O Homem-Aranha de Stan Lee e John Romita: Com Grandes Poderes, Grandes Choques Geracionais

Steve Ditko, o co-criador do Homem-Aranha, deixou de desenhar a série do personagem na edição #38. Isso foi no início de 1966: um dia ele chegou na redação da Marvel, deixou as páginas originais do gibi com a secretária de Stan Lee e pediu que ela lhe avisasse que aquilo seria tudo. Ele nem desenhou a capa de sua última edição, que foi montada no bullpen a partir de quadrinhos do interior do gibi.

O motivo pelo qual Ditko deixou a série é objeto de frequente especulação entre o nerdismo de quadrinhos. Seria por não ser reconhecido [e consequentemente remunerado] como seu escritor? Isso não explica porque ele deixou a série naquele momento, uma vez que essa situação perdurava há pelo menos um ano; e Ditko pediu demissão no mesmo dia em que receberia um aumento de cinco dólares por página.  

Seria a divergência que ele mantinha com Lee sobre a identidade do Duende Verde? Ditko queria que fosse um personagem novo e desconhecido, enquanto Lee queria que fosse Norman Osborn. De novo, isso não explica porque Ditko deixou a série naquele momento, já que esse problema existia há anos [a primeira aparição do personagem fora em Amazing Spider-Man #14]. Também não parece coerente com outras coisas: foi Ditko que sugeriu que o Duende Verde fosse um humano [e não um… duende verde]: não é, portanto, como se o personagem fosse uma ideia que Lee tivesse criado e nutrido desde sempre, e sobre a qual estivesse disposto a se indispor com Ditko. E o recurso narrativo [vilão de identidade secreta] já fora utilizado em edições anteriores. Existiam, portanto, precedentes em que a diferença entre os dois sobre o assunto fora resolvida de forma satisfatória.  

Uma explicação mais narrativa e menos fofoqueira é a seguinte: história que Ditko tinha para contar chegou ao fim. É bastante claro que ele tinha um objetivo: mostrar como Peter Parker se tornou um herói, contra tudo e contra todos. Também parece evidente que ele fez isso em The Amazing Spider-Man [ASM a partir de agora] #33. Daí só se precisa dar um pulinho para concluir que Ditko viu nos meses seguintes que não fazia mais sentido que ele permanecesse na série, motivo pelo qual a edição #38 parece uma paródia: tem todos os elementos das outras histórias do Homem-Aranha, menos o sentido.

O próprio Lee deve ter farejado que Ditko estava perto do fim: talvez a continuidade da série exigisse uma mudança. Ele parecia preparado para isso.   Já no final de 1965, ele convencera John Romita a voltar a trabalhar com quadrinhos. Romita já havia trabalhado para a Marvel [qualquer que fosse o nome da editora na época] nos anos 50. Era um nome de sua confiança, treinado por Joe Maneely — outro desenhista da confiança de Lee, e que certamente teria ocupado um lugar de destaque na própria Marvel se não fosse a sua prematura morte em um acidente de trem.

Lee trouxe Romita de volta para os quadrinhos através da série do Demolidor, que, na época, era um personagem derivado do Homem-Aranha. No início de 1966, isso se tornou ainda mais parecido com um teste: Daredevil #17 tem o próprio Homem-Aranha como personagem convidado.

Romita não era apenas um quadrinista confiável: ele era um company man e um desenhista puro e duro, que não apresentaria grandes objeções às ideias de Lee. Quando Ditko deu as costas para a secretária da Marvel, tudo estava pronto: Romita estava preparado para substituí-lo. Estava preparado para deixar que Lee finalmente escrevesse o seu Homem-Aranha.

Joga o moleque na parede

A primeira diferença decorrente da substituição de Ditko por Romita é a mais óbvia. Em que pese Romita tenha passado mais ou menos um ano se esforçando para imitir o traço e a narrativa de Ditko [principalmente no acabamento do traço, na quantidade de quadrinhos por página e no “estilo” dos personagens], existe um mundo entre os dois:

Ainda que sejam contemporâneos, as origens dos dois são diferentes: Romita é do Brooklyn, onde nasceu em 1930; Ditko, da pequena Johnstown, na Pensilvânia, onde nasceu em 1927. Ainda que tenham começado a trabalhar com quadrinhos mais ou menos na mesma época, os caminhos que os dois trilharam foram diferentes: Ditko se formou como quadrinista desenhando gibis de terror e ficção científica; Romita, desenhando gibis de romance para a DC. Em consequência disso, enquanto o primeiro desenha pessoas estranhas, suspeitas e magrelas, em um estilo que lembra o dos gibis da EC, o segundo desenha pessoas bonitas e bem-vestidas com um traço limpo que lembra a arte pop — de fato, diversos quadros de Roy Lichtenstein foram criados a partir de quadrinhos de Romita.

Girl’s Romance #81 [1952]
We rose up slowly [1964]

Mais especificamente, a diferença entre o que Ditko e Romita fizeram na série pode ser resumida em três pontos: os personagens que Romita desenha são mais bonitos, estereotipados como em um comercial de margarina; a narrativa é mais dinâmica; e o desenho, mais realista.

O primeiro ponto é facilmente perceptível nas personagens femininas. Durante muito tempo Romita foi considerado “o” desenhista de mulheres dos quadrinhos americanos, como um Milo Manara de censura livre mundo dos super-heróis. Uma de suas atribuições na Marvel, inclusive, era retocar as mulheres que Jack Kirby desenhava.

Lee estimulava [conforme os rumores, a pedido de Martin Goodman, que reclamava que as mulheres desenhadas por Ditko eram feias; Goodman, no final das contas, era dono de uma editora de revistas masculinas]. Inclusive entregava para Romita revistas de moda feminina para que ele se inspirasse:

Ele não tirou esses modelitos da cachola.

Ajuda que Romita tenha um excelente senso de design. Em ASM #86, por exemplo, ele reformula o uniforme da Viúva Negra com excelentes resultados:

Antes…
…e depois

Parker, por outro lado, foi reformulado por inteiro. Ele não é mais um nerd paranoico que, no mundo pós-Columbine, algum psicólogo diagnosticaria como um possível serial killer: ele tem até uma moto!

Também é bastante perceptível que os vilões ganharam um face lifting: eles não apenas parecem menos sinistros, mas parecem mais vilões de um gibi de super-heróis. Usam, por exemplo, uniformes coloridos:

A narrativa dinâmica e o realismo do traço são dois instrumentos para alcançar o mesmo objetivo: jogar a molecada na parede de empolgação.

O dinamismo, de novo, é fácil de perceber: Romita diminui o número de quadrinhos por página [do 3×3 padrão de Ditko para 3×2], o que faz com que os quadrinhos sejam maiores e as cenas, mais claras. Ele também não é tão preso a uma grande de quadrinhos fixa, e usa layouts mais dinâmicos:

Também é verdade que essa página é de ASM #67: a história tem por vilão
o Myterio, então o layout é especialmente diferente para apresentar ao leitor
os efeitos dos poderes dele sobre a percepção do Aranha

Ele também dedica mais quadrinhos às sequências de ação, de forma que elas possam fluir de forma dinâmica, ainda que sem prejuízo de que a cena seja clara — o Ditko, por outro lado, costuma desenhá-las da forma mais esquemática possível; um bom exemplo é o primeiro anual da série, em que elas se resolvem basicamente em um splash-page. Em ASM #61, entre as páginas três e sete, temos um belo exemplo do trabalho de Romita [ao lado de Don Heck e Mike Esposito, os arte-finalistas] nesse sentido:

Existem algumas coisas em funcionamento nessas páginas que são legais de perceber.

O grid de quadrinhos dessas páginas é espelhado: isso é facilmente perceptível nas páginas 4, 5 e 6 [que são o centro da ação, apresentada em quadrinhos de tamanho regular pontuados por quadrinhos maiores com os momentos mais impactantes], mas também é o caso das páginas 3 e 7: a página 3 tem três quadrinhos na sua segunda fila, mas os dois primeiros retratam uma ação que produz reflexo em dois lugares — formam uma unidade. Esses dois quadrinhos, somados, tem o tamanho do terceiro: então a fila está dividida em duas ações, cada uma ocupando o mesmo espaço na página.

O retângulo verde e o vermelho tem exatamente o mesmo tamanho

A ação não foi desdobrada em dois quadrinhos por acaso. Isso faz com que o terceiro quadrinho da fila seja o maior da página. Ele é utilizado, precisamente, para mostrar o Homem-Aranha pulando pela janela: saindo, portanto, de um ambiente confinado por quadrinhos estreitos. Para dar ainda mais sensação de espaço, Heck/Esposito se asseguram que o cenário esteja cheio de linhas paralelas em direção ao horizonte, como a um ponto de fuga, sugerindo profundidade.

Em relação à página 7, o layout mostra como a cena de ação desacelera [os dois primeiros quadrinhos da página 7 são menores que os quadrinhos das páginas 4, 5 e 6] e se fragmenta em outras ações [os quadrinhos da segunda linha são menores ainda]. Veja que o que desacelera é a ação, não a velocidade de leitura: os quadrinhos são menores precisamente porque a ação que eles retratam é menos importante.

Voltando para a página 3, é interessante observar como os quadrinhos de sua primeira linha interagem entre entre si, de forma que eles pareçam uma ação fluída, ainda que todos os desdobramentos da ação não estejam desenhados [não vemos a Gwen deixar de abraçar o seu pai; não vemos a dupla abrir e sair pela porta].

Para fazer isso, Romita manteve os personagens que aparecem na sequência na mesma posição relativa [o capitão do lado esquerdo do quadrinho, em relação ao ponto de vista do leitor; Gwen do lado direito], ainda que os personagens tenham se movimentado e o ângulo de visão tenha sido alterado.

Existe também uma lógica entre as mudanças de ângulo de visão. O do segundo quadrinho é sugerido pelo primeiro: ele retrata aquilo que você veria se estivesse acompanhando o desdobramento da cena do quadrinho um em diagonal, enquanto que o primeiro quadrinho dispõe os seus elementos exatamente de forma diagonal.

O terceiro quadrinho dessa linha faz um zoom out, que é uma forma de sugerir que a cena acabou [você está se afastando dela]. O cenário é montado com elementos mínimos: entre eles, a porta, de forma que ela fique entre os personagens no segundo quadrinho e os personagens no terceiro quadrinho [o que sugere que eles atravessaram ela]. No segundo quadrinho, ainda por cima, Gwen está olhando para o lado: isso é uma forma de sugerir que ela está pensando, como o balão de pensamento no canto inferior direito do quadrinho mostra que de fato ela está fazendo. Mas ela também está olhando na direção da porta do quadrinho seguinte.

Para fechar com essa linha de quadrinhos, veja como ela forma meio losango, com cada um de seus vértices sendo ocupado por um dos personagens, com o ápice da cena ocupando o ápice do losango, e em uma transição de poder entre os personagens [Gwen começa a sequência como sujeito passivo, e se transforma no sujeito ativo].

De volta para a segunda fila, a transição do primeiro quadrinho pro segundo é feita através do telefone. O mecanismo utilizado no segundo quadrinho para o terceiro é mais interessante: existe uma continuidade entre o ombro esquerdo de Peter no segundo quadrinho e a perna do Homem-Aranha no terceiro. Essa é uma forma comum de se estabelecer uma coesão entre dois quadrinhos.

No quadradinho verde

Não é a única em uso: as linhas que indicam o movimento dos braços do Homem-Aranha estão parcialmente cobertas pela janela do prédio, indicando que o movimento começou do lado de dentro. Mas elas também apontam para Peter no quadrinho anterior. Isso, somado com a posição corporal [Parker está de frente, com o braço direito dobrado, e no quadrinho seguinte está de lado, com o braço direito na ponta da ação] produzem a impressão que ele girou para a direita e pulou pela janela [quando esse evidentemente não é o caso: entre uma coisa e outra ele colocou o uniforme]. Tentei deixar isso mais explícito com as flechas vermelhas:

O último quadrinho inicia uma sequência de três quadrinhos que também alcança os dois primeiros da página seguinte [a 4]. A coesão entre esses quadrinhos [que retratam diferentes momentos de uma ação longa: o Homem-Aranha vai de um lugar a outro] é mostrada por Romita através do tamanho do personagem [sempre o mesmo] e o espaço que ele ocupa no quadrinho [o centro]. São três planos médios, e eu ressalto isso porque é uma forma de manter a coerência [que indica que eles formam uma sequência de ações] e  a clareza da ação [plano médio é a forma por excelência de retratar uma ação claramente].

Também existe uma alternância regular entre o ângulo: é plongée [último quadrinho da página 3], contra-plongée [primeiro quadrinho, página 4] e plongée [segundo quadrinho, página 4]. Todas as cenas também usam o ângulo 3/4, mas também de forma alternada: Homem-Aranha de costas, Homem-Aranha de frente, Homem-Aranha de costas. Isso traduz o balanço do personagem no curso do seu movimento.

O desenho também introduz um monte de elementos entre o primeiro e o segundo quadrinho da página 4 que mostram que o personagem está ascendendo, mas aquela flecha de texto de apoio quase faz o trabalho sozinha:

No terceiro quadrinho da página 4 vale notar como Romita usa a janela da sala em que transcorre a ação como um “quadrinho dentro do quadrinho”. A janela segue o padrão de cores e de desenho dos quadrinhos anteriores [os prédios são um conjunto de riscos, como os prédios que aparecem à sua esquerda no primeiro quadrinho]. Funciona como um daqueles quadrinhos cuja borda os personagens explodem, um recurso para mostrar força típico dos gibis de Kirby.

Acho que isso já foi suficiente para mostrar o que eu quero dizer com “fluir de forma dinâmica”. Então sobre a página 5 eu só vou dizer que o recurso de manter o Homem-Aranha no mesmo plano se mantém, mesmo que os quadrinhos não retratem ações que sejam necessariamente uma sequência da outra e enquanto a visão do leitor gira ao seu redor, e que as linhas de movimento do quarto quadrinho cumprem a mesma função que aquelas do quadrinho seis da página 3.

Em relação à página 7, não posso deixar passar a chance de cornetear Heck/Esposito, que mostraram que são péssimos de perspectiva no primeiro quadrinho,…

Vamos se respeitar com esse Homem-Aranha todo estranho aí, né?

…e elogiar Romita, que mostrou como o Homem-Aranha domina a situação colocando ele em uma posição de predominância sobre a página, e no ângulo de toda a sua ação, no segundo quadrinho:

ARRUMEM UMA GÁRGOLA PARA
ESSA ARANHA!

Por outro lado, só é aparentemente contraditório dizer que os personagens são estereotipados e bonitos enquanto que o desenho é realista. O realismo do desenho está no estilo do traço, não necessariamente no que é desenhado — ou melhor, na narrativa que é desenhado. A mistura entre as duas coisas produz o que o próprio Romita chama de desenho “grit com uma camada de pasta de dente”.

A história, evidentemente, não poderia ocorrer no mundo real, e própria narrativa condensa informação em elementos impossíveis, ou ao menos inverossímeis. Isso faz parte de uma teatralidade típica dos quadrinhos [mais ainda dos quadrinhos dessa época, de narrativa comprimida]: em ASM #47, por exemplo, Kraven anda pelas ruas da cidade até o arquivo do Clarim Diário [!] com o seu uniforme de super-vilão [!!] logo depois de sair da prisão [!!!].

O agente de condicional desse cara vai passar trabalho.

Isso acontece, no entanto, não porque Romita acredite que aconteceria assim no mundo real, mas pela necessidade de se transmitir ao leitor uma informação de forma clara e sintética: quem está saindo da prisão é um vilão com determinadas características que são imediatamente reconhecíveis pelo seu uniforme [que é, basicamente, um carro alegórico].

O realismo do desenho está na forma em que isso é desenhado: com sombras, hachuras, cenários completos e que tentam corresponder à arquitetura real, etc. Assim, o Rei do Crime [Kingpin] usa um broche [pin] gigante. Ao mesmo tempo, ele é um mafioso [o tipo de criminoso que existe no mundo real] e a sua aparência foi física foi inspirada em pessoas reais [no caso, os atores Edward Arnold e Robert Middleton].

Romita também introduz, de forma gráfica, preocupações reais para Parker: frequentemente ele usa golas rolê para esconder o seu uniforme. Foi Romita que fez ele começar a usar as mochilas de teia de aranha, para carregar as suas roupas civis enquanto ele está vestido de Homem-Aranha, e começou a desenhar ele escalando paredes de pés descalços.

Romita também deu outra contribuição perceptível para a série: a sua maior influência é Milton Caniff, o quadrinista de Terry e Os Piratas, então, quando ele pode fazer isso, ele inclui alguns elementos exóticos na série [Vanessa, a esposa do Rei do Crime, e a história de ASM #108 e 109 são os exemplos mais perceptíveis].

Vanessa Fisk…
…ou Dragon Lady?

No entanto, e ainda que essa fase seja conhecida como “O Homem-Aranha de John Romita”, ele não é o único desenhista do período. Mesmo em alguns números em que ele foi creditado como desenhista, o seu papel consistiu em fazer apenas o esboço das páginas [que foram terminadas pelo arte-finalista]. Em alguns casos, é perceptível que até mesmo páginas que lhe foram creditadas foram desenhadas por outros quadrinistas.

Ninguém vai me convencer que esse Homem-Aranha
estroncho foi desenhado pelo John Romita

Existe um motivo prático para isso. Nos anos 50, Romita desenhou a série do Capitão América para a Atlas [nome da Marvel em uma encarnação anterior], onde Lee era seu editor. Também desenhava gibis de romance para a DC. Foi então que surgiu a oportunidade de desenhar mais algumas séries para a DC, e consequentemente receber um aumento de salário. Aceitar o oferta, no entanto, obrigaria Romita a deixar de trabalhar para Lee.

Depois de aceitar a oferta da DC, Romita procurou Lee para lhe comunicar esse fato. Recebeu, então, uma contraproposta: Lee cobriria a oferta da distinta concorrência se ele passasse a trabalhar exclusivamente para a Timely. Romita aceitou a oferta de Lee, queimou o seu filme com a DC e, meses depois viu a série do Capitão América ser cancelada. Conforme diz o próprio Romita, o cancelamento se deu por motivos políticos: era a fase “Captain America, Commie Smasher!” e o personagem, por conta da Guerra da Coréia, passara a ser acusado de ser propaganda imperialista. A Atlas, capitaneada por Goodman [conhecido por não querer chamar a atenção para a sua editora], decidiu tirar o time de campo e evitar confusões.

Romita, como é óbvio, ficou extremamente desapontado. Então quando Lee ofereceu para ele a série do Demolidor, quando Romita estava prestes a deixar os quadrinhos de vez e aceitar um emprego de ilustrador em uma agência de publicidade, ele pediu garantias: além da remuneração por página desenhada, como um quadrinista freelance, queria um salário fixo no mesmo valor que aquele que receberia na agência.

A forma que Lee encontrou para justificar esse gasto para Goodman [o homem que, no final do dia, assinava os cheques] foi contratar Romita como um diretor de arte informal [o título só viria em 1973, quando Goodman estava fora da editora e Lee era o presidente da Marvel]. Nessa posição, ele precisaria comparecer ao bullpen alguns dias da semana para corrigir erros e adequar a página dos outros desenhistas das outras séries da Marvel [além de desenhar capas, fazer design de alguns personagens e tapar buracos]. Compensava financeiramente, mas deixava Romita [que já não era um desenhista muito rápido] sem tempo para desenhar do início ao fim uma série mensal.

Esse, inclusive, é um dos motivos pelos quais eu atribuo a Lee a força criativa por trás da série nessa época: Lee deixou os roteiros em ASM#110; antes disso, apenas não escrevera as edições #101 a 104 [que foram escritas por Roy Thomas]. Existem ainda outros motivos, é claro: um deles é que o próprio Romita, que nem tem no Homem-Aranha um dos seus personagens favoritos e preferiria ter continuado desenhado a série do Demolidor, diz que concordava com tudo que Lee sugeria.

Os principais desenhistas que ajudaram Romita em ASM foram o já citado Esposito, Jim Mooney, John Buscema e Gil Kane. Cada um deles contribuía para o desenho da série de uma forma diferente, mas sempre de olho naqueles parâmetros.

A exceção para essa regra é Esposito [que se tornaria um arte-finalista conhecido pela sua pareceria com Ross Andru, seu amigo de infância, anos depois na própria ASM]. Como Romita, Esposito [que faleceu em 2010] também nasceu no Brooklyn e filho de imigrantes italianos. Como Ditko, ele é de 1927. Como vários outros quadrinistas da geração da Grande Depressão, a carreira dele nos quadrinhos se sustentava na capacidade de produzir: ele provavelmente caiu na arte-final de ASM por conseguir terminar as páginas de Romita rapidamente, garantindo para o desenhista uns dias extras de prazo.

Ele arte-finalizou pelo menos 17 edições no período [ASM #39-40, 50-57, 59-64 e 66; dizem que ele também arte-finalizou a #49, ainda que sem receber créditos], algumas delas usando pseudônimo [Mickey Demeo], como já fizera outras vezes em sua carreira. Aqui, o objetivo era esconder da DC o seu trabalho na Marvel; no passado, fora evitar ser associado com os irmãos Esposito, uma dupla de gângsteres italianos dos anos 40 [simpaticamente conhecidos como “the mad dog killers”].

Uma pessoa que não é Mike Esposito.

Entre as biografias de Mooney [nascido em 1919 e falecido em 2008] e Esposito só existem dois pontos em comum: os dois nasceram em Nova Iorque e os dois eram veteranos da Segunda Guerra Mundial. Mas até essas coincidências são incidentais: Mooney foi criado em Los Angeles, onde seu pai era brooker de cavalos árabes e ele cursou o Ottis College of Art and Design, e, na guerra, foi piloto de tanque. Esposito desenhava pôsteres educativos para soldados sobre doenças venéreas [“If you’re drippin’, you ain’t shippin’” é o seu grande hit].

Mooney chegou nos quadrinhos pelo mundo do fanzine de ficção científica, ainda antes da guerra. Nessa mesma rota ele conheceu Mort Weisinger e Julie Schwartz, então não é de se estranhar que a sua carreira tenha começado na DC. Lá, desenhou a série da Supergirl por diversos anos.

Além da familiaridade com a forma feminina, Mooney ajudava o lado Caniff da arte de Romita a reluzir: usa muito preto e branco. De todos, ele é o que mais tinta coloca no papel: ele fornece textura, sombras e clima para o mundo do Homem-Aranha.

ASM #69

Uma das coisas que Mooney melhor faz é dar clima para a série. A página aí de cima é um bom exemplo: a quantidade de tinta preta que ele coloca no papel transmite perfeitamente a ideia de que é noite [inclusive desde o ponto de vista metafórico].

Muitas vezes, ele aparentemente era mais do que um arte-finalista: em diversas edições é creditado como “illustrator”, do que se pode concluir que Romita apenas desenhava uma referência inicial. Mooney é creditado em 15 edições no período [ASM #65 e 67-81]. Dessas, seis foram desenhadas por Buscema.

Como Romita e Esposito, Buscema [1927-2002] também nasceu no Brooklyn e era filho de imigrantes italianos. Ele teve, no entanto, treinamento formal, como Mooney. Ele se tornou conhecido como o “Michelangelo dos quadrinhos” pela forma como desenhava os personagens, e, nos quadrinhos, as suas influências parecem ser os grandes nomes das tiras de jornal da Era de Ouro: Alex Raymond, Burne Hogarth e Hal Foster.

As edições desenhadas por Buscema não tiveram a participação de Romita [conforme diz o próprio Romita, em que pese ele tenha recebido créditos em algumas delas]. Comparando um com o outro, a principal diferença é que Buscema acrescenta vertigem às histórias: ele aproveita os poderes do Homem-Aranha para desenhar planos em picado com uma perspectiva acentuada [muitas vezes de forma destacada, com elementos da página reforçando os pontos de fuga]:

Buscema, que forma com Romita a dupla que redefiniu o visual dos gibis da Marvel pós-Kirby/Ditko, desenhou apenas nove edições de ASM [#73, 76-81, e 84-85].

De todos os desenhistas que passaram por ASM nessas edições, o que mais alterou o padrão visual estabelecido por Romita foi Kane [1926-2000]. Criado no Brooklyn, onde aos três anos de idade vindo com seus pais da Letônia [seu verdadeiro nome é Eli Katz], Kane começou a trabalhar com quadrinhos ainda na adolescência. Dos cinco, era o de carreira mais estabelecida no momento em que chegou na série: participara de forma decisiva na Era de Prata da DC, como criador do atual uniforme do Lanterna Verde, e lançara His Name is… Savage, considerada uma proto-graphic novel, em 1968.

As edições de Kane foram arte-finalizadas por Romita, invertendo-se o que era a lógica da série até então: Kane desenhava os esboços, que eram finalizados por Romita [ou por outro desenhista, como Frank Giacoia]. Diversos desses esboços de Kane estão à venda, o que nos permite vislumbrar quais eram as prioridades de Kane na hora de planejar uma página.

[fonte]
Foi preciso muito estudo pra deixar ele todo torto do jeito certo.

Nesse exemplo, dá para perceber a importância que Kane dá para a anatomia: a parte mais detalhada dos seus esboços é relativa à credibilidade anatômica das poses [quase sempre extremas] dos personagens. O mesmo se pode observar em relação à perspectiva: em algumas das páginas dá pra ver o ponto de fuga e a consequente preocupação em manter a precisão técnica da perspectiva de um plano extremamente picado, ainda que o esboço seja muito pouco detalhado:

Um estudo preliminar com meia dúzia de riscos e um ponto de fuga.
[fonte]

É uma receita para produzir imagens espetaculares, e a terceira coisa que se pode perceber é exatamente essa: como ele organiza a página de forma a favorecer uma imagem chamativa ou uma ação espetacular, enquanto a história avança em páginas mais convencionais…

O quadrinho central claramente recebeu mais trabalho que os outros.
[fonte]

…ou como ele pensa no posicionamento dos personagens em função das linhas de movimento — ou seja, a página em função da dinâmica:

A fumaça do glider do Duende,
as linhas de movimento nas pernas do Aranha…
[fonte]
…o Frank Giacoia estragando tudo…

Também dá para perceber o motivo pelo qual Kane e Romita formaram a dupla de desenhistas da série por pouco tempo [Kane desenhou ASM #89-92, 96-105; dessas, foram arte-finalizadas por Romita as edições #89-92, 96, e parte da 97, onde Giacoia também recebeu créditos]: Kane desenha muito pouco. Compare, por exemplo, o esboço e a versão arte-finalizada da seguinte página [ASM #102, arte-final de Giacoia]:

Conforme se diz, isso não acontecia por preguiça ou lentidão por parte de Kane. Ele começou a desenhar ASM exatamente porque precisava produzir muitas páginas por mês: Kane recentemente havia se casado novamente [o que, na prática, significava que ele precisava manter duas famílias: a atual e a anterior] e His Name is… Savage fora uma aposta pessoal, para a qual ele havia tirado dinheiro do próprio bolso, que se revelou um fracasso comercial.

Os estilos de Kane e Romita também são muito diferentes. Mesmo que Romita experimentasse com layouts de páginas irregulares, ele ainda era um desenhista formado na DC dos anos 50. Não desenhava, portanto, layouts tão ousados como os de Kane: os dois podiam ser contemporâneos, mas Kane estava subindo em uma onda que seria surfada por Neal Adams anos depois, o que envolvia não apenas romper com o grid tradicional, mas fazê-lo usando ângulos ousados e desenhos espetaculares mesmo que causando prejuízo à clareza narrativa.

Os personagens de Romita também são mais bonitos e, na falta de uma palavra melhor, clássicos: Kane, ainda que seja um tarado da anatomia, desenha figuras alongadas, magras e meio sinistras. Romita se via obrigado a redesenhá-las para adequá-las ao seu estilo.

Curiosamente, esse não é o único ponto em que o desenho de Kane lembra o estilo de Ditko: além das figuras magras e sinistras, Kane também gostava de quadrinhos mais abstratos, que aglutinavam ações de uma forma simbólica e enchia as suas histórias de closes de personagens angustiados e desconfiados — reproduzindo o clima paranóica dos gibis de Ditko.

Isso tudo, no entanto, fez que Romita fosse substituído por Giacoia e Tony Mortellaro em algumas edições desenhadas por Kane [que incluem a célebre saga das drogas que foi publicada mesmo sem a aprovação do CCA, arte-finalizada por Giacoia]. Essa dupla, no entanto, nem de longe favorecia o desenho de Kane como Romita fazia.

Kane, finalmente, foi substituído pelo próprio Romita, que desenharia a série de forma completa até a última edição de Lee.

Essas mudanças visuais não se deram por acaso. Uma parte dos motivos é evidentemente comercial. Outra, corresponde à mudança de proposta. O Homem-Aranha de Stan Lee não é mais uma história paranoica sobre o que é preciso para ser um herói e não poderia ser desenhada como uma assim.

Chamar um desenhista de gibis de romance para capitanear a equipe de desenho de um gibi de super-heróis não fora uma loucura de Lee: ele queria transformar o Homem-Aranha no símbolo de um mundo dividido e que precisava ser reconciliado — através de um romance.

Com grandes poderes…

Existe uma grande diferença entre o mundo que o Homem-Aranha de Ditko habitava, e o mundo que o Homem-Aranha de Lee habita. O mundo de Ditko é hostil: o seu protagonista precisa enfrentar os seus amigos, a opinião pública e um punhado de vilões para tentar se tornar um herói – e o fracasso sempre está lhe rondando. É por isso, inclusive, que faria sentido que o Duende Verde fosse um personagem até então não apresentado na história: o mundo é hostil e ele pode ser qualquer um.

O mundo de Lee não é hostil, apenas dividido: existem pessoas boas e ruins que enfrentam diversos obstáculos para resolver as suas diferenças.

Essa divisão é decorrente de um choque geracional: o mundo do Homem-Aranha de Lee é dividido entre velhos, que representam um establishment engessado e que não faz jus às suas responsabilidades, e jovens, uma força emergente decepcionada, mas que não parece pronta para assumir aquelas responsabilidades.

Isso é um assunto constante ao longo das histórias. Os elementos do enredo que veiculam esse assunto, no entanto, não são nada constantes e oscilam conforme o andar da carruagem. A Tia May e a Mary Jane, por exemplo, desaparecem por longos períodos: a primeira em uma viagem-desculpa para a Flórida; a segunda, por nenhum motivo em especial. A estrutura das histórias também muda: no início, existem tramas longas em torno de um objeto-McGuffin: é o caso da Lifeline Tablet [uma mistura de pedra de Rosetta com Fonte da Juventude], em torno do qual giram as edições #68 a 75, ou do Nullifier [uma arma secreta de funcionamento misterioso] que é o fino fio condutor entre ASM #47 e 56.

As histórias que melhor exemplificam aquele conflito são as que se tornaram conhecidas por retratar conflitos sociais: Crisis on Campus! [ASM #68 e 69] é um grande exemplo. Na história, um grupo de estudantes jovens organiza uma manifestação para convencer a administração do campus que um prédio desocupado deve ser destinado a estudantes de baixa renda. A manifestação se radicaliza em parte por influência do Rei do Crime, que quer usar a confusão para roubar um item-McGuffin em exposição no prédio em questão. No final, se descobre que o reitor da universidade estava em conformidade com as exigências dos estudantes — ele apenas precisava valer-se da lenta via pertinente.

Resumindo os elementos da história, você tem uma força jovem reformista mal-direcionada pela sua impaciência e uma aparente injustiça praticada pela geração mais velha [que representa o establishment reacionário]; o consenso não é alcançado apenas por culpa de um vilão.

Existem outros exemplos de jovens problemáticos. Mary Jane com o passar das edições se transforma em uma jovem festeira inconsequente e superficial: o tipo de jovem que não quer assumir qualquer responsabilidade. Ela forma um par romântico com Harry Osborne: o tipo de jovem inseguro que é incapaz de assumir qualquer responsabilidade. Hobie Brown, o Gatuno original, que reage à injustiça do establishment se tornando um vilão, porque esse é o caminho mais rápido:

Em outras histórias, é a geração mais velha que não se comporta de acordo com as suas responsabilidades. Isso é frequentemente representado por um conflitos entre pais e filhos. É por isso que Lee queria que o Duende Verde fosse o pai de Harry Osborne: nas histórias que finalmente acontece essa revelação [que são as primeiras que foram desenhadas por Romita: ASM #39-40], o Duende Verde é a personalidade do pai de Harry, Norman Osborne, que é autoritária e cruel com o seu filho.

Quando ele é curado, imediatamente se torna um pai amoroso.

Na primeira história do Lagarto desenhada após a saída de Ditko, ele deixa de ser um personagem trágico [como era em ASM #6] e se torna um pai de família que é arrebatado por uma força estranha que o transforma em um monstro, no que é tratado pela família como um segredo [ASM #45, uma edição desenhada por Romita de uma forma que lembra especialmente Ditko] — como uma analogia para o alcoolismo:

Esse conflito geracional nem sempre é retratado de forma tão dramática e extremada. A Tia May, por exemplo, exerce duas funções: ela é, evidentemente, um elemento melodramático, que dá urgência e tensão para as histórias [o Homem-Aranha não pode ser descoberto pelo seu estado de saúde, etc]. Mas ela também é um alívio cômico: a graça consiste exatamente em como ela é uma idosa defasada incapaz de se conectar com as novas gerações.

Existem, também, elementos de ponderação. J. J. Jamenson, por exemplo, é um velho ranzinza obcecado com o desrespeito dos jovens em conflito com o seu filho, um jovem militar bem ajustado. Curiosamente, quando o filho de Jamenson deixa de aparecer na série, essa situação reaparece na forma espelhada dentro do próprio Clarim Diário: Robbie Robertson, o editor das notícias da cidade, é um adulto ponderado; Randy, seu filho, é um estudante universitário às portas da militância radical, mas igualmente bem intencionado. Outro exemplo de ponderação nos personagens é Flash Thompson, o antigo bully de Parker: ele se alista no exército, vai para o Vietnã e se torna um jovem responsável.

Não é coincidência que dois militares [Thompson e Jamenson Jr.] sejam exemplo de ponderação. O Homem-Aranha de Lee não é anti-autoridade: ele é contrário do autoritarismo que engessa o establishment como algo que se auto-justifica de forma irrefletida. Todos os personagens ponderados [Robbie, o Capitão Stacy, Thompson, Jamenson Jr.] estão em posições respeitáveis da hierarquia social, mas acreditam em uma flexibilidade dessa hierarquia; ao contrário de Sam Bullit [o candidato a prefeito que é vilão de ASM #92-93] ou do Rei do Crime, vilões que querem estabelecer uma hierarquia não-flexível ou manter-se em seu topo.

Talvez o que Lee esteja fazendo seja uma história sobre o medo da morte: esse seria o motivo pelo qual os personagens mais velhos se aferram à manutenção do status quo. Existem referências mais expressas nesse sentido, no entanto, apenas em ASM#75. É o final da Lifeline Tablet saga, o momento em que se descobre os poderes de rejuvenescimento da pedra e que o líder da Maggia pretende usá-los para não morrer e se perpetuar no poder de sua organização tirânico. É o exato oposto, por exemplo, do Capitão Stacy: ele, que é o exemplo positivo da fase de Lee, se sacrifica para salvar uma criança.

De qualquer forma, o choque geracional não é exatamente um assunto novo na literatura. De fato, as comédias de Terêncio, dramaturgo romano do século II a. C., costumam girar exatamente em torno desse tema: um conflito geracional, normalmente entre adultos autoritários e jovens reformistas — o melhor exemplo está na peça Os Irmãos.

É com isso que Lee está dialogando e existem mais pontos em comum entre uma coisa e outra. As peças de Terêncio são traduções e adaptações de peças da Nova Comédia. A Nova Comédia é a fase do teatro da Grécia clássica que, em oposição à Comédia Antiga, trata de assuntos mais realistas. Isso não significa que os seus personagens não sejam estereotipados, ou que não exista uma estrutura que se repita: significa que as situações retratadas estão mais próximas da vida real, enquanto que a Comédia Antiga tratava de personagens históricos ou fantástica. É fácil traçar um paralelo entre isso e o que Lee fez com os gibis da Marvel, especialmente com o seu Homem-Aranha que precisa pagar as contas, em relação aos gibis da DC.

Essa relação não é tão esdrúxula quanto parece ser: a Nova Comédia e as peças de Terêncio que ainda existem foram redescobertas na Renascença, são uma das influências de Shakespeare, e tem uma importância central no desenvolvimento do gênero. Lee, por outro lado, era um leitor voraz das peças de Shakespeare: é possível que ele tenha sofrido uma influência indireta, ou até mesmo descoberto Terêncio através de dele. E certamente dá pra dizer que o que Lee faz está dentro da tradição da comédia.

Uma outra característica do texto de Lee nessa fase do Homem-Aranha está presente nos dois [Terêncio e Shakespeare]: as peças fazem comentários irônicos e engraçados em relação à sua própria trama. Um exemplo disso está na peça Trabalhos de Amor Perdido [Love’s Labour’s Lost], de Shakespeare: um personagem comenta que vai ser necessário mais um ano para resolver a trama, outro responde que isso é muito tempo para uma peça de teatro.

Lee usa um recurso parecido em seus textos de apoio. Eles são, no entanto, mais diretos e comentam explicitamente a própria trama, em suas diferentes facetas, de uma forma irônica:

E qual é o papel de Peter Parker/Homem-Aranha nessa equação?

Na Nova Comédia, o protagonista costuma concentrar o conflito: é a sua exclusão da sociedade que torna evidente a sua injustiça; e a sua reinclusão se dá através do reconhecimento de alguma circunstância pessoal ignorada [muitas vezes relacionada à revelação de sua verdadeira identidade] que possibilita a formação de um novo acordo social mais justo.

Esse é o caso de Parker nas histórias de Lee. Ele está obrigado a ser o Homem-Aranha [o que consiste em assumir a sua responsabilidade junto à sociedade], mas, ao sê-lo, é injustamente excluído. E a sua reinclusão ocorreria pela revelação de sua identidade secreta, o que revelaria que ele é um jovem de valor:

[Eu reorganizei os quadrinhos pra deixar eles em uma linha só]

Talvez a diferença seja que isso, nessas histórias do Homem-Aranha, tem contornos iniciáticos: Parker está em uma jornada interior em busca da formação de sua personalidade adulta, de forma a conseguir integrar todos os elementos de sua personalidade — em especial, a responsabilidade. Isso é perceptível em histórias como a clássica ASM#50, em que ele desiste de ser o Homem-Aranha: ele não consegue integrar essa faceta de sua personalidade por enxergá-la como vício por adrenalina e um comportamento juvenil e irresponsável [nas suas próprias palavras: “um brinquedo de criança”], que é como a sociedade injusta [representada por Jamenson] lhe enxerga, e não como uma tentativa [talvez inadequada e desastrada] de assumir a responsabilidade que decorre de seus grandes poderes.

Aliás: vale notar como outro obstáculo à integração de sua personalidade é o medo da morte, ainda que não a sua. Ele tem medo de que a revelação de sua identidade leve à morte da Tia May. Simbolicamente, isso de fato aconteceria: ela não morreria fisicamente, mas, a sociedade cujos vícios ela representa deixaria de existir.

Romita parece não ignorar esses elementos iniciáticos: ilustra o debate interno de Parker, na tentativa de conciliar os diversos elementos de sua personalidade, através de sonhos, no que fica parecendo que ele quer fazer um aceno junguiano:

ASM #100 é a história que melhor condensa tudo isso. Ela é contada na forma de delírio, um evidente convite à interpretação arquetípica: depois de tomar um soro para “curar-se” de seus super-poderes, um Homem-Aranha delirante começa a escutar um chamado. Para encontrar a sua origem, ele tem que enfrentar diversos vilões. No final, ele se depara com um Capitão Stacy falando do além através do sol: ele lhe diz que “sabe quem ele é”, mas que a tragédia é que ele, Peter, não sabe: “você tem se torturado tentando viver uma vida normal! Mas isso é impossível! Você precisa aceitar isso! Você é o Homem-Aranha!”.

A mensagem  de auto-descobrimento pessoal está soletrada: os vilões são apenas obstáculos que Parker encontra no caminho do autoconhecimento. É especialmente significativo que o Capitão Stacy apareça como sol. Isso possibilita uma grande quantidade de interpretações simbólicas: o sol pode simbolizar a personalidade integrada ou o arquétipo do velho sábio [inclusive ao mesmo tempo, uma vez que o velho sábio é uma personalidade integrada], o que provavelmente seja o caso aqui. Mas, para Jung, ele também pode representar a transcendência da alma e, consequentemente, a vida eterna.

Isso seria seria particularmente interessante no nosso caso, diante da possibilidade de se interpretar a rigidez autoritária de alguns dos personagens da história como medo da morte: considerando que Stacy era um exemplo de autoridade reformista, seria possível dizer que a tese do Homem-Aranha de Lee é que esse é o caminho para a conservação da hierarquia justa, enquanto que o medo da morte seria o caminho para o seu fim.

Seja como velho sábio, seja como símbolo da vida eterna, o fato é que o conselho que Stacy dá para Parker é aceitar que o Homem-Aranha é uma parte de sua personalidade, e não uma paixão juvenil.

Esse seria o caminho que levaria ao fim da história. A questão, no entanto, não era como terminá-la. A questão era: estaria a Marvel disposta a fazê-lo?

Continuará

Talvez fosse o personagem com o qual os leitores podiam se identificar. Talvez fosse o estilo mais dinâmico da narrativa gráfica. Talvez fosse a forma pela qual o tema da história capturava o zeitgest sessentista, surfando no boom da cultura jovem. E até mesmo possível que Goodman tivesse razão e o segredo fossem as mulheres bonitas. O fato é que o Homem-Aranha imaginado por Lee se tornara um sucesso.

Nos cinco anos que se seguiram à saída de Ditko, o Homem-Aranha ganhou desenho animado, foi adaptado para o mercado japonês e se tornou a série mais vendida da Marvel. A própria Marvel se tornou a editora líder do mercado.

O modelo, no entanto, mostrava sinais de esgotamento. Depois de ASM #100, Lee tirou uma espécie de licença: fora para Hollywood roteirizar um filme, que seria dirigido por Alain Resnais [um fã da Marvel]. Seria um filme de ficção científica b com temática ambientalista: The Monster Maker. Também seria a sua chance de pular dos quadrinhos para o cinema.

Ele se afastou de  ASM com um cliffhanger: Parker acordava de seu delírio com seis braços. Thomas, um fã de histórias pulp que trouxera para a Marvel a licença de Conan [o que se revelou um sucesso], resolveu isso da melhor forma que pode: acumulando clichês de gênero. Ele ignorou o grande tema das histórias de Lee, e tirou da manga uma poção curativa que lhe servia para apresentar Morbius, o vampiro de ficção-científica que usava roupa de super-vilão, em uma história ambientada em uma casa que parecia saída de um filme de terror.

Terminado o arco em ASM #102, mas sempre disposto a enfileirar referências pulp, Thomas levou o Homem-Aranha para a Terra Selvagem. Lá, ele não apenas repetiu crossover com Ka-Zar, como protagonizou uma história que é um evidente aceno ao filme King Kong.

Como você deve ter percebido, uma vez que não existe um filme chamado The Monster Maker, o filme de Lee e Resnais, apesar do esforço do primeiro [que passara meses em Los Angeles tentando tirá-lo do chão] não saiu do papel. Ele retornou para ASM e escreveu mais cinco edições. Em ASM #105 a 107, ele escreveu histórias terrivelmente genéricas. Nas edições #108 e 109, roteirizou uma ideia de Romita: a história ambientada no Vietnã, pensada como uma homenagem a Caniff. ASM #110 chega a doer: depois de quase dez anos escrevendo o personagem, Lee se despede da série com uma história que termina pela metade e cujo vilão é O Gibão.

Seria a capa uma figura de linguagem
para os efeitos da história sobre
a carreira do Homem-Aranha?

Narrativamente, é fácil dizer como teria que ser o fim de sua fase. É o mesmo fim de Os Irmãos, Andria, O Eunuco e Formião, de Terêncio. É o mesmo fim de todas as comédias de Shakespeare. Sempre existe um casamento [existe, até, um trocadilho sobre o assunto: “todas as comédias acabam com um casamento. Todas as tragédias começam com um”]. Quase sempre existe uma revelação.

Isso, é claro, não acontece por acaso. Se uma comédia normalmente mostra a transição de um tipo de sociedade para outro melhor, a união do mocinho e da mocinha em uma festa é uma excelente forma de mostrar a reconciliação entre opostos e formação de um novo pacto.

Ao longo de suas histórias, o próprio Lee parecia indicar para isso. A Gwen é um dos elementos de sua fase que demorou para encontrar uma função. Nas primeiras histórias, ela é apenas um dos lados do triângulo amoroso que formava com Mary Jane e Parker, e que parecia apenas tentar reproduzir um gibi do Archie. Em seguida ela vira uma garota divertida — uma simples versão loira da Mary Jane:

Entre ASM #59 é 66, no entanto, a personagem se define — em termos que lembram precisamente as peças de Terêncio. É o momento em que ela se torna a namorada de Parker. A parte interessante é a das características que a dinâmica do relacionamento reúne. Ela aceita os problemas de Peter Parker…

…ela é filha do Capitão Stacy, o velho sábio que entende o Homem-Aranha [e que também “já foi jovem”]…

…o obstáculo que o relacionamento enfrenta é um segredo. E o segredo é um mal entendido:

Dessa forma, Gwen estava posicionada para representar tanto a aceitação social do Homem-Aranha, quanto a integração de sua personalidade. Não era, portanto, apenas a tradição que apontava que a história levaria ao casamento dos dois: era também a forma pela qual Lee seguira essa tradição. Para que ele tivesse a sua versão de ASM #36, bastava que Parker revelasse a sua identidade para Gwen, ela lhe entendesse, e que os dois vivessem felizes para sempre.

O problema, no entanto, não estava na lógica narrativa. Se Lee estava desmotivado, talvez não fosse apenas pelo fracasso de The Monster Maker. A própria Marvel passara a apresentar limitações.

No passado, ele já havia enfrentados problemas com a aversão de Goodman ao risco. Em 1968, propôs o lançamento de uma nova hq do Homem-Aranha. Ela seria lançada no formato magazine, em preto e branco, e teria o dobro de preço de um gibi de linha normal [35 centavos contra os habituais 12]. Copiaria, portanto, o modelo da editora Warren e não seria dirigida ao público infantil. A equipe criativa seria a mesma de ASM: Lee, Romita e Mooney. Não era, ainda mais se você considerar que a Marvel tinha alguns estudantes universitários como leitores, uma proposta lá muito ousada. Mesmo assim, Goodman, depois de dar luz verde para o projeto, mandou Lee cancelar a série antes mesmo de ver o resultado das vendas da primeira edição: ele se convencera, não se sabe bem porquê, que não valia a pena se incomodar com um formato novo.

Com a venda da editora para Martin Ackerman e de olho no sucesso transmídia dos personagens, o próprio Lee parecia convencido de que não era hora de fazer alguma bobagem e estragar alguma das galinhas dos ovos de ouro da editora — os personagens, do jeito que eles eram conhecidos, e do jeito que estava planejado que aparecessem na TV. O próprio Lee começara a usar expressões como “ilusão de mudança” e “Tempo Marvel”. Dentro dessa lógica, exatamente por simbolizar a superação do conflito que definia o personagem, o casamento de Parker e Gwen não poderia acontecer.

Ninguém aguentaria que as idas e vindas do romance durassem para sempre. Era preciso resolvê-lo: ou Parker casava, ou Gwen saia do caminho. Essas alternativas não eram muito diferentes daquelas que que formavam o conflito em que se encontrava o seu protagonista. Ou o personagem amadurecia, superava os seus problemas e forçava a própria Marvel a mudar, ou permanecia isolado, estático e limitado pelo status quo. Qualquer que fosse a opção escolhida, ela seria perfeitamente simbolizada por um ritual: no primeiro caso, por um casamento; no segundo, pelo sacrifício de uma donzela.

Essential Spider-Man, vol. 2, 3, 4 e 5
[Amazing Spider-Man #39-102, 105-110]
Stan Lee, John Romita,
Mike Esposito, Jim Mooney, John Buscema, Gil Kane et al.
Marvel, 1966-1971 [ASM] e 1997-2002 [Essentials]