Antes do Dilúvio: O Super-Homem de Alan Moore

Prólogo: A Ascensão do Império Mooriano

Cain: Murder? Don’t talk to me about murder. I invented murder!
–Alan Moore [Saga of the Swamp Thing #33]

É uma prova da rápida ascensão do prestígio de Alan Moore dentro da DC que ele tenha escrito três histórias do Super-Homem mais ou menos um ano depois de seu primeiro gibi publicado pela editora.

O Super-Homem sempre foi o personagem mais protegido da DC. Ele era a galinha dos ovos de ouro e precisava sempre estar mais ou menos pronto para uma adaptação para outras mídias. De fato, o personagem está na vanguarda da proteção marcária e do desenvolvimento transmídia. O controle que o editor Mort Weisinger exercia sobre o personagem era lendário. Mesmo Julius Schwartz, que o substituiu, somente conseguiu segurar por muito tempo as mudanças introduzidas por Dennis O’Neil no início dos anos 70.

Duas das histórias que Moore escreveu, ainda por cima, não foram publicadas em qualquer gibi. Para o Homem que Tem Tudo foi publicada em Superman Annual #11. As revistas anuais sempre recebiam espaço privilegiado nas propagandas publicadas nos outros gibis da editora. O anual chegou às bancas em junho de 1985, meses depois de A Linha da Selva [que saiu em DC Comics Presents #85, nas bancas no início daquele mês]. O Que Aconteceu ao Homem de Aço? foi publicada em Superman #423 e Action Comics #583. São as duas principais séries do personagem, na edição que antecedeu ao reboot do personagem pelas mãos de John Byrne. Eram, portanto, as edições de despedida do Super-Homem “oficial”.

Ele também não foi contratado para escrevê-las como qualquer roteirista. Ele pode ter sido a ficha dois, mas a ficha um era Jerry Siegel [que fez uma pedida muito alta ou foi vetado pelos altos escalões da editora por tê-la processado no passado, dependendo de para quem você pergunte]: ser a segunda opção para escrever uma história dessas nessas circunstâncias é uma prova de prestígio.

O próprio Moore enxergava esse prestígio — e estava encantado.

A série do Monstro do Pântano nem pagava tão bem. A DC vendera todos os direitos do personagem, além daqueles diretamente relativos à publicação da hq, a preço de banana no final dos anos 70 para uma produtora de cinema. Mas, mesmo assim, os royalties que ele recebeu pela sua primeira edição da série [pouco mais de mil dólares] foram superiores a tudo que Marvelman lhe havia rendido ao longo dos três anos de sua publicação.

Ele foi para os EUA duas vezes em dois anos. Teve a oportunidade de conhecer ídolos pessoais, como Joe Orlando e o próprio Julius Schwartz [que Moore admirava como quadrinista e por ter sido agente literário de H. P. Lovecraft]. Na segunda vez, ele foi com a família: a DC enviou uma limusine para buscá-los no aeroporto. Em seguida ele forçaria a barra para levar V de Vingança para a editora – o que afundou os planos de Dez Skinn de vender para uma editora americana em um só pacote todas as séries originalmente publicadas na revista Warrior.

O prestígio de Moore tem um contexto. Nos anos 80, e em grande parte graças aos esforços de Jenette Kahn, a DC agiu de forma agressiva para atrair grandes quadrinistas para a editora. Assim que arrumou o seu caixa, criou um novo plano de pagamento de royalties. O objetivo era atrair grandes nomes para desenvolver séries que seriam lançadas diretamente nas lojas de quadrinhos.

O primeiro grande beneficiado disso foi Frank Miller. Para trazê-lo da Marvel e publicar Ronin, Kahn lhe ofereceu o que as lendas descrevem como o melhor contrato já assinado por um quadrinista nos EUA até aquele momento. Moore, no entanto, foi o primeiro grande sucesso: em 1985, o Monstro do Pântano ganhou os prêmios Kirby de melhor edição, melhor série, melhor escritor, melhor equipe de desenho e melhor capa. Isso são cinco dos doze troféus distribuídos na premiação, sendo que a série só poderia concorrer em oito categorias.

Era um prestígio associado a um método. Moore conquistou esse reconhecimento dissecando super-heróis para reinterpretar os seus elementos de forma mortalmente séria, com o verniz literário que Kahn esperava.

Nas palavras de Dave Gibbons, Moore era o “golden boy” da DC. Também era o roteirista mais sádico e sofisticado que os quadrinhos já tinham visto. Quando A Linha da Selva, a primeira de suas três histórias com o personagem a ser publicada, chegou às bancas, só existia uma dúvida: Como ele torturaria o Homem de Aço?

A Linha da Selva, de Alan Moore, Rick Veitch, Al Williamson e Tatjana Wood

Mas o homem que nos atos e palavras
se deixa dominar por vão orgulho
sem recear a obra da justiça
e não cultua propriamente os deuses
está fadado a doloroso fim,
vítima da arrogância criminosa
que o induziu a desmedidos ganhos,
a sacrilégios, à loucura máxima
de profanar até as coisas santas.
–Sófocles [Édipo Rei, tradução de Mário da Gama Kury]

No início de A Linha da Selva, o Super-Homem é contaminado por um fungo mortal encontrado em um meteorito kryptoniano. Ele vai morrer, mas só depois de ficar delirante e febril e causar um estrago.

Esse pequeno resumo diz muito sobre o tipo de história que Moore queria contar em A Linha da Selva. É o mesmo tipo de história de Marvelman — o tipo de história que garantira a sua chegada à DC: super-herói interpretado de forma niilista e realista.

A diferença está no foco. O niilismo de A Linha da Selva não está nas consequências objetivas do agir do super-herói, mas na fragilidade de sua consciência: ao colocar o Super-Homem na frente da morte, nesta história, Moore pretende falar sobre os medos do herói — ou seja, sobre a sua relação com ele mesmo, e não com o mundo que lhe rodeia. A história é, em primeiro lugar e de forma mais perceptível, uma exploração psicológica: pretende mostrar um Homem de Aço que é frágil e inseguro como um… homem: está a uma super-gripe de perder o controle.

Essa exploração psicológica é realizada através da exposição do delírio do Super-Homem. Exposto ao fungo kryptoniano, a consciência do Super-Homem é fragmentada…

O que é perfeitamente sugerido por Veitch nesse quadrinho: os olhos são considerados um reflexo da vida interior, e a sua fragmentação é sugerida pela forma que ele desenha as veias da íris; círculos perfeitos são símbolos da personalidade integrada, e a pupila do Super-Homem levou uma mordida

…e sua consciência passa a ser disputada por duas facetas de sua personalidade: Super-Homem, o herói, e Clark Kent, o covarde.

O seu “lado Super-Homem”, no entanto, é apenas uma tentativa de negar a morte: ele não pode morrer porque “é uma lenda”. Diante da iminência do seu fim, ao Super-Homem só resta um super-carteiraço:

Enquanto isso, como Clark Kent, o personagem é evidentemente oprimido pelo seu ambiente:

Como você pode ter percebido, os poderes do Super-Homem, nessa história, são uma muleta: apenas escondem a fragilidade de sua consciência. O que Moore nos apresenta com isso é um super-herói desesperado para negar a morte através da auto-afirmação de seus poderes. Ele explode e começa a destruir tudo exatamente tentando convencer-se de que ainda é poderoso como um Homem de Aço, e não fraco e mortal como um… homem.

Isso não é apenas uma exploração psicológica niilista do Super-Homem. Também é um comentário sobre a sua origem no mundo real. Como você deve saber, o personagem foi criado por dois adolescentes não particularmente notáveis. Eles eram, ainda, judeus na década de trinta. Um deles, Jerry Siegel, acabara de perder o pai — que falecera em um assalto à sua loja. É fácil interpretá-lo, portanto, como uma fantasia de escape: Moore sugere que ele é a fantasia de escape dele mesmo.

Isso, por si só, já faria de A Linha da Selva uma excelente história. Mas isso é só metade dela: a metade do niilismo.

A Linha da Selva é uma história realista, e não apenas no seu assunto [a exploração psicológica do Super-Homem]: também o é na sua textura. Ela se preocupa em apresentar alguns elementos do enredo de forma realista: o seu delírio é resultado de um fungo kryptoniano com um nome científico, Avarel Uthotis [“nome vulgar: bolor sanguíneo”], objetivamente descrito em um almanaque de Krypton, e não o efeito bizarro de alguma kryptonita colorida. Ele entra em contato com o fungo no seu trabalho: como jornalista, foi enviado para cobrir a descoberta de um meteorito. Existe, portanto, a necessidade de objetivar o seu estado mental através de uma explicação científica verossímil.

Ao mesmo tempo, no entanto, o delírio do Super-Homem é retratado do ponto de vista simbólico. É uma jornada ao inferno: é difícil ignorar o sentido de sua chegada flamejante em uma selva vermelha habitada por monstros acusadores que jogam na tua cara os teus medos.

Esse mundo mundo simbólico, no entanto, não é falso. Ele é tão verdadeiro quanto o mundo objetivo do qual o Super-Homem foi alienado: ao enfrentar o seu medo da morte, ele de fato está atravessando o seu inferno particular. O primeiro quadrinho da história já faz uma referência a esse duplo significado simultâneo: o Super-Homem está “going south” porque de fato está indo em direção ao sul dos EUA e porque está prestes a morrer [o trocadilho foi perdido na edição da Panini, que traduziu o texto como “ele avança para o sul”].

O personagem portanto, não erra por delirar: erra por perder-se no delírio. E isso ocorre porque ele não enxerga a unidade entre o delírio e a realidade: luta contra o primeiro aferrando-se à segunda.

Não é o que faz o herói da história — o Monstro do Pântano, que encontra um Super-Homem moribundo na selva e é capaz de curá-lo. O Monstro do Pântano consegue curá-lo por não por separar o “mundo objetivo” do “mundo simbólico”, mas por entender que eles são um só e agir nos dois ao mesmo tempo…

…até, finalmente, submergi-lo no “infinito verde” — o ponto em que passado, presente, futuro, mundo objetivo e mundo simbólico se dissolvem em um todo uniforme.

A diferença entre o Super-Homem e o Monstro do Pântano, em A Linha da Selva, é que o primeiro somente é capaz de tratar uma faceta da realidade de cada vez, enquanto que o segundo age em todas elas de forma simultânea — por entender que não são excludentes.

É por isso que o Super-Homem das páginas finais é tão… bobo. Ele ignora completamente a forma pela qual foi curado, e sai voando com a sua roupa colorida por aí, fingindo que está tudo bem. Pode chamar a sua visita ao inferno de sonho febril: pode continuar se enganando, ignorando o que realmente aconteceu e quem é o verdadeiro herói da história.

Não é, no entanto, que A Linha da Selva seja apenas ignorância e covardia. A própria história de A Linha da Selva incorpora elementos divertidos: Cal Ellis, nome que o Super-Homem [Kal-El, entendeu?] apresenta no início da história, é um pseudônimo que já fora usado pelo personagem em Superman #163, de 1963, o que é evidentemente uma referência para nerds de quadrinhos; a história é um spin da proposta básica de DC Comics Presents [promover encontros entre os personagens da editora]: em A Linha da Selva, esse encontro não é consciente.

Semanas depois, chegaria às bancas um gibi em que a proporção niilismo/ humor estaria invertida.

Para o Homem que Tem Tudo, de Alan Moore, Dave Gibbons e Tom Ziuko

Coreuta: Foste, decerto, além daquela oposição?
Prometeu: Sim, curei nos homens a preocupação da morte.
C.: Que remédio achaste para esse mal?
P.: Alojei neles as cegas esperanças.
–Ésquilo [Prometeu Acorrentado, tradução de Jaime Bruna]

O ponto de partida Para o Homem que Tem Tudo, que chegou às bancas na revista Superman Annual #11 só três semanas depois da DC Presents #85, é praticamente o mesmo de A Linha da Selva. As duas histórias começam com o Super-Homem sendo levado para um estado alucinógeno por um organismo alienígena; o seu desenvolvimento trata da natureza do delírio do herói; e o sentido da caracterização do personagem é explicitado pela forma através da qual ele se livra do seu estado.

A diferença, no entanto, está na clave. Se você comparar a forma pela qual o gatilho narrativo que dá início à história é apresentado, facilmente vai concluir que houve uma elevação na miticidade da história. Em A Linha da Selva, o Super-Homem é contaminado por um fungo Kryptoniano, cuja existência é ancorada em um almanaque; o seu delírio é febril. Existe, portanto, uma tentativa de apresentar a situação de forma realista.

Em Para o Homem que Tem Tudo, o Super-Homem entra em estado catatônico por ser dominado pela Clemência Negra: uma “planta telepática” simbionte que “talvez seja mágica”, que faz com que o hospedeiro viva em um mundo de fantasia formado pelo que a planta interpreta ser o seu maior desejo, enquanto se alimenta de sua “bioaura”. Tudo nessa explicação é fantástico.

A própria aparência das duas coisas, o fungo e a planta, sugere que a segunda tem um caráter simbólico. A Clemência Negra lembra uma rosa, o que lhe associa a uma combinação de beleza e espinhos que traduz muito bem a ambiguidade de uma planta chamada “clemência negra” que te imerge em uma alucinação fantástica em troca da tua “bioaura”. Não é uma aparência que se preocupe em ser realista: ela foi escolhida pelo seu conteúdo simbólico.

Enquanto isso, o fungo de A Linha da Selva parece, bom, um fungo.

“Vou revelar-te o que é medo em um pouco e bolor” [T. S. El]

Mas Para o Homem que Tem Tudo ainda é um gibi de Alan Moore, o que faz com que isso tenha alguns níveis interpretativos.

Em A Linha da Selva, o Super-Homem é um personagem mundano que mergulha em um inferno de símbolos: como eu expliquei ali em cima, a moral da história é que ele não é capaz de entender o simbolismo de seu delírio. Em Para o Homem que Tem Tudo a situação é a inversa: Os símbolos estão no “mundo real” da narrativa, enquanto que o seu delírio é mundano e realista.

O Super-Homem de Para o Homem que Tem Tudo sonha com uma vida comum em uma Krytpon que sobreviveu à explosão que lhe trouxe para a Terra. Mas essa Krytpon sofre de problemas muito terrenos: Jor-El, o seu pai, foi expulso do Conselho de Ciência pelo alarmismo de sua previsão apocalíptica furada. Amargurado, entrou em um grupo político reacionário, A Espada de Rao. Esse grupo se enfrenta pelas ruas do planeta com outro igualmente sectário que reivindica a liberação de terroristas/presos políticos exilados na Zona Fantasma, considerada um castigo desumano. A sua amargura lhe fez tão alienado que ele sequer é capaz de lembrar do nome de seus netos.

Mas esse twist tem a sua própria reviravolta: em Para o Homem que Tem Tudo, é a fantasia-realista que explicita o heroísmo do Super-Homem.

Dentro da fantasia, existe uma tensão entre o passado e o presente. Essa tensão é sugerida pelo conflito político do roteiro [entre reacionários e progressistas], por Jor-El e, principalmente, pelo desenho de Dave Gibbons. As roupas dos personagens e a arquitetura da Velha Krypton foram tirados dos gibis do Super-Homem da Era de Prata, como Superman #53 [de Bill Finger e Wayne Boring, publicado em 1948], a primeira reformulação do personagem depois da saída de Jerry Siegel e Joe Shuster…

Superman #132 [Otto Binder e Wayne Boring, 1959]…

…e Superman #141 [Jerry Siegel e Wayne Boring, 1960]:

Enquanto isso, a Krypton moderna tem um ar decadente que deve muito à estética cyberpunk:

A partir do que a história sugere, se pode rastrear a origem dessa decadência a um momento concreto: o momento em que Krypton não explodiu e, consequentemente, o Super-Homem não foi enviado à Terra.

Essa é a origem da amargura de Jor-El, que como pai de Kal-El [nome kryptoniano do Super-Homem, pra vocês que rodaram a disciplina Nerdismo I], representa a Krypton passada:

Essa página, a propósito, é brilhante: ela mostra que a amargura de Jor-El não tem a sua origem no fato de que o passado idealizado de Krypton foi corrompido [aliás: o passado idealizado pelo movimento reacionário era, de fato, ideal!], mas pelo seu ressentimento.

Isso é verdade até mesmo desde um ponto de vista meta. Nos gibis da Era de Prata, Krypton era um lugar idealizado; ao evocar o estilo em que ela era representada naquela época, Gibbons sugere que aquela Krypton era “real” dentro dessa história. E a diferença cronológica entre a Krypton da Era de Prata e a Krypton de Para o Homem que Tem Tudo é que a primeira não explodiu.

Essa tensão entre o passado e o presente é que explica o que significa o heroísmo do Super-Homem em Para o Homem que Tem Tudo.

Conforme é explicado logo no início da história, é possível resistir à simbiose: o problema é que ninguém tentou fazê-lo. O Super-Homem, por outro lado, rejeita a ilusão instintivamente e desde seu início. O primeiro quadrinho que se passa no mundo da ilusão do Super-Homem depois do prólogo é um plano detalhe de sua expressão de dúvida.

Um minutinho para os senhores contemplarem como Gibbons é um gênio da expressão facial.

No resto da página, tudo o que Kal-El faz é constatar o que há de errado no mundo da ilusão. Lyla, por outro lado, parece ser o contra-ataque da Clemência Negra: ela é introduzida como o único elemento colorido de uma página que é roxa e azul [cores frequentemente utilizadas nos quadrinhos para colorir vilões, como o próprio Mogul nesta história] e termina a página desviando a sua atenção de um questionamento sobre a verossimilhança da realidade dos personagens.

A página termina com um panorama do mundo de Krypton que é uma perfeita exposição desse conflito e como ele afeta a integralidade da ilusão. O fundo é formado por torres da Era de Prata; o centro, por apartamentos modernos. No canto inferior direito, uma construção suja, com cara de abandonada, começa a “entrar” na página: a ruína de Krypton é o reflexo da resistência do Super-Homem ao domínio da Clemência Negra.

O que Moore e Gibbons nos estão dizendo é que a principal virtude do Super-Homem não é a justiça ou o modo de vida americano, mas o amor à verdade. Krypton deixou de ser um lugar idealizado no momento em que ela não explodiu porque esse foi o momento no qual começou a ilusão induzida pela Clemência Negra. É o momento no qual a história se tornou “mentira”, e o resultado da mentira, na lógica do Homem de Aço, é a ruína. E o Super-Homem é quem está disposto a reconhecer isso, mesmo que signifique renunciar à ilusão perfeita. Mais do que isso: ele está disposto a olhar a ilusão perfeita nos olhos e dizer “você não é real”.

A história é explícita em caracterizar isso como uma forma superior de virtude. A história tem o seu turning point no momento em que ele se convence da verdade. Antes disso, a bravura e a coragem da Mulher Maravilha são marretadas no chão; a inteligência do Batman é reduzida a um apelo desesperado:

Não é só. Para o Homem que Tem Tudo ainda reserva outra surpresa: não é apenas uma história sobre o heroísmo do Super-Homem. Também é uma história sobre as possibilidades ocultas dos gibis do personagem na Era de Prata: precisamente as histórias nas quais ele era mais heroico.

Como eu disse antes, o mundo externo à alucinação do Super-Homem em Para o Homem que Tem Tudo [e ao contrário de A Linha da Selva] é idealizado. Mas ele é idealizado de uma forma que evoca o tom dos gibis da Era de Prata. Ele faz isso, em primeiro lugar, com diversas referências explícitas ao período. The Super-Key to Fort Superman [Action Comics #241, de Jerry Coleman e Wayne Boring, de 1958] parte do mesmo mote de Para o Homem que Tem Tudo: é aniversário do Super-Homem, e Batman não sabe o que lhe dar de presente.

Em Superman’s Other Life [Superman #132, Otto Binder e Wayne Boring, 1959], o Batman dá outro presente para o Super-Homem: fotos que permitem ele criar uma simulação computadorizada do que seria a sua vida em Krypton se o planeta não estivesse explodido. Em Superman’s Return do Krypton [Superman #141, Jerry Siegel e Wayne Boring, 1960], o Homem de Aço viaja no tempo, retorna para Krypton e inicia uma nova vida – que inclui um relacionamento amoroso com a atriz Lyla Lerrol. Essa história também transborda uma certa melancolia, igualmente presente em Para o Homem que Tem Tudo. Existem também os elementos mais genéricos: Já na primeira página temos o avião invisível da Mulher Maravilha e o Batman passando uma carraspana no Robin.

Existe, no entanto, uma teatralidade nisso tudo. De uma forma que lembra o V-Effekt do teatro de Bertolt Brecht, o leitor é lembrado de que ele está lendo um gibi no estilo daqueles que foram escritos na Era de Prata. Assim, logo depois de cobrar “pensamentos puros” do Robin, Batman olha para o leitor de uma forma cúmplice. É como se ele soubesse que educar o Robin é algo que o leitor espera que ele faça em uma história como essa.

Mais um minutinho para vocês contemplarem como o Gibbons é um gênio da expressão facial.

Da mesma forma, sobre os escombros de uma luta furiosa cujo sentido era a defesa da verdade, o Super-Homem… conta uma mentirinha piedosa para não decepcionar a Mulher Maravilha.

[Incidentalmente, a referência nerd do presente da Mulher Maravilha é seguinte: em Superman #338, de 1979, o Super-Homem conseguiu restaurar a cidade de Kandor ao seu tamanho normal; mas o próprio Super-Homem construiu uma réplica da cidade em Superman #371, de 1982. Acho que a Mulher Maravilha não estava acompanhando com atenção as séries do Homem de Aço!]

Em seguida, a Mulher Maravilha e o Super-Homem se beijam…

Percebam a postura corporal do Batman e do Robin no segundo quadrinho: sério, o Gibbons é um gênio.

…e a explicação que a Mulher Maravilha oferece para a singularidade do momento é inteiramente alheia à lógica interna da narrativa. É como se ela soubesse que as suas histórias são escritas com o objetivo de surpreender o público.

Qual seria o significado disso tudo? Uma explicação possível está no contraste entre a teatralidade do mundo “real” da história e o realismo do delírio do Super-Homem: enquanto a Mulher Maravilha e Batman apostam uma corrida para ver quem chegaria primeiro à Fortaleza da Solidão, o Super-Homem enfrentava no seu mundo interior o drama de um conflito familiar. Seria essa a forma que Moore encontrou de sugerir que, por trás de uma fachada de ingenuidade, a Era de Prata esconde personagens e situações complexas? Que o leitor atento pode encontrar, por trás dos gracejos, dramas humanos?

O editor que decidiu emparelhar Alan Moore com Dave Gibbons nessa história fez uma das melhores escolhas da sua vida. Gibbons é o homem perfeito para desenhá-la. O seu desenho não é tão dinâmico ou simbólico quanto o de Veitch, mas isso joga em seu favor: os gibis da Era de Prata também não eram.

Como na Era de Prata, a narrativa de Para o Homem que Tem Tudo é clara e literal, com planos médios, objetivos, grades de quadrinhos regulares, apresentação literal e não irônica de elementos fantásticos e simbólicos. O Super-Homem é até mesmo entroncadinho como o de Wayne Boring.

Mas ele não se limita a emular o estilo dos gibis da Era de Prata. Ele pode desenhar os personagens com sungas que mais parecem fraldões e como se eles acabassem de ter saído de um dos guias do José Luis Garcia Lopes. Mas ele também dá para eles volume e textura: dois recursos que sinalizam um certo realismo na representação das figuras.

Ele pode desenhar elementos fantásticos da história de forma literal e não irônica, mas eles exercem uma função simbólica ou narrativa. Já falei sobre a Clemência Negra, um excelente exemplo desse recurso. Existem outros: o Super-Homem usa a sua visão calorífica para atacar Mongul não apenas porque ele tem esse poder, ou porque o seu uso era pertinente, ou por qualquer outra explicação interna à lógica da história; mas também por apresentar a Gibbons a oportunidade de desenhá-lo com os olhos avermelhados e sem pupilas, indicando a sua raiva descontrolada.

A sala da Fortaleza da Solidão em que transcorre essa cena é uma espécie de zoológico alienígena, habitado, em um esforço para inserir a ação raivosa do Super-Homem em um mundo bizarro, por monstros como esse:

Como último exemplo, perceba como na sequência de quadrinhos aí de baixo o desenho dá enfase para as mãos. Ele faz isso através de linhas indicativas de movimento [no segundo e no último quadrinho], da onomatopeia em formato de flecha [terceiro] e de de forma bem explícita no quarto. As mãos são o instrumento que os humanos tem para agir no mundo. São, consequentemente, uma representação simbólica de seu poder de ação. Na sequência, o que Gibbons quer mostrar exatamente a diferença entre o poder dos dois personagens:

Finalmente, ele pode usar, no geral, planos médios, objetivos e grades regulares, como faziam os gibis da DC na Era de Prata. Uma das grandes diferenças entre a DC e a Marvel na época, aliás, era essa: os desenhistas da Marvel podiam e eram incentivados a sacrificar a inteligibilidade da história em favor de sua espetacularidade. Mas as exceções não são usadas em cenas de ação: ao contrário, são utilizados em momentos de clímax emocional.

De novo, tenho aqui na manga três exemplos. O primeiro é da única vez em todo o gibi em que a ação rompe com os limite do quadrinho.

Como eu já disse, a página da qual saiu esse quadrinho é brilhante: ela dá a profundidade da Fossa das Marianas para Jor-El. O ápice é, precisamente, o momento em que ele destrói algo belo da Velha Krypton ao constatar que o comentário de seu filho Kal-El foi certeiro.

O segundo exemplo é esse:

Não é o único contra-plongée da história, mas é o mais anguloso, no seu segundo maior quadrinho, um dos poucos em que a colorização não é usada de forma objetiva. É o único, portanto, que se usam três elementos não objetivos de uma vez só. Não é, de novo, uma cena de ação: é o momento em que o Super-Homem desperta de seu sonho, e os recursos utilizados servem apenas para enfatizar o seu estado emocional.

O terceiro exemplo está nas duas páginas seguintes:

É verdade que esse é um momento que precede uma ação. Mas perceba como o primeiro golpe [última ação dessa sequência] quase acontece fora do quadrinho. Os recursos narrativos utilizados são para criar antecipação. Moore e Gibbons fazem isso reduzindo a velocidade da narrativa ao extremo: Moore, enchendo os quadrinhos com o seu texto de apoio barroco; Gibbons, colocando um objeto sob a força da gravidade dentro da cena, para que você possa acompanhar a lentidão de sua queda [a cabeça da Mulher Maravilha, que cai milímetros entre o último quadrinho da primeira página e o quarto da segunda].

Gibbons também faz outra pirueta narrativa. Comparem o ponto de saída do Super-Homem na página 26 com o seu ponto de entrada na página 27: é como se o desenhista quisesse sugerir que o personagem é tão poderoso que furou a própria página:

No fim, Para o Homem que Tem Tudo reserva mais uma reviravolta – uma que sugere que Moore não estava apenas escrevendo uma homenagem à Era de Prata, mas também desenvolvendo algum tipo de consciência crítica sobre o seu papel como torturador de super-heróis: é possível interpretar Mongul como a contraparte maligna e fictícia do próprio escritor.

Existem elementos incidentais que sugerem essa comparação: os nomes Mongul e Moore são parecidos; o vilão alienígena [o que poderia ser um sinal à origem estrangeira do escritor] fala em frases longas, com uma linguagem rebuscada, artificial e irônica — como Moore, ao menos em sua persona pública.

Mas ela se revela substantivamente é no agir. Moore era o escritor que se tornara conhecido por transformar a vida interior dos personagens dos quadrinhos em uma tortura agônica: basicamente o que Mogul faz com o Homem de Aço em Para o Homem que Tem Tudo. E o sonho do vilão era espalhar essa agonia pelo universo — o que pode ser facilmente comparado com os planos do escritor [ou, pelo menos, os planos que tinham para o escritor] para o Universo DC.

Mongul, no entanto, é o vilão. Isso porque Para o Homem que Tem Tudo não é apenas o inverso de A Linha da Selva: com personagens da Era de Prata que são dominados por delírios realistas, o gibi é o anti-Marvelman – o gibi do herói realista que sonhava que a sua vida era uma aventura infantil, e que definira a carreira de Moore até aquele momento. Depois de quase cinco anos, estaria ele cansado de torturar super-heróis?

O Que Aconteceu ao Homem de Aço?, de Alan Moore, Curt Swan, George Pérez, Kurt Schaffenberger e Gene D’Angelo

Até o dia fatal de cerrarmos os olhos
não devemos dizer que um mortal foi feliz de verdade
antes dele cruzar as fronteiras da vida inconstante
sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento!

–Sófocles [Édipo Rei, tradução de Mário da Gama Kury]

O que Acontece com o Homem de Aço? é um comentário de Moore sobre Crise nas Infinitas Terras e os rumos editoriais da DC.

É fácil entender o motivo disso. O Que Aconteceu ao Homem do Amanhã? é a última história do Super-Homem pré-Crise. É compreensível, portanto, que ela trate sobre o assunto. E a crise é uma história largamente interpretada em termos extra-narrativos: isso pode ser injusto com Marv Wolfman e George Pérez, mas a maxissérie não é lembrada pelo simbolismo mítico de sua história. Ela é lembrada como o primeiro reboot do universo DC: como o momento em que a editora decidiu oferecer grande parte dos seus personagens em sacrifício à cronologia coerente e ao seu novo público alvo [jovens adultos, e não mais crianças e pré adolescentes].

Moore aborda esse assunto frontalmente. A próprio texto de introdução da história é, ao mesmo tempo, uma homenagem às histórias de mundo imaginário da Era de Prata da DC [uma das mais conhecidas, aliás, é exatamente a morte do Super-Homem em Superman #149, que começa…

…com um aviso parecido com o de O Que Aconteceu ao Homem de Aço?] e uma crítica ao projeto editorial de Crise, ao insinuar que é impossível, ou ao menos bobo, dividir histórias de super-heróis como mais ou menos “verdadeiras”.

Esse não é o único ponto da proposta editorial de Crise que Moore quer mostrar que não tem sentido. O que a história faz é traduzir os fundamentos e objetivos daquela proposta em termos narrativos e aplicá-los de forma irônica.

Assim, ela é protagonizada por um Super-Homem que se vê como antiquado e desnecessário [ou seja, como a própria editora enxergava a sua versão pré-Crise] que, depois de ser atacado por versões mais violentas dos seus vilões tradicionais, se isola na Fortaleza da Solidão com o seu elenco de apoio em busca de proteção — onde recebe da Legião de Super-Heróis, de forma involuntária, a notícia de sua morte iminente ao presentear-lhe com uma estátua dourada que é uma homenagem ao seu heroísmo.

Com esse enredo, o que a história faz é contrastar a ingenuidade dos personagens com a dramaticidade das situações. Assim, Lana Lang decide se banhar em um lago mágico em busca de super-poderes, de forma que possa ajudar o Super-Homem. Acaba, no entanto, ouvindo por acaso, graças à super-audição recém adquirida, o desespero do Super-Homem com a impossibilidade de assumir o seu amor por Lois Lane para não partir o seu coração.

Não é uma situação inédita: ela lembra a trama de Superman’s Girlfriend Lois Lane #21, de 1960, de Superman #162, de 1963, e o final de Superman #333, de 1979. São histórias que foram desenhadas por Kurt Schaffenberger e Swan, que formam com Pérez a equipe de desenhistas de O Que Aconteceu ao Homem de Aço?.

O primeiro desses gibis é a referência expressa da história. Nele, Lois Lane e Lana Lang se banham em um lago mágico para adquirir super-poderes, oportunidade em que assumem as identidades de Super-Lois e Super-Lana para disputar o amor do Super-Homem. No segundo, o Super-Homem se vê obrigado a decidir com qual das duas vai se casar. A trama do terceiro, que tem por vilão o Bizarro, trata do triângulo amoroso Super, Lois e Lana, e termina com a última flagrando o primeiro se declarando pra segunda.

Na primeira história, ele é salvo pelo gongo: os poderes das duas heroínas se esvaem antes dele revelar a sua decisão [naturalmente, uma vez que elas se tornaram pessoas comuns, ele não pode mais se casar com nenhuma das duas]. Na segunda história, ele se divide em dois, Super-Homem-Azul e Super-Homem-Vermelho, e se casa com as duas:

Até o Jimmy casa!

Em O Que Aconteceu ao Homem de Aço?, no entanto, a Super-Lana se lança em uma missão suicida, não se sabe se por ressentimento ou desilusão [“Nós somos coadjuvantes, Jimmy, mas vamos mostrar a eles que ninguém amou o Super-Homem como nós. Ninguém!”]. É uma saída mais depressiva, escabrosa e violenta do que aquelas de Superman’s Girlfriend Lois Lane #21 e Superman #162, e do que a triste resignação de Lana em Superman #333.

Não é uma abordagem mortalmente séria, mas abertamente irônica. O que Moore está fazendo não é mais refletir sobre o que seria um super-herói real: ele está mostrando como é impossível e, no fim, cruel, dar para um super-herói o tratamento “for mature readers”.

Existem outros dois momentos na história que exemplificam isso muito bem. O primeiro deles é evidente consternação e incapacidade do Super-Homem lidar com a crise no matrimônio de Perry e Alice White:

O segundo é a morte de Krypto, o super-cão: um dos elementos mais bobos dos gibis do Super-Homem ganha dentes afiados e ataca, rosnando, o Homem de Kryptonita — sem perceber que, com isso, ele mesmo está morrendo. Se trata de uma metáfora: o que a cena nos diz é que transformar o super-cão em um animal violento é matá-lo.

A ironia funciona em grande parte graças ao desenho. Curt Swan desenhou o Super-Homem pré-Crise por quase quarenta anos e era uma escolha óbvia para desenhar a sua última história. Mas aqui ele é usado por Moore quase como uma paródia dele mesmo. A capa de Superman #423 é um excelente exemplo disso:

Ela segue um padrão usual na Era de Prata [lembra a de Superman #132, de 1959, por exemplo], mas que já completamente antiquado em 1986, e apresenta o encontro entre Lex Luthor e Braianic…

…que termina assim…

…dessa forma:

Existe um evidente contraste entre a seriedade das situações narradas e a forma pela qual elas são desenhadas. Assim, não basta que Lana Lang se lance em um sacrifício final por ressentimento: ela precisa fazê-lo com o seu uniforme de Super-Lana. Os super-heróis que estão tentando entrar na barreira que isola a Fortaleza da Solidão são desenhados como bonequinhos nas mãos de uma criança, contrastando com a solenidade do texto:

Até mesmo as oportunidades em que Swan não desenha uma grade de quadrinhos regular [outra marca dos gibis pré-anos 70] ele é antiquado:

Neal Adams, 1969.
Curt Swan, 1986.

Esse é um dos problemas da nova colorização digital do gibi. Em um gibi que se esforça em reproduzir uma estética retrô, e que é um comentário sobre as histórias de um determinado período, o uso de recursos que somente estariam disponíveis nos anos 90 [degradês para preencher fundos e texturas digitalizadas, principalmente sombras no rosto dos personagens] estragam um pouco o efeito.

Dito isso, também é verdade que a colorização digital se esforça no sentido contrário. Ela é basicamente literal: usa colorização de forma narrativa, até porque o contrário seria impossível, mas não de forma ousada. O que eu quero dizer é que os monstros dessa página…

…são verde e roxo por motivos narrativos [são cores usadas para colorir vilões por um motivo], mas que essa não é a forma mais espectacular de introduzir essas cores nessa página. E isso, por sua vez, é coerente com a proposta estética dos gibis da Era de Prata da DC: eles não eram graficamente arrojados e provavelmente seriam coloridos dessa forma se o recurso digital estivesse disponível na época.

Mas O Que Aconteceu ao Homem de Aço? não é apenas uma crítica irônica à política editorial da DC. Também é uma história sobre o próprio Super-Homem.

O final da história revela uma reviravolta. Ao contrário do que o início da história sugeria, ela não termina com a morte do Super-Homem, mas com uma renúncia: ele deixa de ser um super-herói depois de matar Mxyzptlk [que se revela o verdadeiro vilão da história: de forma bastante sugestiva, ele cansou de travessuras e se tornou… mau], simula a própria morte e casa com Lois Lane, com quem mantém uma vida a la Jetsons.

Como em Para o Homem que Tem Tudo, essa reviravolta não é apenas um plot-twist barato. Ela sugere uma nova interpretação para tudo que sabíamos da história até aquele momento.

O Que Aconteceu ao Homem de Aço? é contado desde o ponto de vista de Lois Lane, em uma entrevista, no futuro, sobre a morte do Super-Homem. Ao final da história, quando nos é informado que a morte do Super-Homem é uma farsa que ele criou para esconder das pessoas que desistiu de ser um super-herói, nos damos conta de que ela não é uma narradora confiável.

Pode não ser um layout muito ousado, mas é excelente: sugere que a história saiu da cabeça de Lois

Não há como saber que partes da história contada não correspondem à verdade. Nós nunca vemos a kryptonita dourada, que supostamente deixou o Super-Homem sem poderes. Nós não sabemos se ele de fato desistiu de ser um super-herói por ter infringido o seu código moral, como Lois contou. Nós só sabemos que ele criou uma história que lhe permitisse sair de circulação sem prejudicar a sua lenda.

Diversas histórias de Moore apresentam personagens que tem um vislumbre inicial da multiplicidade de facetas da realidade que nós, pessoas comuns, por opção ou por incapacidade, não conseguimos enxergar em sua complexidade. São personagens que entendem que a existência daquelas camadas mas que, ao contrário do Monstro do Pântano em A Linha da Selva, tentam controlá-las através da criação de uma nova narrativa que falseia a realidade e ilude as pessoas que não a compreendem.

De cabeça, consigo pensar em três personagens que fazem isso: Dr. Gargunza, Ozymandias e Dr. Gull. Seria essa mais uma ironia de O Homem de Aço? Ao renunciar ao seu heroísmo, teria o Super-Homem se tornado um… vilão?

Super-Homem Rei

Os homens todos erram
mas quem comete um erro não é insensato,
nem sofre pelo mal que fez, se o remedia
em vez de preferir mostrar-se inabalável;
de fato, a intransigência leva à estupidez.

–Sófocles [Antígona, tradução de Mário da Gama Kury].

Uma das principais características de uma tragédia é que a sua trama segue uma estrutura bem definida. Começa com a hamartia: uma falha do protagonista, frequentemente relacionada com o auto-conhecimento. É a introdução da história.

Ela é seguida de uma ascensão: o momento da história em que o protagonista da história se coloca em uma situação de destaque, se torna um símbolo ou um líder. Ele chega ao topo do arco: é o nó.

E aí que começa o desenlace. No ápice da “roda da fortuna”, ocorre a peripeteia: é a reversão de sua sorte, o momento em que forças superiores se impõe com base na sua falha original. A reversão da sorte é seguida do pathos: a longa queda do protagonista, na qual a sua falha, frequentemente, é purgada. Com a peripeteia, ou durante pathos, ou em seu final, o protagonista reconhece a sua falha: lhe é revelada uma verdade fundamental sobre ele mesmo. É a anagnorisis.

Com a catharsis, a purgação definitiva do protagonista. Às vezes isso exige que ele arranque os próprios olhos, mas o importante é que a falha tenha sido resolvida. A história conclui: a ordem está restabelecida.

Não dá para ignorar que A Linha da Selva, Para o Homem que Tem Tudo e O Que Aconteceu ao Homem de Aço? formam um arco trágico definido nesses termos.

A Linha da Selva é a introdução. Em relação ao Super-Homem, a história termina com o personagem ignorando uma verdade essencial sobre ele mesmo: a sua visão sobre a realidade é limitada, e isso é decorrente de seu medo da morte; ele ignora as facetas da realidade nas quais não é um ser-superpoderoso, o que é uma forma de auto-ilusão covarde. Existe uma contradição entre o seu eu verdadeiro e o essencialmente falso heroísmo que ele projeta. Em outras palavras: é uma história que estabelece hamartia.

Sobre essa limitação, ele é capaz de construir o seu heroísmo. Para o Homem que Tem Tudo é inteiramente construído sobre essa contradição. Ele é o maior dos heróis, ao mesmo tempo em que sonha em ser uma pessoa comum. Noutras palavras, um mortal, não necessariamente uma lenda. No final, a mais heróica de suas virtudes resulta ser o amor à verdade. Anagnorisis não pode estar muito longe disso.

De fato, O Que Aconteceu ao Homem do Amanhã? praticamente começa com a reversão de expectativas. Esse é o ponto da página três, com o Super-Homem surpreso com o poder destrutivo do Bizarro.

A reversão é seguida de um desfile de derrotas, que culmina com o Super-Homem rodeado de amigos e inimigos mortos e contemplando o sentido de sua existência. É o momento em que ele decide “morrer”. É o momento da anagnorisis.

Se você pensar em O Que Aconteceu ao Homem de Aço? como o desenlace de uma tragédia, a farsa da morte do Super-Homem toma um novo significado. Para entendê-la, é necessário compreender em que consiste a revelação que ele teve nesse momento:

Literalmente, o Super-Homem viu na estátua que ele ganhou da Legião dos Super-Heróis o projetor da Zona Fantasma. É o aparelho que ele usa em Mxyzptkl de forma a causar a sua morte. Essa, por sua vez, leva à sua renúncia por ter quebrado o seu juramento de não matar.

No entanto, ao longo da história, o Super-Homem reflexiona exatamente sobre o seu heroísmo. Ele não se vê mais como um herói, mas como um covarde. E isso é representado precisamente pela estátua dourada, um símbolo do ideal que ele não se vê capaz de alcançar.

O “homem” contempla o “super”.

Essa estátua é a verdade kryptonita dourada. Ao contemplá-la, o Super-Homem não enxerga o projetor da Zona Fantasma: ele enxerga a lenda. Ele se dá conta de que não pode se tornar essa lenda agindo literalmente. Ele só pode fazer isso como… lenda.

A história que Lois conta, portanto, não é uma manipulação que tem por objetivo esconder a verdade. Ela tem por objetivo revelá-la. Essa mensagem é que o Super-Homem renunciou aos seus poderes e morreu por não estar à altura de seus ideais; e que por isso mesmo ele é o maior herói de todos os tempos.

Noutras palavras, a forma que o Super-Homem encontrou para se tornar o maior super-herói de todos os tempos foi se transformar em uma história.

É verdade que essa é uma história imaginária, mas… não são todas?

Epílogo: Declínio e Queda do Império Mooriano

There are people. There are stories.
The people think they shape the stories,
but the reverse is often closer to the truth.

–Alan Moore [Swamp Thing Annual #2]

Watchmen #1 chegou às bancas americanas em junho de 1986, uma semana antes de Superman #423 [a primeira parte de O Que Aconteceu ao Homem de Aço?]. Alan Moore era o golden boy da DC e aquele era o auge da relação. Watchmen não apenas se tornaria uma das melhores hqs de todos os tempos; também seria, em tese, um dos melhores contratos que um quadrinista já assinara. Alan Moore e Dave Gibbons teriam direito a royalties sobre a venda dos gibis e de dos produtos derivados. Os personagens se tornariam de propriedade da dupla de quadrinistas um ano depois que deixassem de ser utilizados pela editora. Parecia justo.

Em menos de um ano, ele romperia definitivamente com a editora.

O primeiro problema no paraíso foi… um bóton. A DC enviara para algumas lojas de quadrinhos uma réplica do bóton do Comediante para ser distribuído junto com as edições de Watchmen. Moore e Gibbons, pelo contrato assinado, tinham direito a royalties sobre produtos derivados da série — mas não sobre itens promocionais, que, em tese, não tinham valor comercial.

A expressão chave, no entanto, é “em tese”. As lojas de quadrinhos começaram a vender o bóton de forma separada das revistas — como um produto. A situação criou um impasse que, no fim, foi resolvido pelo pagamento de um bônus de aproximadamente mil dólares aos quadrinistas. Moore e Gibbons interpretaram os obstáculos criados para pagamento desse troco como mesquinharia.

No meio do caminho, ocorreram outros desencontros: assim que a série se tornou um sucesso [ou seja, imediatamente], o departamento de marketing da DC começou a trabalhar com a ideia de lançar séries derivadas [como The Comedian in Vietnam e Rorschach’s Journal]. Moore e Gibbons imediatamente apresentaram as suas restrições à ideia. Dois: rapidamente se tornou claro que o retorno dos direitos da série aos quadrinistas era uma miragem; ela foi relançada como encadernado pela primeira vez no mesmo ano em que foi concluída, 1987. De fato, desde então, não saiu de catálogo e, consequentemente, os seus direitos não reverteram para Moore e Gibbons.

Existiam, ainda, alguns problemas paralelos. Em 1986, a DC flertou com a ideia de submeter as suas séries a algum sistema de classificação etária. Diversos quadrinistas, entre os quais Frank Miller, Marv Wolfman [que escrevia a série dos Novos Titãs] e o próprio Moore, se opuseram de forma veemente à ideia: o próximo passo lógico à implementação de categorias etárias seria promover mudanças nas histórias publicadas para que elas se adequassem em uma das categorias. Diante da objeção veemente de seus principais quadrinistas, a editora recuou. No fim, se limitou a colocar o famoso “for mature readers” na capa de algumas revistas.

Também não dá para ignorar que a DC provavelmente não tinha em mente que Moore fosse escrever histórias como O Que Aconteceu com o Homem de Aço?. Ela é, acho que ficou claro, uma história genial. Mas também é uma sátira da administração editorial da DC. Pior: ela termina usando o principal personagem da editora em tom debochado. A conotação sexual da piscadinha que o Super-Homem dirige para o leitor no final da história está no nível da revista MAD.

Moore não está rindo do personagem, mas da domesticidade de sua vida suburbana-cinquentista de ambientação futurista — de forma que é até positiva: o objetivo é entregar para o leitor uma despedida feliz [trocadilho involuntário]. Mesmo assim, é deboche: está longe da sutileza de Para o Homem que Tem Tudo.

A gota final foi um comentário de Jenette Kahn no final de 1986. Ela fora para Londres com o produtor Joel Silver tratar com Moore e Gibbons sobre a adaptação para o cinema de Watchmen. Nas palavras do próprio Moore

“Pelo que eu lembro, nós estávamos no lobby de um hotel. Primeiro encontramos Jenette Kahn. Joel Silver chegaria depois. E enquanto esperávamos ele chegar, Jenette Kahn disse que eles estavam conversando sobre fazer prequelas para Watchmen, incluindo uma que será escrita por Andy Helfer […]. E então ela disse ‘mas é claro que nós não faríamos isso se você ainda trabalhasse para nós’. E eu fiquei em silêncio enquanto processava aquilo. Acho que Dave Gibbons disse ‘bom, me disseram que vocês não fariam isso de qualquer forma’, e ela pareceu aceitar isso. Mas eu fiquei pensando: ‘você acabou de me ameaçar, eu sei o que foi isso, não sei se você pode fazê-lo, mas você acabou de me ameaçar e não é assim que eu quero conduzir as minhas relações comerciais”.

Ao chegar, Joel Silver sugeriu que o Dr. Manhattan fosse interpretado por Arnold Schwarzenegger, o que também não deve ter ajudado muito.

Fica bastante claro que Moore passara a enxergar a DC como um monstro corporativo mesquinho, ameaçador e controlado pelo departamento de marketing, e não pelo talento criativo. Uma boa palavra para descrever essa mudança de visão é “revelação”. Outra, anagnorisis.

Visto dessa forma, é fácil fazer um paralelo entre a relação de Moore com a DC e as histórias que ele escreveu para o Super-Homem.

Moore chegou à DC em uma posição de ingenuidade. Aparentemente, acreditava que a editora era uma comuna angélica de liberdade criativa que tinha por missão transformar quadrinistas em milionários.

Esse, evidentemente, não era o caso: as próprias histórias que inspiraram e foram homenageadas por Moore foram escritas sob a editoria de Mort Weisinger, que não apenas foi um dos mais tirânicos editores da história dos quadrinhos, como foi o homem que forjou a marca e o apelo comercial do Super-Homem [muitas vezes às custas de patrolar o talento criativo a sua disposição].

Com base nesse erro, cuja existência se podia vislumbrar em gibis como Superman: O Que Aconteceu ao Homem de Aço?, a relação entre os dois alcançou o seu auge. No auge, ocorreu uma reversão das expectativas, que foi seguida de uma sequência de desavenças que culminou em choro, ranger de dentes e descrença: na revelação da verdadeira natureza da editora e do erro de Moore.

Se existe uma diferença, ela está no alcance da ingenuidade de Moore e na lentidão de sua revelação. A DC não se tornou uma máquina do mal na segunda metade da década de 80. Ela ainda era uma editora em busca de talento criativo para manter a longevidade de suas propriedades. Mas você não consegue fazer isso por setenta anos sem tomar decisões difíceis sobre a distribuição de bótons. E Moore somente contratou um advogado para estudar o contrato de Watchmen em 2011. É possível que até então ele mesmo nunca o tivesse lido.

Moore pode ter percebido isso de forma lenta e limitada. Não importa: é mais importante que o leitor perceba a anagnorisis de sua história. Ela está lá, junto com a hamartia, a peripeteia, o pathos e a catharsis. É um desses casos em que a vida imita a arte: infelizmente, na forma de tragédia.

Superman: O Que Aconteceu ao Homem de Aço?
Alan Moore, Curt Swan, George Pérez, Kurt Schaffenberger, Gene D’Angelo, Rick Veitch, Al Williamson, Tatjana Wood, Dave Gibbons e Tom Ziuko
[Panini, 2013]