Motoqueiro Fantasma #1, Máquina da Vingança, de Felipe Smith e Tradd Moore

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Motoqueiro Fantasma, edição 1 – Máquina da Vingança
Felipe Smith, Tradd Moore, Nelson Daniel e Val Staples
[Panini, 2017]

No final de março deste ano, David Gabriel, vice-presidente de vendas da Marvel, disse em entrevista ao site Icv2 que, conforme reclamações de lojistas que chegaram aos seus ouvidos, a queda nas vendas dos gibis da editora era uma reação à “diversidade” dos seus novos personagens.
Com isso, o que Gabriel está dizendo é que o problema não são as histórias que a editora publica, mas os leitores tradicionais, preconceituosos demais para comprar gibis protagonizados por minorias. Eles só estariam dispostos a comprar gibis de personagens que sejam um reflexo deles mesmos: é por isso, imagino, que os gibis da Marvel costumam vender bem apenas em Nova Iorque; também é por isso que temos tantos heróis gordos, espinhentos e com problemas sociais.
Não sei o que faz a Marvel vender ou deixar de vender gibis. Sei, no entanto, ler os gibis. Fazendo isso, fica mais fácil diagnosticar um problema que não dá para terceirizar tão facilmente.
Caso em análise: o Motoqueiro Fantasma de Felipe Smith e Tradd Moore.

Difícil pensar em um personagem melhor para ganhar uma nova versão, sem que isso irrite alguém, do que o Motoqueiro Fantasma. O mais conhecido entre os leitores de gibis da minha geração provavelmente seja Danny Ketch, por conta das histórias de Howard Mackie e Mark Teixeira: ele não é o original. O mais conhecido entre o público civil é Johnny Blaze, por conta dos filmes do Nicholas Cage: ele também não é o original.
Ninguém se importa com o original: criado por Ray Krank e Dick Ayers para a editora Magazine Comics, o primeiro “Ghost Rider” se chamava Rex Fury. Era protagonista de um western que, depois de cair em domínio público, foi relançado pela Marvel na segunda metade dos anos 60 — ainda como um western. Em seguida já ganhou uma nova versão: Carter Slade. Ele foi retroativamente batizado de Phantom Rider [Cavaleiro Fantasma, no Brasil] para finalmente limpar os trilhos para Johnny Blaze.

Como Phantom Rider, o personagem teve mais cinco versões. Se você somar aí mais algumas versões menos cotadas [Alejandra Jones, Zero Cochrane], vai ver que entre cavalo e moto, uns dez personagens diferentes já foram o Motoqueiro Fantasma: ninguém vai se ofender com a décima primeira. O novo Motoqueiro, portanto, poderia usufruir das vantagens do brand recognition sem sofrer as desvantagens de sofrer uma fatwa nerd.

Mas não é só isso. O projeto da nova série é bem amarradinho: tem visual marcante, tem público-alvo, tem referências chamativas, e tem uma equipe criativa descolada.
A partir do lançamento da Nova Marvel, a editora começou a dar mais cuidado com o visual dos seus gibis — compare as suas capas com as dos gibis do Renascimento da DC. O logo dessa série do Motoqueiro foi criado por Manny Mederos, um dos melhores funcionários do departamento de arte da Marvel [é dele, por exemplo, o logo da maioria das séries do Demolidor dos últimos anos]. É muito bom: além de marcante, lembra uma pista de corrida — o novo Motoqueiro Fantasma [para desespero dos editores brasileiros, presos na tradução de “Rider” como “Motoqueiro”] participa de corridas de rua pilotando um muscle car.
Li uma resenha que falava que a inspiração para as corridas de rua veio de Drive, de Nicolas Winding Refn. Ela foi escrita por alguém que evidentemente só conhece o filme pelo trailer: as referências do gibi são Velozes e Furiosos [citado pela própria Marvel ao descrever a série no seu site] e Need For Speed.

Em sua versão humana, o protagonista do gibi, Robbie Reyes, é uma versão latina de um integrante de One Direction, Zak Malik [em minha defesa, alego que descobri essa informação navegando inocentemente pela Internet].

Isso [Velozes e Furiosos + Need For Speed + One Direction] pode parecer uma combinação horrível [até porque é], mas também é uma declaração de princípios sobre o público-alvo: ele apenas não é você [ou eu, ou qualquer pessoa com mais de 30 anos].

Já em sua versão Motoqueiro, a roupa de Robbie Reyes, o protagonista, homenageia Johnny Blaze [com o retângulo da jaqueta de couro], mas tem personalidade própria: a caveira flamejante virou um capacete tipo Daft Punk [ao menos, como um membro do Daft Punk reinterpretado à luz de Jason X]. Ele pilota um Dodge Challenger , o mesmo carro do filme cult Corrida contra o Destino e, consequentemente, de A Prova de Morte, de Quentin Tarantino. Pense no horizonte mental de um fã de Velozes e Furiosos que acha bacana o visual de um integrante do One Direction [ou seja, o horizonte mental do público-alvo do gibi]: Tarantino e Daft Punk acabaram de deixar a série mais… edgy.

Para fechar esse pacote, nós temos Felipe Smith e Tradd Moore. Smith, que cresceu em Buenos Aires, é filho de um jamaicano e de uma argentina [o que, imagino, vacina a série contra acusações sobre usurpar o “lugar de fala”], usa dreads, foi ao Japão para aprender a desenhar mangá e acabou publicando uma série seinen pela Kodansha: Peepo Choo. É uma série malandra: tem violência, tem sátira, tem sexo.
Já Moore é uma jovem estrela dos quadrinhos americanos: é o desenhista The Strange Talent of Luther Strode, da Image. De novo, é uma série hiper-violenta com tons satíricos: o roteirista Justin Jordan descreveu ela como “Peter Parker sem Tio Ben”; essa resenha, como Homem-Aranha escrito pelo Tarantino.
Você quase já deve ser capaz de enxergar o adolescente que gostaria de ler Motoqueiro Fantasma: é o tipo que, operando dentro das limitações imaginativas de sua inexperiência, confunde cinismo e violência com maturidade; arrojo e underground com autenticidade. Um tipo de adolescente que existe. Digo isso não para te convencer de que a série é legal, mas para dizer que ela tinha potencial: não era apenas mais uma série jogada nas lojas especializadas com um número 1 na capa; também não era só uma série com um protagonista é latino.

Moore fez a sua parte por realizar esse potencial. Ele desenhou a série até a edição #5. É a origem do personagem é quase a totalidade do gibi da Panini [que vai até o #6]. O seu traço é facilmente reconhecível. Alguns críticos comparam ele com Geoff Darrow, mas se me perguntassem eu diria que parece mais um Rafael Grampá em versão amerimanga: o detalhismo que ele coloca na página é muito mais orgânico do que a mecânica confusão de Darrow.
O charme do desenho de Moore não está apenas no traço propriamente dito, mas na engenhosidade das soluções narrativas e na composição de página. Veja essa, por exemplo:
É um enfrentamento entre o grupo paramilitar e a gangue que estão atrás do McGuffin do gibi. Os paramilitares ocupam o lado esquerdo da página, enquanto que os integrantes da gangue ocupam o lado direito. O primeiro grupo ocupa mais espaço na página, refletindo a sua superioridade no combate. Entre eles, existem duas balas se chocando no ar.
É uma divisão típica de jogos de luta 2d, e não é a única referência narrativa nesse sentido:

A página imediatamente anterior tem menos quadrinhos, mais espaço e retrata uma sequência temporal maior. Isso faz com que a cena de ação da página seguinte pareça ainda mais caótica, como o próprio tiroteio. Compare-as:

5 quadrinhos na página x 18 quadrinhos na página
Veja, pra fechar, como o líder da gangue é o único personagem que não é uma silhueta no quadrinho central [o que chama nos diz que é ele que devemos acompanhar naquela confusão], e como ele está pulando para o último quadrinho — os dois que são anteriores são, desde o ponto de vista da sequência dos fatos, prescindíveis [a própria colorização deles é mais cinza]. O último quadrinho é a porta para a página seguinte — personagem está “pulando” para fora da confusão que é a página:
Lentamente, no entanto, Ghost Rider foi desabando nas vendas. A série não ganhou novos leitores em nenhum mês. No número 4, vendia menos menos que a metade da edição de estréia. No mês seguinte, saiu dos CEM mais vendidos do mês para nunca mais voltar. O número 9 vendeu menos que My Little Pony Forever #11. Quando foi finalmente cancelada [#12], Ghost Rider vendia perto de 10 mil exemplares por mês. O encadernado com as primeiras cinco edições vendeu pouco mais do que 2 mil exemplares.

As explicações convencionais para o fracasso, aparentemente, não se aplicam: o personagem não se envolveu em nenhum crossover. A perda de leitores foi lenta, gradual e contínua. A série pode ser lida perfeitamente sem que se tenha qualquer conhecimento das versões anteriores do personagem — Reyes não é nem possuído pelo mesmo Espírito da Vingança.

Mesmo sabendo que se tratava de um personagem novo e latino, os lojistas encomendaram 50 mil exemplares da primeira edição da série. Isso pode ser menos do que o Surfista Prateado de Dan Slott e Mike Allred [65 mil] ou o Cavaleiro da Lua de Warren Ellis e Declan Shalvey [58 mil]; é mais, no entanto, que Elektra de Michael Del Mundo [47 mil], X-Factor de Peter David [45 mil] ou Captain Marvel, de Kelly Sue DeConnick [45 mil].

O que eles podem ter descoberto com o andar da carruagem é que a diversidade do personagem fazia dele refém de um discurso.

Em retrospectiva, é até engraçado que alguns críticos tenham ficado preocupados com os obstáculos que Smith enfrentaria ao escrever gibi para uma major: as restrições de Ghost Rider são auto-impostas com um certo orgulho.

Ainda que a Marvel tenha se tornado conhecida por ambientar as suas histórias no mundo real [Ross Andru, por exemplo, fez a fama de sua fase no gibi do Homem-Aranha desenhando lugares reais de Nova Iorque], a história do gibi do Motoqueiro Fantasma transcorre no fictício bairro de Hillrock Heights, no Leste de Los Angeles.

É interessante que a história transcorra na Costa Oeste americana [um contraponto aos outros motoqueiros, que frequentavam a Costa Leste, e uma homenagem ao original, protagonista de um western]. O que não faz sentido é o motivo pelo qual a história transcorre em um bairro fictício: não deixar ninguém magoado, conforme o próprio Smith reconheceu nessa entrevista.

Não faz sentido, em primeiro lugar, porque é de um paternalismo constrangedor; em segundo, porque o efeito é exatamente o contrário do pretendido: ao tentar criar um bairro latino arquetípico, Smith universalizou os defeitos de sua criação [também as eventuais virtudes] entre todos os bairros latinos do leste de Los Angeles.
Isso é evidentemente uma restrição auto-imposta: ninguém tem nenhum problema entupir Hell’s Kitchen, um bairro majoritariamente branco, de mafiosos e ninjas assassinos — ainda bem, caso contrário não teríamos o Demolidor de Frank Miller. Mas Smith vai além: certamente no esforço de fazer o bairro parecer um bom lugar [e, consequentemente, não estigmatizar de forma negativa os moradores de sua versão no mundo real], ele faz de Hillrock Heights um caldeirão de minorias que a foto de propaganda dos escritórios de uma empresa moderna:
Enquanto isso, no mundo real [bom, pelos menos conforme o Los Angeles Times, não vamos nos empolgar], 91,2% dos moradores do Eastside são latinos [5,2% asiáticos; 2,3% brancos; 0,7% são negros]. East Los Angeles tem 96,7% de moradores latinos. Em Boyle Heights, talvez o bairro mais violento [em tese, o mais propício para ambientar uma história de um ESPÍRITO DA VINGANÇA], são 94% de latinos. Hillrock Heights não é um bairro realista [mesmo dentro dos parâmetros de realismo que você pode esperar de um gibi como esse]: é uma fantasia inclusiva.
Não é a única coisa que faz com que a história tenha uma cara não autêntica. A parte mais latina da personalidade de Reyes é o nome: muscle cars não são particularmente latinos [ao contrário: a cultura de carros latina é de “bajitos y suavecitos”] e o cara já tá chorando na página 3.
MIMIMIMIMIMI

Essa talvez seja a parte menos importante do problema: ela apenas enterra o trololó da representatividade [não faz sentido invocá-la para defender um gibi que transcorre em um bairro que deliberadamente não existe]. Isso é mais hipócrita do que chato [no final das contas, o gibi se diz diverso ao mesmo tempo que trata as minorias de uma forma perfeitamente intercambiável], mas estou disposto a tolerar um pouco de hipocrisia em uma história legal.

A parte mais importante é que que, ao se tornar refém de um discurso bom-mocista como esse, o gibi também ficou terrivelmente chato: a história, e não só o cenário, é basicamente formada por clichês politicamente corretos.
A primeira edição enfileira clichês quase à velocidade de um por página: é quase um manifesto anti-discriminatório. Reyes é um mecânico working class explorado pelo patrão; o seu irmão deficiente sofre bullyng. Participa de uma corrida de rua ilegal [a mais asséptica de todos os tempos: não há ninguém nas ruas], mas é empurrado a fazê-lo ao não conseguir comprar uma cadeira de rodas nova para seu irmão; é a única forma que ele tem de “escapar” de lá. A corrida acaba quando Reyes é perseguido, rendido e morto, nessa ordem, por supostos policiais: o gibi precede o slogan “Hands up! Don’t shoot!” por quatro meses, mas estava com o fato apurado.
Mas já vai chorar de novo, meu filho?

Tem quem comparou esse gibi do Motoqueiro Fantasma com os gibis originais do Homem-Aranha. Algumas semelhanças existem: o patrão explorador, o bullying na escola, a tentativa de ganhar dinheiro fácil… Mas essas semelhanças apenas acentuam as diferenças no tratamento dos dois personagens. Reyes disputou o racha, Peter Parker foi para o ringue de luta-livre, mas o primeiro queria dar uma vida melhor para o seu irmão deficiente: Smith nunca teria a coragem necessária para fazer dele um pau no cu egoísta [ou, se vocês preferem o termo técnico, um personagem com hubris] responsável pela morte do próprio pai de criação, como Lee fez de Parker; preferiu vitimizá-lo, passivizá-lo e desconstruir a sua masculinidade. Assim como no caso do bairro latino, isso é bom-mocismo burro: a hubris é um elemento necessário para o personagem trágico; o vitimismo é um elemento necessário para fazer do personagem um chato chorão.

O mentor de Reyes é um professor de escola pública, na linha John Keating do ativismo social. Ele é apresentado de forma crítica [é um almofadinha], mas até isso tem uma moralzinha: é como se Smith estivesse se vacinando por colocar um branco de classe média como mentor de um personagem minoritário. O discurso é o de um ativista comunitário: não sei como isso se desenvolveu nas outras seis edições que a série aguentou antes de ser cancelada, mas eu chutaria que ele é um guia para fazer Reyes ir de um “egoísta” [quer sair do bairro para outro lugar mais seguro, solucionando o “seu” problema] a um “agente de mudança” [alguém que quer mudar o bairro].
Dois grupos servem de vilões para a série. O primeiro é formado pelos falsos policiais, um grupo de… mercenários? Paramilitares? Enfim, um grupo militarizado fascistoide, chamado Aliança Urbana, que está em busca de uns comprimidos que estão no porta-malas do Dodge de Reyes — uma espécie de pó de Hulk instantâneo:
Do outro lado, nós temos a gangue do bairro de Reyes, igualmente atrás dos comprimidos-McGuffin. Para nos mostrar que eles são maus, Smith/Moore não mostram eles vendendo drogas, metralhando rivais sem se preocupar com inocentes nas redondezas ou fazendo qualquer uma dessas coisas de gangues, mas… tentando estuprar uma mulher em uma festa, colocando um sedativo em sua bebida, como se fossem alunos de uma universidade de matéria da Rolling Stone.
De novo, o Motoqueiro Fantasma está em uma posição passiva: ele é o relutante defensor dos moradores de Hillrock Heights, presos no fogo cruzado de uma disputa entre criminosos e paramilitares, ambos dispostos a renunciar à sua própria humanidade para se transformar em uma máquina de matar mais eficiente. De novo, é uma posição passiva que segue um discurso: quem diz que os moradores dos bairros americanos é uma disputa entre uma tropa fascistoide e a bandidagem?
É claro que a história se ressente de tudo isso: a preocupação dela é reforçar uma narrativa, não ser original ou divertida. Isso não é apenas uma limitação à imaginação de sua equipe criativa, também é uma limitação ao seu público. Mesmo aquele que não comprou o gibi atrás de um uma história realista sobre a vida em um bairro latino do leste de Los Angeles [ou seja, aquele que não engoliu o discurso da própria Marvel; ou seja, as pessoas normais], não deveria estar atrás de uma lição do novo moralismo. Deveria estar atrás de surpresas e emoções baratas, o espetáculo colorido que os desenhos de Moore prometiam; não daquilo que é uma versão atual e bem desenhada de uma cartilha sobre consciência social. [RESENHAS[QUADRINHOS]