5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Da guerra à Era de Ouro; da Era de Ouro ao Infinito: uma breve história dos quadrinhos na Espanha

A Era de Ouro dos quadrinhos espanhóis ocorreu nas décadas de 40 e 50.

Não é que antes disso não houvesse nada. Gibis são publicados na Espanha desde o início do século XX. Diversos dos marcos de sua publicação no país ocorreram ainda nos primeiros vinte e cinco anos daquele século.

A revista TBO começou a ser publicada em 1917. Ela se tornaria, assim como aconteceu no Brasil com gibi, sinônimo de quadrinhos: até hoje a palavra mais comum na Espanha para se referir a hqs é tebeo.

Jáa evisa Pulgarcito, foi lançada em 1923. Ainda na década de 20, alcançaria tiragens de 300 mil exemplares e se tornaria o maior sucesso de vendas dos quadrinhos espanhóis. A sua editora, a Bruguera [então chamada de Gato Negro pela afinidade de seus proprietários com o anarquismo], se tornaria a principal do país por praticamente cinquenta anos.

A evolução que naturalmente se seguiria a esse surgimento promissor, no entanto, foi truncada de forma trágica. Em 1936, o país entrou em guerra civil.

O conflito, um dos mais fratricidas do século XX, durou até 1939. Mesmo que, durante a guerra, gibis ainda fossem publicados, o desenvolvimento do meio foi represado. Republicanos e franquistas controlavam a publicação de impressos. Assim, favoreciam a publicação de propaganda ideológica travestida de entretenimento infantil nas regiões do país que estavam sob sua de influência.

Isso é facilmente perceptível nas hqs que se tornaram conhecidas no período: nas áreas sob domínio franquista, triunfam as revistas Flechas e Pelayos [posteriormente fundidas, tornando-se a revista Flechas y Pelayos]…

Capa da revista Flechas y Pelayos

…enquanto que, no lado republicano, as mais famosas eram a El Pueblo en Armas e a Pionero Rojo:

Capa da revista Pionero Rojo

Não suficiente, alguns quadrinistas foram engolidos de forma mais direta pelo conflito.

Jesús Blasco é um bom exemplo. Ele criou Cuto, basicamente uma versão espanhola de Tintin, em 1935. O gibi já nasceu como um sucesso, mesmo que, na época, Blasco tivesse apenas 15 anos de idade.

A sua publicação, no entanto, foi interrompida ainda na década de 30, quando Blasco se alistou na Quinta del Biberón. O nome, que pode ser traduzido como “Safra da Mamadeira”, designava o conjunto de jovens soldados que foram recrutados no final no final do conflito pelos republicanos. Nessa altura, a guerra já estava perdida. Blasco iniciaria a década de 40 como um prisioneiro republicano na França: ele ainda não tinha vinte anos de idade.

Diante desse quadro, não é de se estranhar que o final da guerra tenha produzido um efeito parecido com o do rompimento de uma represa.

A Espanha foi imundada de quadrinhos. Surgiram gibis de aventuras para meninos, como Hazañas Bélicas, de Boixcar, El Capitán Trueno, de Victor Mora, ou El Guererro del Antifaz, de Manuel Gago. Eram hqs influenciados pelos grandes autores das tiras de jornal dos EUA, como Alex Raymond, Leonard Starr e Dan Barry.

Hazañas Bélicas, de Boixcar
Hazañas Bélicas, de Boixcar

As tiras de jornal, inclusive influenciaram de forma marcante os quadrinhos espanhóis. Mesmo os gibis de banca costumavam ser publicados no formato horizontal. Até os super-heróis americanos eram mais conhecidos pelas suas tiras do que pelos seus comic-books.

Também surgiram gibis de romance para meninas, como Mis Chicas, do já citado Jesús Blasco, ou Sissi, com histórias de Carmen Barbará e Purita Campos.

Finalmente, surgiram gibis de humor para toda a família, como Las hermanas Gilda ou La familia Cebolleta, de Manuel Vazquez e El botones Sacarino ou Mortadelo y Filemón, de Ibañez [talvez a hq mais popular da história da Espanha]. Eram hqs influenciadas pelos quadrinistas de humor franco-belgas, com o seu humor físico, de traço modulado, dinâmico e caricato.

Por outro lado, o relativo sucesso no exterior dos quadrinistas que fugiram da guerra, a difícil situação econômica do país e o câmbio monetário do pós-guerra criaram as condições favoráveis para a exportação do trabalho de desenhistas do país.

Pequenas agências de encarregavam de fazer o meio-campo entre quadrinistas espanhóis e editoras estrangeiras. A mais famosa era a de Josep Toutain. Ele se tornaria, décadas depois, um dos maiores editores da história da Espanha. Criou a sua agência, a Seleciones Ilustradas, com apenas 21 anos. A maioria dos quadrinistas contratados [Pepe González, Josep Maria Beà] eram adolescentes nascidos no pós-guerra.

O grande cliente da Seleciones Ilustradas era editora inglesa Fleetway. Os seus quadrinistas forneciam, sobretudo, gibis de romance de traço hiper-realista. A Fleetway não era um peixe pequeno, e seria responsável por uma pequena Era de Ouro nos quadrinhos ingleses nos anos 60. Ela fez isso precisamente com base na importação de talentos estrangeiros, como Hugo Pratt e Alberto Breccia.

Se eles estavam do lado de caras como esses, fica claro que o fenômeno não pode ser explicado exclusivamente de forma econômica. Os quadrinistas espanhóis eram extremamente talentosos. Anos depois, Luis Garcia estaria desenhando assim:

Dinamita Cerebral, de Luis Garcia

É verdade que o franquismo, o lado ganhador da guerra civil, ainda exercia certa influência sobre o conteúdo das hqs.

Isso se tornou bastante explícito em 1951, quando foi criado o Ministério de la Información. Como aqueles entre nós que entendem newspeak devem ter percebido, se tratava do ministério responsável por censurar as publicações.

Mas a censura direta de quadrinhos não era comum. Ainda que as publicações estivessem sujeitas à aprovação prévia do governo, não existem muitos casos conhecidos de alterações compulsórias. Muitos dos deles, ainda, são bastante anedóticos: Flash Gordon, por exemplo, teve o seu nome espanholizado. Ele foi rebatizado de… Flas Gordon.

Flas Gordon
Ufa! Salvaram o país!

Mas a censura não era, por isso, menos nociva. A análise prévia fazia com que os próprios quadrinistas se constrangessem. Eles sequer produziam histórias que poderiam não ser aprovadas, para evitar cair em alguma lista negra.

Assim, El Guerrero del Antifaz, uma das principais hqs do período, era uma mistura de Zorro com El Cid. Ambientada no final da Reconquista, era protagonizada por um príncipe árabe que se descobria como um cristão que fora sequestrado quando bebê. Ele se torna, então, um herói mascarado que luta contra os invasores muçulmanos.

O personagem, publicado pela editora Valenciana, era um sucesso de público e não pode ser considerado como um puro pôster boy do franquismo. Mas não se pode negar que ele ecoava alguns valores de um regime que se anunciava com o slogan España, Una, Grande y Libre.

Mesmo Capitán Trueno, que hoje em dia é lido pela crítica espanhola como uma hq de aventura anti-franquista, era condicionada. A sua história era ambientada em uma Idade Média mítica precisamente com o objetivo de evitar que pudesse ser interpretada como um comentário ao mundo real.

O governo espanhol, no entanto, logo descobriu que poderia fazer mais para estragar a diversão da molecada. A partir dos anos 60, ele começou a se preocupar menos com a possibilidade dos quadrinhos serem usadas como propaganda política explícita e mais com os efeitos da violência sobre os leitores infantis. A ditadura franquista tentava simular uma modernização e precisava entrar em sintonia com a vanguarda da burrice mundial.

O exemplo mais palpável do bom-mocismo obrigatório são as histórias de El Guerrero del Antifaz. A série original do personagem foi cancelada em 1966 [era publicada desde 1943]. A sua republicação, em cores, a partir de 1972 é uma prova concreta da mudança dos tempos:

El Guerrero del Antifaz - sem censura

Sissi e companhia até conseguiram empregos [Barbará lançou a série Mary Notícias, protagonizada por uma jornalista, em 1962], mas permaneceram obrigadas a manter o padrão modesto de vestimenta. El Guerrero del Antifaz perdeu tudo. A Reconquista ficou laica e ele já não podia ameaçar de morte outros desenhos de papel.

De forma involuntária, no entanto, essas medidas criaram as condições que possibilitaram o surgimento de 5 por Infinito.

Uma agência como a Seleciones Ilustradas também produzia hqs para o mercado interno. Isso era apenas uma forma de aproveitar ao máximo o trabalho dos seus desenhistas. Eram quadrinhos que foram produzidos como balões de ensaio para posterior licenciamento para o estrangeiro, trabalhos já vendidos que podiam render um troco extra, ou páginas prontas que foram recusadas em outros países.

Elas eram, de qualquer forma, produzidas pelos menos quadrinistas que desenhavam para as editoras de fora da Espanha. Esses quadrinistas, por sua vez, precisamente por trabalhar para fora, estavam em contato com a produção cultural de outros países.

Dificilmente poderiam fazê-lo de outra forma pelo controle que a ditadura franquista, de caráter marcadamente nacionalista, sobre o acesso à produção cultural estrangeira. Até mesmo gibis como Superman e Batman da Era de Prata eram vistos com maus olhos: eram espanholizados e remontados na Espanha, até a sua publicação ser finalmente proibida em 1964.

Foi assim que quadrinistas, como os já citados Luís Garcia, Pepe González e Josep Maria Beá, além do próprio Esteban Maroto, foram empurrados para uma posição de vanguarda.

No final dos anos 60, eles encontraram companhia.

A tutela do governo tinha por pressuposto que os quadrinhos eram apenas entretenimento infantil de segunda. Em parte como uma resposta a isso, surgiu no país uma crítica especializada que enxergava nos quadrinhos um status superior.

O grande nome dessa nova crítica é Luis Gasca. Em 1965, ele participou da criação do Salone Internazionale dei Comics de Bordighera. Estava lá com gente como Alain Resnais e Umberto Eco. Em 1966, ele lançou o livro Tebeo y cultura de masas. Em 1967, a revista Cuto. Dedicada apenas à crítica de quadrinhos, o seu título era uma homenagem ao personagem de Jesús Blasco.

5 por Infinito é o resultado da confluência desses fatores. Ela foi produzida no contexto da Seleciones Ilustradas

Ela fazia parte do contexto da Seleciones Ilustradas. A série, lançada na Espanha ainda em 1967, foi rapidamente lançada em diversos países. Ainda nos anos 60, na Alemanha, Argentina, Chile, França, Hungria, México, Portugal e Iugoslávia. Nos anos 70 chegou a ser lançada no Brasil pela EBAL. Isso certamente só foi possível pelas conexões de Toutain com editores estrangeiros.

Mais importante, as primeiras edições foram produzidas por um grupo de quadrinistas que trabalhava para Toutain. Maroto escreveu os roteiros e fez os desenhos preliminares a lápis. Ramón Torrents desenhou as personagens femininas. Adolfo Usero, as masculinas. Suso Peña, os cenários.

Eles eram conhecidos como Grupo de la Floresta por morar em uma parte particularmente arborizada da localidade de San Cugat del Vallés. É uma pequena cidade no norte de Barcelona cuja principal virtude era a proximidade com a casa de Toutain. Lá, dividiam uma moradia que era alguma coisa como uma comuna hippie. Chamavam o seu prédio de el galeón, e, em sua fachada, foi estendida uma bandeira pirata.

A série foi originalmente publicada na revista Delta 99. Era uma revista que tinha a pretensão de ser uma hq para jovens adultos. Lá, ela dividia espaço com Carlos Giménez [que escrevia e desenhava a série que dava título para a revista], outro integrante do Grupo de la Floresta que se tornaria um dos grandes nomes dos quadrinhos espanhóis.

Revista Delta 99 #1

Talvez isso já fosse suficiente para mostrar que 5 por Infinito era uma hq que se pretendia sofisticada. Mas a sua relação com Gasca era bem mais direta.

A sua primeira republicação ocorreu na revista Drácula, já no início dos anos 70. E a Drácula era a revista criada por Gasca para, nas suas palavras, “dignificar lo fantastico”: misturar hqs adultas, contos de fantasia heroica e ficção científica, e ensaios sobre quadrinhos e cinema.

Entre os seus colaboradores estava José Luís Garci, o diretor espanhol que mais vezes foi indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Ele levou a estatueta para casa apenas uma vez, em sua primeira indicação, em 1983, pelo filme Volver a Empezar.

A revista era publicada pela editora Buru Lan. Era editada por Gasca e financiada por Javier Aramburu e Manuel Salvat [sim, da editora Salvat]. A pretensão de torna evidente no próprio nome da editora: “buru lan” significa “trabalho intelectual” em euskera, o idioma do País Basco [que tem em San Sebastián, a cidade onde a editora tinha a sua sede, um polo cultural].

Em outras palavras, poucos anos depois do seu lançamento, 5 por Infinito era republicado por uma revista que se dava a missão de salvar os quadrinhos espanhóis da mediocridade.

A pergunta que nós temos que nos fazer agora é: o que Maroto fez para merecer esse status?

Seis por Infinito: os artistas que Maroto recrutou para ilustrar a ordem e o caos

A partir da proposta de 5 por Infinito, se poderia pensar que a hq, como Capitán Trueno antes dele, escolheu a via do comentário político sutil para justificar o seu status de gibi adulto.

A série conta a história de cinco humanos [Altar, Órion, Aline, Sírio e Hidra] com diferentes habilidades e oriundos de diferentes contextos que são recrutados pelo remanescente de uma raça alienígena super-avançada para explorar o universo.

O “por Infinito” do título funciona como um trocadilho: faz referência tanto ao alienígena que reuniu os protagonistas do gibi [cujo nome é Infinito], quanto à sua área de atuação [o universo] e as possibilidades imaginativas de sua missão. O “por” pode ser lido como “multiplicado por”; por esse motivo, a série também é chamada na Espanha de “5 x Infinito”, ou “cinco vezes infinito”.

A raça de Infinito era super-avançada em seu desenvolvimento tecnológico. O próprio Infinito é praticamente um supercomputador consciente: um ser lógico, que fala em caracteres computadorizados, intelectualmente superior e desprovido de emoção.

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Os mundos explorados, por outro lado, são primitivos, mas fantásticos. Eles são habitados por seres que você esperaria encontrar em um gibi de fantasia heroica. Costumam, no entanto, estar submetidos à tirania de um grupo opressor. O que os humanos recrutados por Infinito fazem é libertá-los.

Essa história pode ser interpretado como uma analogia política: Infinito e os seus exploradores são os agentes sem nacionalidade que libertam povos fantásticos que são oprimidos pela tirania.

Esse tipo de interpretação analógica, no entanto, tem um problema. Você pode acabar atribuindo significados a elementos da história cujo sentido é diferente, até mesmo inverso. E uma análise mais cuidadosa dos elementos da hq sugerem que esse é o caso em 5 por Infinito.

O roteiro das histórias costuma dar saltos aparentemente ilógicos. Em “Asteróide Pirata” [capítulo 2], por exemplo, Orion topa com Sírio e Altar logo depois de desejar que eles descubram que ele está perdido no planeta. A história não fornece qualquer explicação factual consistente para essa coincidência.

Por outro lado, muitas das histórias tem como problema principal a percepção que os personagens têm da realidade. Os seus protagonistas com frequência estão hipnotizados ou mentalmente alterados. Um bom exemplo disso é “Medo” [capítulo 3], em que o protagonista somente consegue superar uma ameaça ao abrir mão de sua consciência, em favor de uma colega que guia ele remotamente:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Essa página, a propósito, tem uma estrutura bem interessante: Maroto consegue fazer um splash page que mostra três linhas narrativas diferentes, mas simultâneas

Finalmente, a própria estrutura dos mundos em que as histórias transcorrem segue uma lógica irreal. Eles são habitados por seres bizarros…

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

…e a sua geografia é incoerente: frequentemente, o protagonista da história acede a um mundo subterrâneo de dimensões impossíveis [sendo “Atados”, o capítulo 11, o exemplo mais claro].

A soma desses elementos sugere que as histórias seguem uma dinâmica onírica e psicológica. Em sonhos, saltos lógicos livre-associativos são comuns. Com frequência, você, como protagonista de um sonho, tem a sensação de estar sendo conduzido. Sonhos, é claro, apresentam elementos fantásticos. E aceder a uma caverna de dimensões desconhecidas para uma excelente figura de linguagem para representar um mergulho no inconsciente.

Visto dessa forma, você só precisa dar um passinho na direção da psicologia para interpretar aqueles elementos da história como um enfrentamento entre consciente e inconsciente, mediado por uma racionalidade que quer restaurar o papel que é próprio a cada um.

Com o passar das páginas, no entanto, até mesmo essa interpretação psicológica se revela reducionista.

Os acontecimentos que formam a história podem se suceder, as vezes, de forma aparentemente incoerente. Mas o conjunto de acontecimentos segue de forma bastante estrita uma lógica: a lógica arquetípica. Assim, os agentes do Infinito frequentemente se deparam com a necessidade de resgatar uma princesa em perigo. Exatamente como em uma história clássica de cavaleiros.

Fica mais complexo. Essas princesas encarnam a própria feminilidade e tudo aquilo que lhe é simbolicamente associado: a natureza, a imaginação, a fertilidade, etc. Já as forças que colocam elas em risco representam uma estrutura hierárquica que quer disciplinar a natureza.

Visto dessa forma, aquilo que, em termos psicológicos, podia ser descrito como um conflito entre consciente e inconsciente, se transforma em um conflito em que a ordem quer se impor ao caos. Ao fazê-lo, no entanto, ela desequilibra a relação: a ordem é necessária, mas não pode se tornar tirânica.

O equilíbrio, finalmente, é restaurado pelos heróis que incorporam, eles mesmos, esse conflito. Se a história é protagonizada por um indivíduo masculino, ele invariavelmente se apaixona pela princesa em perigo. Caso contrário, a heroína que lhe acompanha é associada à fantasia e ao mistério. Assim, Hidra é uma estrela de cinema conhecida pela sua beleza; Aline, uma doutora em psiquiatria especializada em parapsicologia.

Essas duas interpretações não são excludentes, mas complementares. Um bom exemplo disso é a história “O Som do Silêncio” [capítulo 13].

Nela, um grupo de exploradores massacra a população de um planeta com o objetivo de minerá-lo. A população local é evidentemente associada às forças da natureza: a habitante remanescente [uma mulher, como não] se transforma em um tigre. Os exploradores, por outro lado, são associados a um olho.

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

O olho, por sua vez, é um claro símbolo de consciência. Mas ele também é um símbolo de poder: no mínimo, de supressão de desconhecimento. Daí que na mitologia egípcia o poder de Rá seja precisamente associado ao seu olho.

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
O Olho de Rá - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Essa interpretação complementar, por outro lado, é possível graças às referências que Maroto usou para desenhar o gibi. Esse talvez seja o aspecto mais genial da hq.

A influência de Alex Raymond e Flash Gordon é facilmente reconhecível. Também é bastante lógica: se trata de um gibi de ficção científica produzido em um país que estava mais familiarizado com as grandes tiras de jornal dos EUA do que com os comic-books. É uma influência que transparece na tecnologia usada pelos protagonistas da história, além do próprio tom aventureiro de suas ações.

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Quase uma ponta do Ming, The Merciless

Também é facilmente perceptível que Maroto utilizou alguns elementos visuais psicodélicos sessentistas e da cultura mod. De novo, isso é facilmente compreensível: o homem trabalhava para o mercado inglês nos anos 60.

Isso tudo, no entanto, é bastante anedótico. Tanto em seu sentido como na sua estética, a principal influência de Maroto em 5 por Infinito vem da arte europeia do final do século XIX e da primeira metade do século XX. Mais especificamente, de cinco artistas: Gustav Klimt, Alfons Mucha, Salvador Dalí, Joan Miró e Antoni Gaudí.

Todos eles têm algumas características em comum, e que se fazem presentes na hq. O estilo deles é fantasioso, irreal e ornamental, como os planetas fantásticos nos quais a história transcorre. Eles operavam em diferentes partes de uma intersecção entre a arte tradicional e a arte para as massas: Klimt, Gaudí e Dalí projetavam objetos de uso cotidiano. Mucha se tornou conhecido como desenhista de posters. Uma das obras mais conhecidas de Miró é o livro de ilustrações À toute épreuve — que, como obra impressa, foi pensada para a reprodução mecânica.

Maroto usa esses artistas, no entanto, de forma muito mais específica. Ele não está apenas replicando características gerais de suas obras. Ele está citando características específicas de forma direta.

Para o primeiro deles, Maroto lança inclusive uma piscadinha: a história “Atados” [capítulo 11], transcorre no Planeta Klimt. A influência do artista, no entanto, é muito maior do que isso.

Uma das características das obras iniciais de Klimt era a reinterpretação não classicista de assuntos tradicionalmente historicistas.

É o caso, por exemplo, dos mural da Faculdade de Medicina da Universidade de Viena. Ele retrata Hígia, a deusa grega da saúde: exatamente o tipo de protagonista que você esperaria encontrar no mural de uma faculdade do século XIX. Mas a sua apresentação é não-tradicional. Klimt não pintou uma deusa grega de aspecto modesto, idealizado e solar. Pintou uma mulher ornamentada, sensual e de aspecto pagão.

Hígia, de Klimt - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Parte dessa lógica se faz presente em 5 por Infinito. Se você pensar na hq exclusivamente em relação aos seus elementos mais objetivos, ela é uma história de aventura com cavaleiros resgatando princesas, em um contexto de ficção científica. É, em outras palavras Flash Gordon: difícil ser mais canônico do que isso. Mas esses elementos são reinterpretados de forma sensual, ornamental e vanguardista — como a Hígia de Klimt:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Para fazer isso, Maroto inclusive usa alguns dos mesmos recursos de Klimt. O artista austríaco se tornou conhecido por desenhar mulheres longas, imersas em um padrão decorativo complexo, achatado, abstrato, texturizado e dourado.

A própria capa do gibi parece uma referência a isso [que é a mesma na edição da Pipoca & Nanquim e na versão original da Glénat]. Se comparada com a página que lhe deu origem, é possível perceber não apenas o acréscimo do dourado, mas também o achatamento do desenho de fundo. Ele ainda está lá, mas de forma menos clara, parecendo apenas um padrão decorativo abstrato:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Sim: as páginas internas da hq são em preto e branco, sem qualquer detalhe dourado. Isso se deve a motivos óbvios: Klimt é de uma família de ourives, e os detalhes dourados de suas obras são ouro; Maroto… bom, o Maroto não é de uma família de ourives.

Mas esses detalhes dourados dos quadros de Klimt também tem por característica dar às suas obras textura [além de resgatar um recurso típico da arte medieval]. E isso é algo que Maroto busca reproduzir em suas páginas, na falta de ouro, com o uso de zip-a-tone e nanquim.

Judit I, de Klimt - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Judit I [1901]
5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Existe, no entanto, uma diferença entre as mulheres de Klimt e as de Maroto. A sensualidade dos quadros de Klimt era agressiva. As mulheres que ele pinta são femme fatales ou guerreiras, e não por acaso duas de suas obras mais famosas retratam a juíza Judite.

Pallas Athene, de Klimt - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Pallas Athene [1898]

Ainda que 5 por Infinito não seja desprovido de femme fatales, as mulheres que Maroto desenha são muito mais pacífica. Nisso, elas lembram àquelas que eram desenhadas por Mucha: belas, porém mais sublimes do que mortais. Elas parecem saídas de um conto de fadas, além de ter algum tipo de conexão idealizada com a natureza.

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Isso combina melhor com o papel delas em 5 por Infinito. São princesas semi-divinas, que representam a própria natureza, e que devem ser resgatadas em um esforço metafórico para restauração da ordem natural das coisas. Não é de se estranhar, portanto, que elas sejam desenhadas de uma forma que lembra a das obras do artista tcheco, com linhas longas, ar despreocupado e enfeites naturais [ainda que, no caso de Maroto, com menos roupas]:

Moët & Chandon Crémant Impérial, de Alfons Mucha - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Moët & Chandon Crémant Impérial [1899]

A influência de Dalí, por outro lado, também se percebe na forma das figuras Mas não nas mulheres: nos monstros. Aqueles que aparecem em 5 por Infinito que mais se aproximam de um monstro de pesadelo, lembram alguns quadros do pintor surrealista. Compare, por exemplo, esses monstros de Maroto:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Com esse quadro de Dalí:

El Caballero de la Muerte, de Salvador Dalí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
El caballero de la muerte [1934]

Já a influência de Miró não está, obviamente, na forma dos personagens: ele é um pintor abstrato.

A primeira forma pela qual ela pode ser percebida é, de novo, na proposta. Na década de 20, Miró começou a encontrar uma voz própria. Ele fez isso, como Maroto em 5 por Infinito e Klimt nos murais da Universidade de Viena, reinterpretando um assunto tradicional com o seu vocabulário próprio. No caso de Miró, o assunto era o dos quadros dos grandes pintores holandeses do século XVIII:

Interior holandés, de Miró - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Interior holandés [1928]
O Alaudista, de Hendrick Martensz - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Hendrick Martensz, O Alaudista [1661]

O segundo lugar no qual ela pode ser percebida é no vazio da composição de página. Algumas páginas de 5 por Infinito lembram um sketchbook, uma reunião de desenhos espaçados sem relação entre si. Isso é devido, em grande parte, à ausência de bordas de quadrinhos.

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Maroto faz isso com objetivos narrativos: essa ausência colabora com o aspecto etéreo e onírico da história, pela supressão de referências concretas para a ação.

De qualquer forma, o aspecto final dessas páginas lembra o dos quadros do chamado “ciclo das constelações” de Miró: eles também são “vazios”.

Personajes en la noche guiados por los rastros
fosforescentes de los caracoles , de Miró - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Personajes en la noche guiados por los rastros
fosforescentes de los caracoles [1940]

Como eu disse ali em cima, Miró era um pintor abstrato. As formas que apareciam em suas quadros, portanto, ainda que fossem extremamente simbólicas, não eram diretamente figurativa — enquanto que Maroto usa um estilo que, ainda que também seja simbólico, não apenas é figurativo como também é realista. Elas também tem uma aparência infantil que não está presente nos desenhos de Maroto.

Apesar de tudo isso, os quadros de Miró se tornaram conhecidos pelo seu valor decorativo:

[Anedota pessoal: quando eu era criança, era levado com frequência em um dentista que decorava a sua sala de espera com posters do Miró. Quando eu vejo esses quadros, consigo escutar o barulho de lixa odontológico no fundo da minha cabeça]

E, como decoração de seus quadrinhos, Maroto usa figuras abstratas que lembram a dos quadros de Miró:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Por último, Miró também influencia Maroto na textura.

Miró incorporava objetos de uso comum em seus quadros [como cordas, por exemplo]. O seu objetivo era fazer arte para as massas, através o uso de um objeto comum em uma obra de Ar-tê. Esse objetivo, por si só, lembra o de Maroto, mas de forma invertida: o quadrinista faz arte para as massas, utilizando referências sofisticadas em um objeto comum [gibis].

Mas ele é realizado, no caso de Miró, através de um recurso que tem as suas consequências. Assim, a reprodução impressa dos quadros em que Miró usa as suas cordas fica com um aspecto texturizado.

Cuerdas y Personas I, de Miró - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Cuerdas y Personas I [1935]

E esse aspecto é parecido com o dos quadrinhos em que Maroto usa zip-a-tone.

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Curiosamente, o artista cuja influência sobre 5 por Infinito é mais marcante não é um pintor. É um arquiteto: Gaudí. Depois que você faz a relação, no entanto, passa a percebê-la em quase todas as páginas.

É verdade que Gaudí, por si só, engloba as outras referências — com a exceção das figuras femininas. Ele não é, no entanto, apenas uma síntese das outras influências de Maroto. O desenho de 5 por Infinito lembra as obras de Gaudí de forma bem específica.

Os prédios de Gaudí são conhecidos por serem irreais, oníricos e fantásticos. O Palau Güell, por exemplo, foi descrito, na época de sua inauguração, como o delírio de um arquiteto veneziano do século XV.

Para construir essa impressão, Gaudí utiliza alguns recursos que estão presentes em 5 por Infinito. Ele decora os prédios, por exemplo, de forma texturizada e irreal:

Banco do Parc Güell, de Gaudí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Detalhe de um banco do Parc Güell
[fonte]

Ou, na sua fase orientalista, com padrões geométricos:

Sacada da casa Vicens, de Gaudí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Detalhe da sacada da Casa Vicens
[fonte]
5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Isso não é verdade apenas em relação a essas referências pontuais. A principal característica pela qual Gaudí se tornou conhecido é a assimetria orgânica de seus prédios:

Parc Güell, de Miró - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Prédio na entrada do Parc Güell [Foto de Vincent Desjardins; fonte]

Em algumas páginas, isso é praticamente transposto por Maroto em seus desenhos:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Pense na figura sentada que está no
centro da imagem como um prédio

O caso mais emblemático é o dos monstros-lagarto que repetidas vezes aparecem em 5 por Infinito. Eles lembram são uma versão mais assustadora do dragão do Parc Güell, uma das obras mais conhecidas de Gaudí. Perceba como esse, que aparece na história “Atados” [capítulo 11], parece uma versão mais angulosa, mas igualmente caricata e texturizada, do dragão de Gaudí:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Lagarto do Parc Güell, de Gaudí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Foto de Alex Proimos [fonte]

É bastante lógico que Maroto tenha utilizado referências artísticas como essas para fazer uma hq sofisticada. Klimt e Mucha são artistas de vanguarda e grandes nomes da arte decorativa. Dalí, Miró e Gaudí não são apenas isso: também são catalães, e Maroto, ainda que nascido em Madri, morava em uma pequena cidade ao lado de Barcelona.

Não é uma cidade qualquer. Sant Cugat del Vallès está ao norte do Parc Natural de la Serra de Collserola. O Parc Güell está logo ao sudeste desse mesmo parque. Entre os dois pontos existem apenas uns 15 quilômetros.

Mas é importante perceber que Maroto não usou essas referências como uma medalinha. Ele as utilizou de forma coerente ao próprio sentido de sua obra.

Assim, ele usou Klimt porque a feminilidade de suas pinturas e a forma onírica de seus padrões decorativos eram úteis para caracterizar as figuras femininas e, por tabela, os mundos que eram retratados na hq.

Mais: me parece que existe uma conexão entre o trabalho de Klimt e o de Freud. Isso exigiria uma pesquisa adicional que eu vou deixar para alguém mais inteligente do que eu fazer, mas além da coincidência geográfica/temporal [os dois são contemporâneos e conterrâneos], está o fato de que os quadros de Klimt parecem sonhos sensuais. E a própria possibilidade dessa conexão já deixa evidente a pertinência de se usar Klimt em uma hq como 5 por Infinito: uma hq que utiliza imagens associadas ao consciente e ao inconsciente para ilustrar o seu tema.

Ele usou Mucha porque a beleza sublime e natural de suas mulheres era importante para caracterizar princesas de 5 por Infinito como representantes do aspecto sublime-positivo da natureza. Ele usou Dalí quando precisava que as figuras parecessem pesadelos surreais produzidos pelo seu inconsciente.

Ele usou Miró para garantir a sofisticação decorativa desse conjunto de uma forma não-figurativa. Também para garantir que os quadrinhos tivessem um aspecto que é, a primeira vista, incompreensível: existe uma dança de elementos que parecem abstratos, mas cujo significado pode ser extraído pelo leitor. Isso recria visualmente um elemento comum aos sonhos: eles também são imagens aparentemente incompreensíveis, cujo significado você tenta extrair.

Entre os quatro, ele ele conseguiu reproduzir essa fascínio perigoso e acolhedor que a natureza produz. Conseguiu desenhar uma hq onírica e surreal. Conseguiu ilustrar uma história que não deve ser interpretada como uma analogia ao mundo real, mas como uma jornada ao mundo interior.

Mas a coerência entre a estética e o sentido da obra é especialmente verdade em relação à influência de Gaudí.

Os prédios de Gaudí eram um contraponto fantástico e orgânico ao racionalismo utilitário de outros arquitetos [como Adolf Loss, autor do ensaio “Ornamento e crime”]: ele queria construir prédios que fossem a natureza feita de pedra.

Um exemplo perfeito disso é o seu projeto estrutural da igreja da Colonia Güell de Barcelona:

Maquete funicular, de Gaudí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Isso é uma reprodução que se encontra no museu da Sagrada Família.
Infelizmente para a humanidade, a obra não foi executada e a maquete
original foi destruído no início da Guerra Civil [fonte]

Isso é uma maquete funicular. Para formá-l, pequenos sacos, cujo peso era proporcional à carga que a estrutura do prédio construído deveria suportar em determinado ponto, eram pendurados em uma estrutura de cordas.

As cordas, por causa do peso dos sacos, era tensionada. Essa tensão, por sua vez, fazia que as cordas formassem arcos em V. A forma desses arcos era puramente natural, decorrente da incidência da força gravitacional sobre as cordas. Finalmente, Gaudí fotografava a estrutura resultante e a invertida: os V’s se transformavam em arcos capazes de suportar a carga projetada.

A igreja, portanto, teria a forma daquela maquete se ela fosse invertida:

Maquete funicular invertida, de Gaudí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

A Sagrada Família, a igreja que se tornou o símbolo da cidade de Barcelona, também foi projetada assim:

Sagrada Família, de Gaudí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Foto de Allan T. Kohl [fonte]
Sagrada Família, de Gaudí - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Foto de Robert Gombos [fonte]

Por si só, aquela maquete já lembra visualmente alguns quadrinhos do gibi:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Mas essa era a forma pela qual Gaudí projetava prédios que deviam ser mais naturais e menos… reto. Ou seja, menos isso:

Prédio de Adolf Loss - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Prédio de Loos nas proximidades de Praga [foto de Lindsay Grant; fonte]

Ou, para voltar para a hq, menos isso:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

Maroto usou a influência de Gaudí para caracterizar os mundos que os heróis de 5 por Infinito visitam. E ele faz isso porque quer que esses mundos estejam em oposição ao frio racionalismo de Infinito.

Essa opção, por sua vez, não é apenas esteticamente bonita e geograficamente lógica. Não faz que 5 por Infinito seja apenas um coffee-table-book para você impressionar as visitas com um cuidadosamente descuidado “ah, esse gibi aí tem a influência do Gaudí”. Essa opção é plenamente pertinente: ele usa a obra de Gaudí em um sentido que ela tem.

Finalmente, 5 por Infinito tem duas influências que não vem do mundo da ar-tê. Primeiro, algumas de suas páginas parecem ter sido filtradas por Breccia, o grande quadrinista argentino:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

A segunda ajuda a traduzir as referências artísticas de Maroto para uma estética de reprodução mecânica e cultura de massa. Ela é de um artista do século XX que não é europeu, mas americano, e antecedeu Maroto no uso de elementos da arte de vanguarda nos quadrinhos.

É um desenhista que estava em atividade desde os anos 40, mas que explodiu com uma série lançada poucos anos antes do lançamento de 5 por Infinito. Uma série cujo esqueleto Maroto usaria em 5 por Infinito.

Estou falando, naturalmente, de Jack Kirby.

Esse esqueleto que 5 por Infinito e o Quarteto Fantástico dividem é evidente. Os dois são gibis sobre um grupo de exploradores com habilidades únicas.

A influência vanguardista que Kirby recebeu se manifesta de forma mais explícita no uso de colagem. A técnica, de fato, é centenária, mas ela foi recuperada no século XX, primeiro por cubistas, depois por surrealistas e, finalmente, por artistas pop. Foi provavelmente essa rota que a técnica fez para chegar em Kirby.

Página original de Fantastic Four #32, de Jack Kirby - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Fantastic Four #32 [página original]
Página de Fantastic Four #32, de Jack Kirby - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Página impressa

A estética dessas páginas, por sua vez, reaparece em algumas que foram desenhadas por Maroto em 5 por Infinito, mesmo que não utilizando o recurso da colagem:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos

A colagem, em outras páginas, foi substituída por desenhos hiper-realistas [provavelmente com o uso de referências fotográficas: os desenhistas espanhóis que trabalharam na Inglaterra eram conhecidos por usá-las] e, de novo, zip-a-tone e textura:

5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Página original de Fantastic Four #51, de Jack Kirby - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Fantastic Four #51 [página original]
Página de Fantastic Four #51, de Jack Kirby - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Página impressa

Assim, 5 por Infinito não é apenas uma hq que incorpora influências estéticas da arte européia do início do século XX. Ela também é uma que, através da mágica dos quadrinhos, faz uma ponte entre Klimt e Kirby. Essa ponte não é apenas impressionante por unir dois pontos tão diferentes. Ela também é impressionante pelo seu traçado: Mucha, Dalí, Miró e Gaudí.

São seis artistas reunidos por Maroto para produzir uma estética que explicita no desenho da hq a dinâmica de sua história. Racionalismo x fantasia, consciente x inconsciente, ordem x caos.

Isso, no entanto, nos deixa com outra pergunta. Como é possível que esse gibi não seja lembrado e celebrado pelos fãs de quadrinhos como um exemplo do que o meio tem a oferecer?

Interpretando o Infinito: 5 por Infinito cinquenta anos depois

A fortuna crítica de 5 por Infinito lembra o destino imediato de suas influências artísticas.

Isso é verdade, em primeiro lugar, em relação aos detalhes biográficos de um dos artistas que influenciaram Maroto. Mucha se tornou um artista conhecido longe de seu país, como ilustrador de cenários e posters de peças de teatro. Os gibis de maior sucesso de Maroto, por outro lado, foram publicados nos EUA. Ele é o grande nome da Spanish Invasion, a onda de quadrinistas espanhóis que tomou conta das hqs da editora Warren nos anos 70. Também é o responsável pelo bikini-armadura de Red Sonja.

Mas de forma muito mais pertinente ao que nos interessa, isso é verdade em relação à percepção da crítica em relação à obra desses artistas nas décadas que se seguiram ao seu auge.

Klimt, Mucha, Miró, Gaudí e até mesmo Kirby foram soterrados pelas vanguardas que lhes foram posteriores. Os floreios decorativos de Klimt e Mucha viraram pornografia, no caso do austríaco, e frivolidade burguesa no caso dois [junto com o resto da art nouveau].

Miró virou o pintor de consultórios de dentista, cortinas de banheiro e de quadros que “até meu filho de cinco anos faria”. Talvez ele seja conhecido assim até hoje.

Gaudí, ainda em vida, teve a sua dose de problemas com os movimentos políticos radicais da Catalunha do início do século XX. Logo depois de sua morte, em 1926, começou a ser criticado como excessivamente barroco.

Em 1936, a sala em que ele trabalhava na Sagrada Família foi invadida. As maquetes e os documentos existentes no local foram destruídos. As obras somente foram retomadas em 1944, 18 anos depois da morte de Gaudí. A sua reabilitação como um dos grandes gênios da arte espanhola somente ocorreria nos anos 50.

Finalmente, todos nós estamos acostumados a tratar Kirby como um gênio dos quadrinhos. Esse não era o caso, no entanto, nos anos 70 e 80: depois da Marvel, o sucesso comercial de Kirby foi lentamente murchando. Novos Deuses, na época, foi considerado excessivamente grandioso, confuso e verborrágico. Diz Mark Evanier que, no final da década de 70, ele foi ironicamente apelidado na Marvel de “Jack the Hack”. Pelas costas, é claro: ninguém teria coragem de dizer isso na cara do Rei.

Algo parecido aconteceu com Maroto: ele parece estar fora de moda. 5 por Infinito é um bom exemplo. A crítica tem tratado a hq como um gibi que é “sem história”. O que foi produzido como uma hq adulta e pretensiosa, em que referências artísticas sofisticadas são usadas de forma pertinente para criar um embate entre racionalidade e fantasia, passou a ser interpretado como… apenas uma aventura bonita, mas meio boba.

Não quero, com isso, tirar o meu da reta. Antes da ficha cair, também estava preocupado com o que eu percebia como unidimensionalidade dos personagens e soluções ex machina do roteiro. E é fácil entender o motivo disso. Basta fazer como os críticos de Klimt, Mucha, Miró, Gaudí e Kirby: interpretar a hq com base nos pressupostos das “vanguardas” que lhe foram posteriores.

E, desde esse ponto de vista, 5 por Infinito foi atropelado.

Se poderia especular sobre uma relação entre 5 por Infinito e Moebius e Alejandro Jodorowsky, sob o argumento de que as hqs deles também são “ilógicas”. Esse, no entanto, não é o caso. Os gibis “ilógicos” de Moebius e Jodorowsky são deliberadamente sem sentido ou esotérica. Em qualquer caso, fazem parte de um esforço de esticar os limites da linguagem até rompê-la. Em 5 por Infinito, Maroto não usa a “ilógica” com o objetivo de desafiar o sentido da linguagem.

5 por Infinito foi atropelado até mesmo na Espanha.

O “cómic adulto” finalmente explodiria na Espanha no final da década de 70, depois da morte de Franco [1975] e da aprovação da atual constituição [1978]. A revista italiana Linus era publicada desde 1965. A Metal Hurlant começou a ser publicada na França no final de 1974. As revistas Totem, 1984 e Cimoc, que se tornariam as principais do país, surgiram em 1977 e 1978.

Como no resto da Europa, a ficção científica era um dos gêneros explorados por esse novo quadrinho adulto. Mas existem duas histórias representativas do período que mostram como eles não estavam sintonizados com 5 por Infinito.

A primeira é “Los Verdugos”, de Carlos Gimenez. É uma adaptação do conto “The Francis Spaight”, de Jack London. Sai o barco, entra uma espaçonave: fica o canibalismo e a lei do mais forte. A outra é “Programación”, de Horacio Altuna. Nela, o futuro é um cativeiro tecno-hedonista, que as pessoas exigem apenas que seja mais técnico e hedonista. 5 por Infinito não tem essa ironia extremamente pessimista. Também não tem uma mensagem tão clara: ela é mais parecida com uma divagação em torno de um tema.

Isso tudo nos propõe um novo dilema: 5 por Infinito é um gibi ultrapassado?

A resposta para essa pergunta pode ser encontrada, de novo, nas influências de Maroto.

Elas nos indicam dois caminhos. O primeiro é o de Klimt. Entre 1901 e 1902, e em resposta àqueles que lhe acusavam de pornógrafo, ele pintou o quadro Peixe-dourado. Originalmente, ele fora batizado de “aos meus críticos”.

Peixe-dourado, de Klimt - 5 por Infinito, de Esteban Maroto: sonhos, fantasia e arte de vanguarda em quadrinhos
Não é muito sutil.

O segundo é o indicado por Gaudí. O genial arquiteto catalão reunia, no seu estilo, as diferentes e aparentemente contraditórias correntes do modernismo. Nas palavras do arquiteto e historiador Joan Bassegoda, “Gaudí não cabe dentro do modernismo, mas o modernismo cabe em Gaudí”.

Ele fazia isso reconhecendo o que nelas havia de complementar. É como se os diferentes estilos não fossem mais do que diversos aspectos de uma só coisa. “A beleza”, nas palavras de Gaudí, “é o brilho da verdade. Como arte é beleza, sem verdade não existe arte”.

O que ele nos ensina, portanto, é o seguinte: você não deve ler 5 por Infinito desde o ponto de vista do que lhe é posterior — apenas. Você deve ler 5 por Infinito desde o ponto do que ela, o que lhe é posterior, anterior ou contemporâneo, refletem, ainda que de diferentes formas.

Isso, por sua vez, exige um pouco de perspectiva. Então, a melhor coisa que você pode fazer é dar dois passos para atrás, mentalmente falando. De lá, leia 5 por Infinito. Finalmente, se pergunte: não é brilhante?

5 por Infinito
Esteban Maroto
[Pipoca e Nanquim, 2018]