Steve Ditko

Ao redor dos meus vinte anos, e por diferentes motivos, passei o verão de uns três anos seguidos em Torres — a praia do RS que está mais próxima de SC, geográfica e esteticamente, pra vocês que não são aqui da região.
 
Na condição de ser nerdoso, isso me dava bastante tempo livre: o que que eu ia fazer na praia, certo?
 
Para a minha sorte, acabei descobrindo um sebo de quadrinhos na cidade. Ele era administrado por um tiozinho meio hippie (ele falava “bicho”; já tá bom, né?), que transformava o escritório de arquitetura de sua esposa em uma caverna de gibis a venda. Ficava no subsolo de um prédio comercial. Os gibis eram caros, mas vários. O dono não me enxotava e dava assunto. E eu não precisava me preocupar com o sol. Evidentemente, comecei a ir lá todos os dias.
 
Acho que é a isso que chamam de moleque sarnento.

 

Já sabia, na época, quem era Ditko (o que não deve ser nenhuma surpresa, diante do que o post já te disse até o momento). Mas o meu Homem-Aranha favorito era o de John Romita Sr. No terceiro ano, compartilhei essa informação com o dono do sebo. Ele ficou meio ultrajado, e me deu de presente aqueles encadernados que a Abril publicou nos anos 90 com as primeiras histórias do Homem-Aranha (Spider-Man Collection, se eu não me engano).
 
De forma bastante anti-climática, eu não curti muito: eu era fã do Romitão em grande parte porque ele (como Roy Thomas nos Vingadores, ou Neal Adams nos X-Men, que também estavam entre os meus gibis antigos preferidos) parecia um antecedente remoto dos gibis da Marvel dos anos 80, que era o que eu realmente gostava. O Homem-Aranha do Ditko parecia outra coisa; naquele momento, eu entendi essa outra coisa como saudosismo de velho, nostalgia do tipo anal retentiva.
 
O dono do sebo, no entanto, não ficou sabendo disso: coincidentemente, voltei pra casa no dia seguinte. No verão seguinte, não fui a Torres. No outro, fui fora de época e o sebo não estava lá.
 
Mas uma coisa pode ser dita sobre a sarna: ela é resiliente. Nos anos seguintes, o Homem-Aranha do Ditko ocupou um lotezinho do meu subconsciente. As vezes, ele emergia: lembro de ter debatido com Diego Gerlach, responsável por me trazer a notícia da morte do Ditko nessa última sexta, quem era melhor, Romitão ou Ditko. Ainda nessa época, que deve ter acontecido uns cinco anos depois do último verão em Torres, eu gostava mais dos gibis do Romitão: os dois primeiros filmes do Homem-Aranha de Sam Raimi devem muito mais à fase dele que a do Ditko, o que também não ajudava.
 
A ficha só foi cair mais alguns anos depois, quando o meu cérebro alinhou Ditko a três elementos heterogêneos: Daniel Clowes, Alan Moore e Ayn Rand.
 
Clowes, que ocupava um quarteirão do meu consciente nerd, fez com que o status do lote de Ditko entrasse em modo “a reconsiderar”: ele era uma influência muito perceptível sobre um dos meus quadrinista favoritos naquele momento para ser desconsiderado assim, como coisa de velho. Clowes podia ser um saudosista, mas também era um quadrinista bastante meticuloso: ele não fazia as coisas por sentimentalismo irrefletido; se ele viu alguma coisa em Ditko, é que alguma coisa deveria estar lá.
 
Moore parecia um parâmetro de comparação válido para o comportamento extra-campo de Ditko. Como Moore, Ditko também vivia uma vida de auto-exílio voluntário, que lhe garantiu a fama injustificada de velho reclamão.
 
Mas Ditko pagou um preço mais alto por isolar-se: quando brigou com as grandes editoras, foi desenhar livro de colorir dos Transformers para sobreviver. Quando Moore se viu nessa situação, a Image começou a jogar maços de dinheiro nele (McFarlane pagou 100 mil dólares, na bucha e fora os royalties, por uma edição de Spawn que Moore deve ter escrito em cinco dias).
 
Ditko podia imaginar que isso seria assim. O auge de sua carreira ocorreu em uma época que os quadrinhos não pagavam nada, e os quadrinistas eram tratados como peças intercambiáveis. E ele era desenhista: um desenhista ganha mais por página que um roteirista, mas faz menos páginas por mês. A diferença não fica só por conta do volume de trabalho: trabalhando em menos séries por mês, é menos provável que algum produtor cinematográfico tropece com alguma de suas idéias e caia na sua porta com um cheque.
 
Mas o comportamento recluso é apenas a ponta do Iceberg da semelhança. Os dois são quadrinistas cerebrais (ainda que Ditko pareça menos um relógio suíço, e escreva com mais emoção). Os dois atribuem importância ao que fazem: mesmo nos seus primeiros trabalhos, era perceptível que Ditko não fazia matação para terminar a página logo — ele entupia os quadrinhos de coisas, frequentemente até o ponto do excesso. Nenhum dos dois estava nos quadrinhos pelo contracheque, mas por ter uma história para contar: Ditko foi trabalhar por um salário menor na Charlton porque essa era  editora que estava disposta a publicar o que queria desenhar.
 
Ou seja: Ditko agia como um dos principais nomes dos quadrinhos, só que antes e de forma mais extrema.
 
Esse agir não fazia de Ditko apenas uma personalidade curiosa (o que, bom, desperta a curiosidade). Como no caso de Moore, é como se, através desse agir, Ditko estivesse dizendo “eu preciso escrever gibis sobre isso”. E dá a coincidência que essa pessoa de personalidade curiosa, dirigida por essa necessidade, criou o super-herói mais famoso entre os surgidos nos últimos sessenta anos — um no qual ele trabalhou com um objetivo, mostrar que se tornar um herói é a via para livrar-se do ressentimento, que depois foi transformado em um eterno novelo de lã. Não me digam que isso não é interessante.
 
O que nos deixa com Ayn Rand, o “isso” sobre o qual Ditko precisa escrever. A primeira coisa que Rand fez por Ditko, para mim, foi acrescentar uma nova camada de interesse: ela é conhecida faz relativamente pouco tempo no Brasil. Não é o caso dos EUA, mas, daqui, fazia parecer que Ditko era ainda mais excêntrico. Também acrescenta uma camada de graça: enquanto Moore enriquecia, Ditko, o homem que seguia a filósofa considerada a guia dos empresários gananciosos, passava por maus bocados.
 
Mas isso não diz nada sobre os gibis em si. Ainda que, com o passar do tempo, o randianismo de Ditko tenha se tornado progressivamente mais vitrólico (o que acabou por reduzir os seus gibis a uma curiosidade anedótica), o grosso da produção dele é randiano de uma forma muito mais sutil. Não são as palestrinhas Objetivistas: são histórias que operam com base em princípios que podem ser Objetivistas, mas também são mais amplos do que isso.
 
O melhor exemplo disso é o Princípio da Identidade: o “A é A” que deu nome ao Mr. A. É a principal estrela dos gibis de Ditko: é o que faz com que as suas histórias de Ditko sejam paranóicas, ou que os protagonistas dos seus gibis de terror sejam pessoas que sofrem com uma distorção na sua percepção: ignorar que “A é A” é a principal fonte de sofrimento do mundo de Ditko. É o que faz com que o verdadeiro poder do super-heróis esteja em sua inteligência, no conhecimento acumulado, na capacidade de alterar a percepção dos vilões, em identificar o que é certo e o que é errado: no domínio sobre “A é A”.
 
Era com base nisso que ele agia em sua própria vida. Um dos motivos pelos quais Ditko é considerado um quadrinista de quadrinistas é esse aspecto autoral: por mais que ele se esforçasse em separar as coisas, a vida de Ditko era o seu trabalho. Como Objetivista, Ditko provavelmente não acreditava em qualquer coisa na linha da vida depois da morte. Talvez por isso ele estivesse tão envolvido nos seus gibis: era assim que ele continuaria vivo. Faça como o dono de sebo hippie de Torres: ajude-o a viver eternamente.