar, aparece em Daredevil #190. O clã de Stick é formado por indivíduos com habilidades únicas; hoje em dia, são conhecidos como A Casta, mas não lembro de ter-lhes visto serem chamados assim nestas hqs. Aqui eles aparentemente nem tem um nome que os una. 

Eles se enfrentam, por outro lado, com um clã de ninjas perfeitamente intercambiáveis, cuja união produz um monstro de pura força bruta, Kirigi. Um clã que tem, naturalmente, um nome coletivo e coletivista: The Hand, A Mão, traduzido para o português como O Tentáculo.

Finalmente, Elektra, depois de ser ressuscitada, torna uma categoria específica de herói campbelliano: o herói-santo, aquele que renuncia ao mundo. 

De novo em O Herói das Mil Faces, e citando o Baghavad Gita, Campbell descreve o herói como santo assim:

“Dotado de entendimento puro, controlando o self com firmeza, renunciando ao som e a outros objetos, e abandonando o amor e o ódio; mergulhando na solidão, comendo pouco, controlando a fala, o corpo e a mente, dedicando-se sempre à meditação e à concentração, e cultivando a liberdade em relação às paixões; renunciando à presunção e ao poder, ao orgulho e à luxúria, à raiva e às posses; tranquilo no coração, livre de ego — ele se torna digno de se tornar um só com o imperecível”.

De novo, isso se encaixa com o tema da hq. O que o destino de Elektra nos mostra é que a solução para o dilema proposto pelo tema da hq é romper com os seus termos: Elektra não encontra a sua redenção ao aderir ao clã se Stick ou submeter-se às regras do Demolidor. Ela se redime ao libertar-se do ódio e da dor e isolar-se do mundo. 

Não é de se estranhar, portanto, que Miller tenha procurado Shooter para convencê-lo a manter Elektra apenas em duas mãos — e que tenha rompido com a editora quando ela desrespeitou esse acordo não escrito. No Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson, portanto, a redenção é possível. Mas ela é consequência de um processo possivelmente mortal, mas interno, individual e extra-mundo. 

Nem parece coisa de gibi.

Capítulo 3: O Homem sem Medo na Era da Reprodutibilidade Técnica

“A reprodutibilidade técnica do trabalho artístico muda
a relação das massas com a arte. A atitude extremamente
reacionária em relação à uma pintura do Picasso se
transforma em uma reação extremamente progressiva
em relação a um filme do Chaplin”.
–Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica

Mas não se engane: o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é um gibi. 

Uma parte da série sempre se manteve fiel à sua paternidade noir. Heather, Manolis, Ben Urich, a narração, em primeira pessoa e o narrador pouco confiável, a violência: nada disso ficaria fora de lugar em um livro de Raymond Chandler, Mickey Spillane ou Dashiell Hammett.

Mas eles convivem com outros elementos que foram copiados por Miller de grandes mestres dos quadrinhos. Elektra, a personagem que está no centro da hq, é um deles. Ela foi calcada em Sand Saref, o primeiro grande amor do Spirit de Will Eisner.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Sand Saref

É verdade que o próprio Demolidor lembra Spirit: os dois são heróis cujo comportamento é irônica e arrogantemente juvenil. Mas Elektra lembra Sand Saref de uma forma muito mais específica. Como Demolidor e Elektra, Spirit e Sand Saref estavam apaixonados e foram separados pela trágica morte de do pai de Saref. Por conta do crime, ela aversão à polícia [e, consequentemente, à ordem] e, finalmente, uma criminosa. Ela foi criada por Eisner no início dos anos 50. Não é por acaso que Miller a utilizou em sua adaptação de Spirit para o cinema.

Existem diversos outros elementos mais anedóticos que Miller trouxe das hqs de Eisner para o seu Demolidor. O primeiro deles quase que literalmente salta aos olhos: Spirit é a grande influência de Miller para desenhar a página de abertura dos gibis.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Segundo: dá para dizer que o expressionismo do desenho do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson tem nos gibis de Eisner um antecedente. Lembre-se, por exemplo, da chuva no início de Um Contrato com Deus: ela é um dilúvio que evidentemente reflete o estado mental do protagonista da história.

Três: a cidade. Como eu já mencionei lá em cima, já na primeira edição Miller insere o edifício Flatiron em sua história. Alguns outros marcos nova-iorquinos marcam presença, como a Canal Street Bridge e a West Side Elevated Highway [exatamente nessa página aí em cima]. Todos eles tem em comum uma coisa: foram construídos na primeira metade do século passado.

Dessa forma ele parece estar tentando reproduzir as características da Nova Iorque dos gibis de Eisner, cujas histórias tampouco transcorrem na cidade de aço e vidro. Miller, inclusive, faz questão de desenhar alguns detalhes arte-deco para ressaltar o aspecto da cidade.

É possível essa ideia [usar construções da Nova Iorque real] tenha a sua origem no Homem-Aranha de Ross Andru. Essa é uma de suas características:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Aranha do Ross Andru

E Miller era um fã do trabalho de Andru:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Carta do Miller
The Amazing Spider-man #169

A última característica talvez seja a mais surpreendente: o senso de humor. Miller, como Eisner, retrata os nova-iorquinos “normais” de sua história de forma cartunesca, tanto na aparência visual como no comportamento. Eles são moradores típicos, às custas dos quais ele faz algumas piadas afetuosas. Os cinéfilos de Daredevil #169 são um excelente exemplo disso. O meu favorito, no entanto, está em outra página da mesma edição:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Tailors

A alfaiataria é uma profissão típica dos imigrantes do leste europeu que foram parar em Nova Iorque no início do século passado [o pai de Stan Lee era um], e o comportamento do alfaiate dessa pequena gag, que você descobre que tenta empurrar roupas de veludo para todos os seus clientes, é evidentemente caricato.

Outra influência importante é a de Steve Ditko. Como os super-heróis autorais de Ditko, o Demolidor tem uma ideia complexa sobre a sociedade. Essa ideia não é a mesma, e Miller é mais irônico, mas nos dois casos os heróis são um superego do comportamento coletivo que racionaliza a sua função. O desprezo debochado que ele demonstra em relação à bandidagem mais ralé lembra The Creeper. 

E existem, é claro, a influência que se manifesta através da linguagem. Lá no início da resenha, comentei como, para sugerir movimento, Miller usa um recurso que Krigstein estabeleceu em “Master Race”. O recurso consiste em repetir o mesmo quadrinho com pequenas alterações em um de seus elementos, de forma a sugerir que ele está em movimento. 

Mas ele também faz isso com um propósito dramático, e não apenas para dar dinamicidade à ação. 

Em alguns momentos, o drama é sugerido pelo movimento. Um bom exemplo disso é essa cena: o quadrinho estático sugere o movimento frenético do Demolidor; mas o movimento frenético está lá para transmitir o seu nervosismo ao ser confrontado por Urich.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Krigstein

Em outros, no entanto, Miller deixa de usar a repetição de quadrinhos para sugerir movimento, e passa a fazê-lo para mostrar a sua ausência. O objetivo é fazer com que uma ação se prolongue pela percepção de tempo do leitor, de forma a destacar a sua importância dramática. É agônico.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Kurtzman

Nesse segundo caso, o recurso é uma versão mais sutil e elegante do slow motion de um filme. Mas ele não foi parar na caixa de ferramentas de Miller pela via do cinema. Ele vem dos quadrinhos. Mais especificamente, de “Corpse in the Injim”, clássica história de Harvey Kurtzman originalmente publicada em Two-Fisted Tales #25, em 1952.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Corpse in the Injim

Não é o único recurso que se tornaria uma marca de Miller, que ele utiliza em Daredevil e que tem a sua origem em gibis da EC. 

Miller não usa o texto de apoio apenas para transmitir informações objetivas de forma minimalista [“Enquanto isso”, “Em outro lugar”, etc]. Ele também os utiliza para apresentar textos em primeira pessoa, no lugar dos balões em forma de nuvem:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Ou “apenas” de forma elaborada e subjetiva:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Kirigi

Miller, é claro, se tornaria conhecido por esse recurso: ele costuma ser considerado como o responsável pela morte do balão de pensamento. Mas os gibis da EC, como aquela página de “Corpse in the Injim” lá em cima já mostra, usavam textos de apoio extensos e não objetivos com frequência.

O recurso, não suficiente, voltara à moda, por conta de gibis como o Pantera Negra de Dan McGregor e Billy Graham…

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Dan McGregor
“And All Our Past Decades Have Seen Revolutions!”
[Jungle Action #16, de 1975]

…e Shang-Shi, o Mestre do Kung-Fu, de Doug Moench e Paul Gulacy:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Doug Moench
“Rites of Courage, Fists of Death!”
[Master of Kung-fu #25, de 1975]

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson, no entanto, não vive só de influência dos quadrinhos americanos. 

Alguns quadrinhos da hq são desenhados sem fundo e sem bordas. Isso serve a dois propósitos. O primeiro deles é dar agilidade à ação: é mais fácil/rápido de ser um quadrinho sem cenário. Quando esse é o caso, o quadrinho costuma ser desenhado de uma forma mais rabiscada.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

O segundo propósito é consideravelmente mais complexo. É o caso dos quadrinhos sem fundo, ou com fundo minimalista, que são desenhados de forma ilustrativa.

Nesses casos, o acabamento do desenho é muito mais realista do que no resto do gibi. Neles, Miller quase cria um espaço extra-diegético: o quadrinho retrata um momento que não está na sequência de ações da história, mas que ilustram a reação psicológica de um personagem a essa sequência de ações. Fornece, assim, um filtro através do qual o leitor percebe o que foi narrados na página.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Nos dois casos, no entanto, se trata de um recurso típico de mangás. Não conheço o suficiente sobre mangás para especular em qual deles Miller aprendeu a usar o recurso. Mas ambos são usados por Goseki Kojima em Lobo Solitário, ainda que, no segundo caso, ele não exclua o quadrinho ilustrativo da sequência de ações narrada.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Goseki Kojima

É um bom momento para falar da arte-final de Klaus Janson. O trabalho de Janson, por outro lado, não é essencial apenas para funcionamento desse recurso. Ele é um dos grandes responsáveis pela cara de gibi dessa fase da série do Demolidor. 

No início da série, ele é apenas um de seus arte-finalistas. Já a partir da edição #173, no entanto, ele recebe créditos pela “finished art”. Isso deixa claro que ele era uma parte essencial da apresentação gráfica da série. Miller desenha apenas o rascunho da página [“breakdown art”, conforme créditos de Daredevil #173], que Janson finaliza [muitas vezes] colore. 

Existem semelhanças nas biografias de Janson e Miller. Ainda que Janson tenha nascido na Alemanha [Coburg, mais especificamente] em 1952, a sua família se mudou para Bridgeport [Connecticut] em 1957. Miller nasceu em 1957; Montpellier não é a sua cidade natal: ele nasceu em Olney, em Maryland. Os dois se mudaram para Nova Iorque na mesma época: Janson em 1973; Miller em 1976. Os dois fizeram isso com o mesmo objetivo: trabalhar com quadrinhos. 

O primeiro trabalho de Janson com quadrinhos foi corrigindo e aplicando zip-a-tone nos desenhos dos gibis de monstro da Marvel dos anos 50, para assim prepará-los para reedição. 

Talvez essa seja a origem de sua habilidade do recurso. O fato é que Janson faz uso extensivo e nada sutil de retícula na arte-final da hq. São poucas páginas que não usam esse recurso. Até mesmo no prólogo e no epílogo de Daredevil #190, quando você poderia supor que o seu uso seria evitado para favorecer o simbolismo da cena, Janson desenha alguns quadrinhos quase que apenas com retícula.

Outra característica do trabalho de Janson é o uso de um traço grosseiro. Ele desenha com poucas linhas, facilmente perceptíveis pela sua espessura. Se, por um lado, elas fazem com que o desenho seja extremamente cinético [menos linhas é igual a menos estaticidade], também é verdade que elas deixam o desenho com um aspecto tosco e apressado.

O que existe aqui é uma ideia.

No caso dos gibis anteriores aos anos 70, essa aparência era resultado de uma série de limitações. O papel e a impressão barata, a colorização limitada, a produção que prioriza a quantidade sobre a qualidade… O resultado eram páginas que apresentavam textura pontilhada e traços que pareciam lançados no papel por um arte-finalista apressado [provavelmente porque esse de fato era o caso]. Uma aparência que Janson tenta reproduzir em Daredevil.

Esse é o grande problema de Daredevil by Frank Miller & Klaus Jason Omnibus, a edição que eu li para escrever essa resenha. 

É verdade que não existe o que se fazer: a única alternativa seria caçar os gibis individuais originalmente publicados. Nesse contexto, o omnibus é uma opção prática e comparativamente falando barata. 

Mas o papel de alta qualidade e a impressão moderna, com a consequente digitalização das cores, descaracterizam a proposta visual original da hq que operava com base na estética do papel jornal e da impressão pontilhada. As cores se tornam muito mais vibrantes. O resultado… bom, talvez você tenha percebido que eu não consegui reunir a coragem necessária para usar a versão do omnibus em umas quantas páginas ao longo da resenha.

O omnibus ignora, portanto, que a aparência visual do Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson era resultado de um plano. Esse plano envolve dois fatores diferentes. Por um lado, estão os recursos narrativos sofisticados que Miller usou para desenhar as suas páginas. Por outro, estão as limitações às quais o meio estava sujeito que Miller e Janson reivindicaram como um elemento de sua estética.

Esse plano visual não estava sequer definido quando Miller começou a desenhar a série em Daredevil #158. Mas ele dominava o trabalho da dupla totalmente quando ela produziu o seu epílogo: Daredevil #191.

Naturalmente, esse plano não chegou lá sozinho.

Daredevil #191, “Roulette” [“Roleta-russa”]

Daredevil #191 parece um gibi muito muito diferente dos que lhe antecederam. A própria capa, em que as formas da cidade são sugeridas pela hachura, lembra muito mais Ronin [o próximo trabalho de Miller] do que as capas anteriores da série:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Daredevil #191

Abrindo o gibi, você logo percebe que o arte-finalista dessa edição é Terry Austin. O traço de Austin, par habitual de John Byrne, não é nem um pouco rabiscado. Ao contrário, é firme e bem definido: ele é quase um anti-Klaus Janson.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Roulette
Essa página é o “Aujourd’hui, maman est morte” dos quadrinhos? Talvez.
[É sim]

A pesar disso, no entanto, Daredevil #191 opera com base na mesma lógica que Miller e Janson aplicaram ao longo de sua fase na revista.

Em “Roleta-russa”, o Demolidor visita um Mercenário vegetativo no hospital para confessar-lhe um dilema pessoal. Depois de se deparar com a história de uma criança fascinada pelo Demolidor, ele não sabe sua atuação como super-herói causa mais bem do que mal.

A história sugere que aquela visita não é literal: o Demolidor esteja apenas imaginando a conversa com o Mercenário. Essa visita é uma encenação imaginária de sua confissão. 

Isso nos é sugerido de pelo menos duas formas.

A primeira delas é relativa à forma. Assim, o Demolidor não fala com o Mercenário. O texto da história, um monólogo, é inteiramente apresentado através de textos de apoio. Esse é o recurso que Miller utilizou, ao longo da série, para apresentar reflexões internas. O desenho, ainda, nos apresenta dois personagens flutuando no nada: não existe uma sala de hospital desenhada para ancorá-los na realidade.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

A arte-final, finalmente, dá para o gibi inteiro o aspecto dos quadrinhos ilustrativos de fundo minimalista que apareceram ao longo das edições finalizadas por Janson. Esses quadrinhos, como eu comentei no capítulo anterior dessa resenha, mostravam algo que estava aparentemente fora da sequência de ações retratada na página. Em Daredevil #191, o recurso é utilizado exatamente para evocar essa externalidade.

A segunda forma é relativa ao próprio conteúdo da história. As ações narradas parecem figuras de linguagem que expressam o dilema interno enfrentado pelo Demolidor. Assim, a paralisia moral do Demolidor [não sabe se erra por ser um herói ou se vai errar ao deixar de sê-lo] é contrastada com a paralisia física do Mercenário. O Demolidor tem dúvidas sobre o seu heroísmo e se imagina praticando uma ação não muito heróica: praticando roleta-russa com um rival inválido. 

Isso tudo não é apenas um floreio narrativo. É uma opção que se justifica pela própria natureza da história.

Roleta-russa é um epilogo, um. Comentário final à narrativa que tem por objetivo que o público compreenda o seu significado. No melhor estilo do teatro clássico, esse epilogo é contado pelo protagonista da história diretamente ao seu publico. Mesmo que o Demolidor não saiba disso, nos, os leitores, estamos na posição do Mercenario: quietos, imóveis, escutando uma confissão… com uma arma apontada para nossa cabeça.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Em sua confissão, o Demolidor conta a história de sua relação com Chuckie Jurgens. Chuckie é um garoto que ele conheceu como Matt Murdock e que acredita ser o Demolidor. Ele é filho, no entanto, de Hank Jurgens, um homem extremamente autoritário. Matt descobre que Chuckie se identifica com o Demolidor porque, nas suas palavras, ele é “excelente! Quando alguém entra no teu caminho, POW! Ninguém te diz o que fazer”.

Ou seja, ele é fascinado pelo Demolidor como uma versão de colant colorido de seu próprio pai. Para Chuckie, portanto, a autoridade não tem outro fundamento que não seja a capacidade de impor-se: ele é o Demolidor sem a hipocrisia da fé na necessidade da lei.

O Demolidor, finalmente, descobre que Hank é um chantagista. Se vê, na oportunidade, obrigado a prendê-lo na frente de Chuckie. Chuckie, por sua vez, não é capaz de compreender a prisão como o uso legítimo da força. Para ele, essa é a negação daquele que é a autoridade em sua vida. Consequentemente, é a negação da existência de qualquer ordem. O empurrão necessário para empurrá-lo para o caos: Chuckie passa a se identificar com o Mercenário.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Como eu comentei no segundo capítulo dessa resenha, o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é um estudo sobre a autoridade. Uma das formas pelas quais esse tema é explorado é através da relação entre pais e filhos — entre uma autoridades e seu subordinado.

É em Daredevil #191 que descobrimos que o pai de Matt, Jack Murdock, era uma autoridade falha: foi isso que fez com que ele se dedicasse ao Direito [a falha de seu pai lhe levou à conclusão de que todos precisam submeter-se a uma autoridade externa, a lei]. A morte injusta de Jack fez de Matt um vigilante hipócrita [hipocrisia essa que ele descobre, precisamente, em “Roleta-russa”].

O pai de Elektra, por outro lado, era uma autoridade justa que morreu por uma falha de uma  autoridade legítima. Isso coloca Elektra no caminho daqueles que não acreditam na existência de qualquer autoridade legítima que não seja a própria vontade; o caminho do Mercenário.

Com Chuckie, esse círculo se fecha. O pai de Chuckie era uma autoridade injusta que foi subjugada por outra autoridade injusta. Assim como Elektra, isso empurra ele em direção ao Mercenário.

Como se vê, no Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson não existem muitas alternativas: toda autoridade deve ser encarada com desconfiança e a única via de escape é individual e interna.

Uma parte disso lembra às obras de Ernest Hemingway. Os dois, Miller e Hemingway, tratam o confronto com o mundo como inevitável — mas também como uma forma de dar sentido à própria existência. Existe uma diferença entre os dois sobre a parte do mundo que deve ser confrontada. Para Miller, pelo menos no gibi do Demolidor, é a parte da ordem; para Hemingway, costuma ser o caos [normalmente representado pela natureza].

Nos dois casos, no entanto, essa busca pelo próprio significado é central. Da mesma forma, nos dois casos esse processo é interno [no caso de Hemingway, estóico: “the dignity of movement of an ice-berg is due to only one-eight of it being above water”, como ele diz em Morte ao Entardecer] e individual. Nenhum dos dois parece acreditar na possibilidade de uma redenção coletiva.

“Roleta-russa” acena nessa direção de uma forma especialmente pertinente para os quadrinhos.

Chuckie desenvolveu a sua obsessão pelo Demolidor assistindo a gravação em vídeo de uma luta entre o Demolidor e Mercenário. Esse confronto de fato aconteceu dentro da cronologia da série. Especificamente, na história “Duel!”, de Jim Shooter e Gil Kane, publicada em Daredevil #146.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Daredevil #146

A luta, como você pode perceber pela capa da história, foi transmitida ao vivo pela TV. Em Daredevil #191, ela é como um espetáculo hipnótico. O Demolidor e o Mercenário, com corpos atléticos, se movimentam como em um balé. Os seus golpes são claros e acrobáticos. O efeito que que ela produz sobre Chuckie é quase que o de uma possessão demoníaca. O primeiro quadrinho evoca o pôster de Poltergeist, que fora lançado no ano anterior [1982]. A mãe de Chuckie diz para Matt que ele repete frases incompreensíveis. O Demolidor diz para o Mercenário que, na mente de Chuckie, a luta nunca termina.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Miller já havia se mostrado crítico à mídia de massa no decorrer da série. Em Daredevil #169, por exemplo, ele fez um comentário  irônico sobre o assunto. O gibi inicia com Matt Murdock em um talk show em que o apresentador pretere a pauta do programa [o “Angel Dust case” de Child’s Play, ou seja, a presença de drogas nas escolas] por perguntas bobas sobre a cegueira de Murdock. Ele parece estar tratando a televisão como uma forma de entretenimento intrinsecamente frívola e irresponsável.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

O assunto também voltaria ao assunto em seus trabalhos futuros. O exemplo mais evidente é O Cavaleiro das Trevas, com os pundits cuja especialidade é não entender o problema de que estão falando [e que falam em quadrinhos que são telas de TV estilizadas, numa versão 2.0 do mesmo recurso que miller usou em Daredevil #169]. 

Assim, tudo isso nos permite concluir que, em “Roleta-russa”, Miller não está falando apenas de uma luta boba que aconteceu em uma edição perdida no tempo de Daredevil. O Demolidor está se confessando em nome do próprio entretenimento de massa. Seria, a história pergunta, a espetacularidade mass media e hipnótica da violência sem fim dos super-heróis uma fábrica de malucos?

“Roleta-russa” oferece uma resposta surpreendente para essa pergunta: é possível. 

Esse, no entanto, é apenas o ponto de partida. Seria fácil para Miller buscar o atalho e defender o seu ganha pão ignorando o argumento que diz que a mass media pode influenciar o comportamento infantil. O que ele faz em Daredevil #191 é aceitar essa premissa como verdadeira para, a partir disso, dar prosseguimento ao seu estudo sobre o exercício da autoridade.Assim, Hank Jurgens faz parte do “Citzens Boycott for Morality”. É um grupo de pressão que quer evitar que “as pessoas da TV transformem as nossas crianças em maníacos sexuais”. Não por acaso, o crime que ele comete é chantagem — palavra que define muito bem a ação de grupos como aquele do qual Hank participa.

Ele não é, no entanto, apenas um chantagista. Ele é um maníaco pelo poder…

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

…que enxerga o seu filho apenas sujeito passivo de sua autoridade:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Assim, a resposta à pergunta “seria a espetacularidade mass media e hipnótica da violência sem fim dos super-heróis uma fábrica de malucos?” ainda é “é possível”. Mas ela exige um complemento. Esse complemento, por sua vez, diz que censurar ou boicotar através de grupos de pressão o entretenimento mass media é, apenas, chantagem praticada por gente autoritária. No fim, só serve para criar naqueles mesmos jovens impressionáveis a certeza de que a única razão que existe é a do mais forte. É o início de uma escalada que só vai empurrá-los para a violência de uma forma pior do que aquela que se pretendia evitar em primeiro lugar: vai colocar os Chuckies na direção do Mercenário.

Em “Roleta-russa”, portanto, é o epílogo do Demolidor de Frank Miller. É a volta do protagonista ao palco de suas histórias para apresentar um último monólogo.

Esse monólogo opera em muitas camadas. Ele desenvolve o principal tema da série. Nos ensina que não existe autoridade inocente. Mostra que você deve desconfiar de toda a autoridade, especialmente daquelas que querem te proteger. E que essa é uma forma de encontrar o seu lugar no mundo… ou se perder nele.

É um monólogo que faz tudo isso de uma forma especialmente pertinente para a história dos quadrinhos. Mesmo assim, é um comentário que parte do pressuposto que quadrinhos são uma forma de entretenimento questionável.

Daredevil #191, no entanto, ainda é decididamente um gibi. Não apenas por usar os recursos narrativos próprios dos quadrinhos, já utilizados por Miller nas edições anteriores. Também por abordar o seu assunto de forma frontal e até mesmo expositiva, usando heróis com roupas coloridas. 

Isso pode parecer contraditório. Não tem problema: o Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson é que a hq, como Elektra, se equilibra sobre contradições.

Capítulo 4: O Homem sem Medo e O Casamento do Céu e do Inferno

“Se o louco persistisse em sua loucura, acabaria se tornando Sábio.
A loucura é o manto da velhacaria.
O manto do orgulho é a vergonha.
As prisões se constroem com as pedras da Lei, os bordéis, com os tijolos da Religião.
O orgulho do pavão é a glória de Deus.
A luxúria do bode é a glória de Deus.
A fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra de Deus.
O excesso de tristeza ri; o excesso de alegria chora.
O rugir de leões, o uivar dos lobos, o furor do mar tempestuoso e da espada destruidora são fragmentos de eternidade grandes demais para os olhos humanos.
A raposa condena a armadilha, não a si própria.
Os júbilos fecundam. As tristezas geram.
Que o homem use a pele do leão; a mulher a lã da ovelha.
O pássaro, um ninho; a aranha, uma teia; o homem, a amizade.
O sorridente tolo egoísta e o melancólico tolo carrancudo serão ambos julgados sábios para que sejam flagelos.
O que hoje se prova, outrora era apenas imaginado”.
–William Blake, Provérbios do Inferno
[tradução de Paulo Vizioli]

Daredevil #169 começa com uma piada que, na página seguinte, vira um massacre.

O Mercenário sofre uma crise psicótica e enxerga, delirante, todas as pessoas que caminham pela rua como Demolidor. Miller e Janson estão evidentemente se divertindo. Os “Demolidores” não são heróicos e atléticos como Matt Murdock; eles são gordinhos, usam gorras e cachecóis:

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

É então que o Mercenário reage: em quatro segundos, ele mata duas pessoas, para evidente terror dos outros “Demolidores”.

O Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson

Ao contrário do que esse exemplo pode sugerir, essa aparente contradição não é usada apenas de forma pontual. 

Em Daredevil #163 [“Blind Alley”], o Demolidor enfrenta o Hulk, no que é uma atualização do confronto Demolidor x Namor de Daredevil #7 [desenhado por Wally Wood]. 

É uma premissa tão boba que até os outros quadrinistas da Marvel se deram conta. A lenda, alimentada pelo próprio Miller, é que ele teve a ideia para essa história por conta de uma piada frequente na redação do Demolidor. “Tive uma ideia para uma história”, o piadista dizia; “o Demolidor enfrenta o Hulk. Ainda não sei o que acontece no segundo quadrinho”. Não basta isso: a história leva o Demolidor ao hospital. Na edição seguinte, ele está lá internado como… o Demolidor.

O Miller deve achar hilário esse negócio de usar acessórios por cima do uniforme de super-herói

A ingenuidade da premissa, no entanto, contrasta com a complexidade de sua execução. Assim, o confronto impossível entre o Demolidor e o Hulk ganhou uma capa como essa:

Usa o caos urbano para detonar a transformação do Banner no Hulk:

E termina a luta com uma… crise de consciência do Golias Esmeralda:

Assim, enquanto que em Daredevil #169 o contraste se estabelece e se resolve em duas páginas, em Daredevil #163 ele abarca a história inteira. Mas o propósito, nos dois casos, é irônico. Miller enuncia uma coisa [a história é boba] e sugere outra: a cômica psicopatia do Mercenário ainda é assustadora, o simplório confronto entre o Hulk e o Demolidor é urbano, simbólico e complexo.

Daredevil #191 opera, da mesma forma, nesses termos. O entretenimento de massa, Miller diz, foi instrumental para a alienação de Chuckie. Mas também é o veículo adequado para expô-la. Mais: é uma linguagem que permite revelar o perigo que é sujeitá-lo à patrulha de moralistas que se dizem bem-intencionados.

A aplicação mais interessante dessa lógica, no entanto, está na caracterização de um dos melhores personagens recriados por a Miller e Janson no seu Demolidor: Wilson Fisk, o Rei do Crime.

Na superfície, o Rei do Crime parece um personagem de desenho animado infantil. Apresentado pela primeira vez em The Amazing Spider-Man #50, de 1967, o Rei do Crime foi visualmente concebido por John Romita Sr.

Romitão é um excelente desenhista e um dos meus quadrinistas favoritos. Mas ele se formou como desenhista em gibis de romance da DC. O seu traço limpo e cartunesco, está na outra ponta do espectro em relação ao que Miller e Jason usam no Demolidor. A sua concepção visual, por outro lado, não é nem um pouco sutil: ele é um chefe do crime muito gordo que usa um pin de gravata gigante e se chama… Kingpin.

No entanto, foram exatamente essas características que convenceram Miller a utilizá-lo.

O Fisk de Miller e Janson não é propriamente uma “pessoa”. Ele é uma personificação. Essa é a capa de Daredevil #170, a primeira história em que Fisk é utilizado pela dupla:

Nela, o Fisk é claramente a projeção humana de um prédio. Esse prédio, por sua vez, não é literalmente um prédio. Ele é uma representação metonímica da própria cidade. A cidade, por sua vez, não é necessariamente Nova Iorque. É um prédio que representa “cidade”: todas e qualquer uma delas. 

Essa “cidade”, por sua vez, não é apenas uma cidade específica. Ela mesma é uma metonímia. Agora, no entanto, essa metonímia é de construção humana: ou seja, civilização, organização social, etc. Ou seja: ordem, hierarquia.

Por outro lado, o Fisk de Miller e Janson é brutal, mas também sofisticado e opulento. Ele é praticamente um aristocrata moderno. O prédio que ele utiliza como quartel-general representa isso muito bem:

Ele é, a propósito, baseado em um prédio real: um hotel construído nas Filipinas pelo arquiteto Leandro Locsin. Não consegui, no entanto, encontrar uma foto.

É uma torre dourada: um castelo moderno. É a casa de um tipo de personagem que personifica a ordem em uma sociedade. A casa de um… Rei.

Essa ordem que Fisk personifica, no entanto, não é neutra. Como eu disse antes, no Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson não existe ordem inocente. “A Ordem” daquele mundo, assim como a sua personificação, tampouco poderiam sê-lo.

A subtrama de Randolph Cherryh, candidato a prefeito de Nova Iorque que é um fantoche de Fisk [Daredevil #178 a 180] ilustra isso muito bem. Da mesma forma que o Demolidor, a “ordem legítima” [a prefeitura] não é rival para Fisk. Ela é apenas um último obstáculo em potencial, cujo controle está ao seu alcance no momento conveniente. Em outras palavras, Fisk é o rei de uma hierarquia ilegítima, que se justifica exclusivamente pela força. É o rei de uma ordem negativa e total. Ou seja, de uma tirania. Ele é, em outras palavras, um rei… do crime.

Assim, Miller e Janson revelaram o potencial que existia por trás do nome do personagem. Mas eles não pararam por aí: a dupla também revelou o sentido de sua forma física.

Nas mãos de Miller e Janson, a forma física do Rei do Crime é ainda mais exagerada:

Tão exagerada que esta seria uma boa forma descrevê-lo:

“Sua força reside nos rins, e seu vigor nos músculos do ventre.
Levanta sua cauda como cedro, os nervos de suas coxas são entrelaçados.
Seus ossos são tubos de bronze, sua estrutura é feita de barras de ferro”.

Essa é a famosa descrição que está em Jó 40:16-18 de um dos mais assombros monstros bíblicos, o Beemot. Uma de suas representações pictóricas mais conhecidas é essa gravura de William Blake, de 1825:

Não é só no aspecto físico que os dois se parecem.

Como você pode ver na própria gravura de Blake, a contraparte subterrânea do Beemot é o Leviatã. O Leviatã, é descrito na Bíblia [Jó 41:34] como “o rei dos mais orgulhosos animais”, ou “king over all the children of pride” na versão do Rei James [citada por Blake em sua gravura].

Existe uma controvérsia sobre a exata natureza do Beemot. Alguns defendem que se trata de um animal natural — um elefante, ou um hipopótamo.

O Beemot no Dictionnaire Infernal [1818],
de Jacques Auguste Simon Collin de Plancy

Outros, entre os quais está Blake, tratam o Beemot como um ser sobrenatural.

Como ser sobrenatural, ele tem um significado. O Beemot é a representação d’A Ordem Universal, enquanto que o Leviatã é a representação da irresignação humana contra essa mesma ordem. Daí que o primeiro seja um animal da terra [o domínio da estabilidade e da civilização] e o segundo, das águas [que, inclusive na própria Bíblia, costumam ser um símbolo do mundo do caos].

Disso, no entanto, você não deve extrair que o Beemot é o bem e o Leviatã é o mal. O enfrentamento entre os dois é, aos olhos humanos, assombroso — e parte desse assombro é aterrador. No Livro de Jó, os dois monstros são exibidos a Jó para que ele se dê conta de sua insignificância. Na tradição judaica, o Leviatã iniciará o final dos tempos, e será derrotado por Beemot. Mas o Beemot, então, será oferecido aos homens que sobreviverem à chegada do Messias em um banquete. Blake descreve a figura de The Spiritual Form of Pitt Guiding Behemoth nos seguintes termos:

“ele é aquele anjo que, feliz em cumprir as ordens do Todo Poderoso, cavalga o furação e comenda a tempestade da guerra. Ele manda o ceifeiro ceifar as vinhas da terra, e o lavrador arar as cidades e as torres”.

Disso, no entanto, você não deve extrair que o Beemot é o bem e o Leviatã é o mal. O enfrentamento entre os dois é, aos olhos humanos, assombroso — e parte desse assombro é aterrador.

No Livro de Jó, os dois monstros são exibidos a Jó para que ele se dê conta de sua insignificância. Na tradição judaica, o Leviatã iniciará o final dos tempos, e será derrotado por Beemot. Mas o Beemot, então, será oferecido aos homens que sobreviverem à chegada do Messias em um banquete. Blake descreve a figura de The Spiritual Form of Pitt Guiding Behemoth nos seguintes termos:

“ele é aquele anjo que, feliz em cumprir as ordens do Todo Poderoso, cavalga o furação e comenda a tempestade da guerra. Ele manda o ceifeiro ceifar as vinhas da terra, e o lavrador arar as cidades e as torres”.

Tudo isso está no Rei do Crime de Miller e Janson. A versão deles também tem uma contraparte subterrânea…

…cujo poder é representado por um monstro marítimo:

Demolidor de Frank Miller e Klaus Janson - Leviatã

O seu antagonista é o Demolidor, um personagem que, com o seu comportamento hipócrita e juvenil, pode ser facilmente considerado um “children of pride”.

E o próprio Rei do Crime reconhece, no final de Daredevil #190, que eles são os dois “poderes” do mundo em que transcorre a história, em um eterno “stand off”:

Por outro lado, o Rei do Crime também tem uma autora sobrenatural. No seu escritório há apenas uma mesa e escuridão. Como bem diz Paul Young no livro Frank Miller’s Daredevil and the Ends of Heroism, ele mais parece uma altar onde se vai para oferecer a própria humanidade em sacrifício ao deus da escuridão.

Fisk, continuando, pode ser apenas o “rei” de uma cidade. No entanto, e como eu comentei lá em cima, essa cidade não é apenas uma cidade: ela é uma representação de todas as cidades, em um gibi decididamente urbano. Isso faz dele, a personificação d’A Ordem, conforme eu já argumentei, universal, pelo menos no que é o universo em que transcorrem as histórias do Demolidor.

Finalmente, acho que já falei bastante sobre como o Rei do Crime é um personagem aterrador.

Assim, Miller e Janson não ignoraram o que o Rei do Crime tem de mais aparentemete ingênuo. Ao contrário: assim como no caso das limitações técnicas dos quadrinhos, eles reivindicaram essa ingenuidade.

Eles mostraram que o Rei do Crime pode ser o casamento entre a ingenuidade e o assombro. Mostraram o potencial que estava lá, esperando por um pouco de… luz.

Daredevil #170, “The Kingpin Must Die” [“O Rei do Crime deve Morrer”]

Daredevil #170 é… uma pequena joia da Marvel.

Ao contrário de Daredevil #190 e 191, no entanto, que são gibis mais auto-conscientes, a sua graça está na evidente empolgação principiante de Miller. Praticamente cada página tem uma ideia ou, pelo menos, uma piada — ainda que Miller nem saiba sempre como executá-las.

Assim, em uma página, “O Rei do Crime deve Morrer” tem um excelente quadrinho pré-Sin City como esse:

Seguido de uma página em que Miller parece não saber o que é um carro:

Ou, na mesma página, Miller desenha uma perna que mais parece o pescoço de uma girafa:

Seguido de um quadrinho elegante como este:

O motivo pelo qual essa história merece uma seção própria na resenha, no entanto, é o Rei do Crime. 

Essa é a primeira hq da fase em que Miller usa o personagem, e existe algo a se aprender nos truques que ele usa para torná-lo “seu”: ele pode ser uma evocação do Beemot; mas ele também é um personagem com arco próprio. E é em Daredevil #170 que essa mágica se realiza. 

Como boa mágica, a sua execução se baseia no poder da sugestão. Isso já pode ser percebido no último quadrinho da segunda página em que o Rei do Crime aparece:

Depois de quase duas páginas que estabelecem de forma explícita a força bruta de Fisk, Miller nos oferece um plano detalhe que mostra a sua reação a ser chamado de Rei do Crime. Ele olha pra trás, com raiva e uma sombra projetada sobre o seu rosto. 

É um quadrinho que, de forma sutil, diz muito sobre o personagem. 

Depois de massacrar os seus sparrings, e instruir os seus subordinados a amá-los ainda mais, ele reage com raiva por ser chamado de “Rei do Crime”. Ele é evidentemente uma pessoa violenta, mas não suporta que o reconheçam assim. 

Mas essa não é uma conclusão que se pode alcançar apenas pela sequência narrativa. Ela está representada de forma visual naquele quadrinho. 

A sombra projetada sobre o rosto de Fisk não é coerente com o ambiente em que a história transcorre. Isso torna evidente que o seu uso não foi representacional, mas simbólico. A sombra, por sua vez, tem um significado bastante específico dentro da psicologia junguiana: ela representa as características que uma pessoa não quer reconhecer que tem. Essas características frequentemente são negativas, como a agressividade. Precisam, de qualquer forma, serem incorporadas à personalidade do sujeito para evitar que ele termine sendo dominado por elas. 

Isso, voltando para o gibi, explica perfeitamente aquele quadrinho. Ao ser chamado de “Rei do Crime”, Fisk enxerga a sua sombra, que Miller projeta em seu rosto. Essa sombra, para mais simbolismo, forma uma cruz, e é projetada a partir das costas de Fisk [ele está olhando para trás]. Trata-se, assim, de uma carga que ele deveria suportar; que ele tenta ignorar; e que insiste em lhe perseguir.

Ele reage com evidente raiva. Conforme Marie-Louise von Franz, esse é um sinal que denuncia um encontro com a sombra junguiana. Conforme ela diz em O Homem e Seus Símbolos:

“se você sente uma fúria incontrolável surgir quando um amigo lhe repreende por um erro, pode ter razoável certeza de que encontrou uma parte de sua sombra”.

Miller, que já tinha usado a sombra de Hulk de uma forma parecida na capa de Daredevil #163, evidentemente sabia o que estava fazendo.

A página seguinte da história, então, nos revela uma surpresa. Nela, Vanessa, Miller reapresenta Vanessa, a esposa do Rei do Crime. É nesse momento que nós descobrimos que ela é o motivo pela qual ele está tentando negar a sua agressividade: ele disfarça a sua fúria, solta o capanga que lhe chamara de Rei do Crime, e passa a se submeter à vontade de sua esposa. Até o seu vocabulário muda.

Isso, de novo, pode ter uma explicação junguiana. Conforme Jung, homens que tem o lado feminino de sua personalidade [a Anima] subdesenvolvido costumam submeter-se totalmente às mulheres de sua vida. Eles as enxergam elas como apenas como mães [amorosas, fornecedoras, etc]. Uma das características desses homens é a ausência de desejo sexual, e Fisk dá um beijo particularmente casto em Vanessa ao ser surpreendido por ela.

Como no caso de Elektra, no entanto, agora existe uma explicação não-psicológica mais interessante: Fisk está tentando renunciar à sua agressividade por amor. Essa explicação é mais interessante porque faz de Fisk um personagem trágico. 

Fisk, ao ser surpreendido por Vanessa, não mente apenas para ela: ele mente para ele mesmo. Ele está tentando se convencer de que a sua agressividade não é um problema, e que ele faz jus ao amor de sua esposa. 

Até mesmo a ambientação japonesa da história ganha um significado com isso. O Rei do Crime é a personificação da tirania [o aspecto negativo da ordem], representada pela cidade de Nova Iorque. Para fugir disso, ele não foi apenas para o outro lado do mundo; ele foi para um lugar em que as pessoas são conhecidas, até mesmo de forma estereotipada, pelo autocontrole. 

Com isso, no entanto, ele está negando uma verdade fundamental sobre ele mesmo: a de que ele é o Rei do Crime. É o tipo de ignorância fundamental que caracteriza a hamartia — a falha de caráter que leva o protagonista de uma tragédia à ruína. 

Novamente conforme Jung, aquele que insiste em ignorar a sua a sombra costuma ser engolido por ela: os seus defeitos, sem que ele perceba, tomam conta de sua personalidade. Assim, nada mais natural que esse seja precisamente o castigo trágico de Fisk.

Logo depois de sua primeira aparição na história, Vanessa retorna para Nova Iorque, com o objetivo de ajudar em sua redenção e é sequestrada por seus inimigos. É a desculpa perfeita para que Fisk volte para cidade e reassuma o seu posto de Rei do Crime — enganando-se que o faz por amor. 

De novo, tudo isso é representado por Miller em poucos quadrinhos. Mais exatamente três, os últimos de Daredevil #170. 

Existe uma anedota sobre esses três quadrinhos. Conforme o próprio Miller, ele começou a desenhar “Kingpin Must Die” com uma dúvida: Como ele poderia conciliar a apresentação visual cartunesca e arredondada criada por Romita Sr. para o Rei do Crime com a sua proposta visual tosca e rascunhado para a série do Demolidor? 

Um dia, Miller tropeçou com John Byrne na redação da Marvel e lhe pediu uma sugestão. Byrne, como o gênio dos quadrinhos que é, tinha uma resposta: luz. “Você precisa apenas iluminá-lo do jeito certo. Aí você pode causar a impressão que quiser sem mudar nada em seu design”.

Byrne tinha mais razão do que sabia. 

Conforme o próprio Miller, os três últimos quadrinhos de Daredevil #170 são um teste para a ideia de Byrne: ele queria testar se, apenas controlando a iluminação da cena, poderia transformar o Rei do Crime em um personagem seu. 

Nas duas últimas páginas, Fisk volta para Nova Iorque. Ele chega à cidade de avião e em uma fazenda. O avião aterrisa e explode, desmontando uma emboscada existe no local para matá-lo. Só então que pousa o avião que transportes o personagem. 

Eu seria capaz de apostar que essa cena foi a inspiração de Jonathan e Christopher Nolan para a abertura de O Cavaleiro das Trevas e O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Ela é menos elaborada, mas tem o mesmo objetivo: evidenciar a capacidade de planejamento e a lógica brutal de um vilão através de um plano mirabolante, que tem por principal característica a antevisão.

Ao sucesso na execução do plano, segue-se um close de seu rosto, desenhado com um traço grosso e preciso. O seu aspecto é quase que o de um bebê. Era o Rei do Crime de Romita Sr., conforme arte-finalizado por Janson. Ele olha para baixo. Seus olhos se tornam manchas negras. Quem levanta o rosto é o Rei do Crime de Frank Miller: o seu rosto é quase uma mancha negra, iluminado apenas pela chama de um fósforo que lhe deixa ainda mais diabólico. Ela faz o seu olho direito reluzir. 

Com um pouco de iluminação, Miller mostra como, de volta aos EUA e longe de Vanessa, o Rei do Crime foi engolido pela sombra. E como, depois disso, o seu olhar brilha.

Capítulo 5: 1979, Ano Um

“Quando eu estava fazendo Daredevil, eu estava louco pela série.
Eu estava apaixonado pela série. Era a única coisa na qual eu pensava”.
–Frank Miller

Sim: Em 1978, o mundo externo aos quadrinhos parecia estar pronto para recebê-los no panteão das artes que devem ser levadas a sério. 

O terreno fora preparado, ao menos em parte, pelo Pop Art americano: Warhol e companhia trataram produtos industrializados para consumo de massa como objeto de sua arte. Roy Lichtenstein usaria essa abordagem aplicada aos quadrinhos de forma explícita. 

Isso, no entanto, condicionou a reação dos quadrinistas às possibilidades que estavam à sua frente. 

Ao incorporar produtos típicos da sociedade de massa como objeto artístico, a Pop Art pode ser interpretada como parte de um argumento maior. O argumento que diz que qualquer coisa pode ser arte. 

O problema é que, nessa equação, os quadrinhos entram como “qualquer coisa”. Para usar uma analogia proto-pop, os artistas pop art seriam Marcel Duchamp e os quadrinhos, o urinol. 

De fato, foi assim que a situação foi percebida por parte dos quadrinistas de super-heróis, de forma consciente ou inconsciente.

Entre os primeiros estão aqueles que nutrem evidente ressentimento em relação a Lichtenstein. Um bom exemplo é Dave Gibbons.

Gibbons participou de um documentário, produzido por Alastair Sooke, chamado Whaam! Roy Lichtenstein at Tate. O documentário foi exibido pela BBC4 em fevereiro de 2013. O Whaam! do título é o quadro de Lichtenstein que foi inspirado em um quadrinho de Irv Novick.

Roy Lichtenstein
[fonte]
Irv Novick

Whaam!, argumenta Sooke diante de um Gibbons que destacava as qualidades do desenho original de Novick,

“é uma pintura abstrata. Lichtenstein está dizendo ‘quero que o meu quadro seja achatado, impessoal e mecânico porque é em um mundo assim que eu vivo. E é isso que eu quero transmitir”. 

Gibbons, então, se vê encurralado como um encanador comentando a obra de Duchamp:

“não estou convencido. Do meu ponto de vista, existe alguma coisa de desonesta sobre o quadro, alguma coisa que tenta ser irônica e que eu acho que não funciona. Parece estar prestando um desserviço à arte dos quadrinhos por conta disso”. 

No grupo dos quadrinistas que incorporaram inconscientemente a ideia de que os gibis são qualquer coisa estão Eisner e Lee.

É verdade que as suas hqs que eles publicaram em 1978, Um Contrato com Deus e The Ultimate Comic Experience, não podiam ser mais diferentes. Mas ambas parecem ter o argumento de Sooke como pressuposto implícito: gibis não tem mérito próprio; esse mérito precisa ser procurado em outro lugar.

Esse é, evidentemente, o caso Eisner e a sua graphic novel lançada em livrarias. Ainda que de forma menos óbvia, também é o caso de Stan Lee. 

Em seus gibis, Lee tentava emular a estética da Pop Art. Durante meia década, rebatizou a Marvel de Marvel Pop Art Productions. A proposta de Silver Surfer: The Ultimate Cosmic Experience era de ser uma P-ópera. Para fazer isso, era preciso incorporar a estética dos quadrinhos; mas era preciso fazê-lo na forma pela qual os quadrinhos haviam aceitos em galerias de arte. 

Não digo isso para fazer menos caso de Gibbons, Eisner ou Lee, três gênios dos quadrinhos por méritos próprios. Também não ignoro que Miller iniciou a sua fase na revista do Demolidor com o objetivo de escrever um filme noir. O meu argumento é apenas que Miller percebeu nisso um erro. 

Ele percebeu que um gibi poderia ser mais expressionista e versátil que um filme e, assim, cheio de significado como as histórias contadas em qualquer outro meio. Ele percebeu que tinha a sua disposição um arsenal narrativo desenvolvido por gênios como Krigstein e Kurtzman para colocar isso em prática. Viu o que os quadrinhos americanos de super-heróis tinham de valioso e único. Por trás daquelas figuras aparentemente bobas, ele viu a tênue linha entre liberdade e tirania, a ordem no caos e o caos na ordem, morte, redenção e monstros bíblicos.

Miller percebeu que os quadrinhos devem reivindicar-se com base no seu próprio potencial. Tudo que se precisava fazer era perder o medo e iluminá-los do jeito certo.

Daredevil by Frank Miller & Klaus Janson Omnibus
Frank Miller, Klaus Janson, Roger McKenzie, David Michelinie, Terry Austin, Joe Rubinstein, George Roussos, Glynis Wein, Lynn Varley, Bob Sharen, Jim Novak, John Costanza, Joe Rosen, Diana Albers e D. R. Martin
[Marvel, 2007]