Cage, de Brian Azzarello, Richard Corben e José Villarrubia: Um outro Luke Cage

* * * *

Cage
Brian Azzarello, Richard Corben e José Villarrubia
[Marvel, 2002]

Com o lançamento da série do Netflix, multiplicaram-se na Internet lista de gibis do Luke Cage para apresentá-lo aos eventuais novos interessados. Cage, de Brian Azzarello, Richard Corben e José Villarrubia, estava em quase todas elas. É um fato que diz muito sobre a “carreira” do personagem nos quadrinhos: não porque Cage seja um gibi ruim [não é], mas porque as duas séries não poderiam ser mais diferentes.
Cada uma trata Luke Cage e o seu universo de uma forma oposta. Em comum, nem o título: o “Cage” do gibi, diferentemente do “Luke Cage” do Netflix, é um jogo de palavras. É tanto o sobrenome do codinome do protagonista [me senti um pouco bobo escrevendo isso, mas tudo bem], quanto o significado literal da palavra, “jaula”, uma referência tanto ao passado do protagonista quanto à violência da história do gibi.
É que Cage surgiu quando a Marvel estava sob o controle de Bill Jemas, um homem empenhado em romper com o CCA e fugir do moralismo. Foi publicada no selo Max, criado exatamente com esse propósito [que não era, felizmente, irrestrito: Villarrubia cobriu com a colorização um quadrinho de nudez frontal parcial de Luke]. Tem por roteirista um Azzarello que fez do cinismo um modo de vida.
O roteiro é explicitamente influenciado por Safra Vermelha, o livro de Dashiell Hammett de 1929.  Ainda que indiretamente, é uma das histórias mais adaptadas do último século: dizem que é a origem de Yojimbo, o filme de Akira Kurosawa, que é a origem de Por Um Punhado de Dólares, de Sergio Leone e Clint Eastwood, e O Último Matador, de Walter Hill e Bruce Willis.

A capa da edição brasileira é
parcialmente desenhada por
Will Eisner

É um clássico hardboiled: puro cinismo e desesperança. Um agente inominado chega à cidade de Personville, Montana — “uma feia cidade de 40 mil habitantes, situada em uma feia depressão, entre duas feias montanhas que a exploração de minério cobria de sujeira”. Foi contratado por um jornalista que queria limpá-la da corrupção, e que foi assassinado na chegada do detetive na cidade.

A cidade é conhecida como Poisonville: É a Era da Proibição, e diferentes gangues disputam o seu controle. O que o detetive de Hammet faz, depois do assassinato de seu contratante e de diversos atentados contra a sua própria vida [a sua motivação para agir], é jogar um mafioso contra o outro — e contar os corpos.
É quase que um resumo de Cage: Luke é procurado por uma mãe que perdeu a filha em um tiroteio de gangues rivais, em um Harlem engolido pela violência e pela corrupção. Passa a semear o caos entre as gangues, vendendo os seus serviços ao melhor pagador para jogá-las uma contra as outras. Protagonista que age movido pelo egoísmo, check; o único inocente da história é assassinado, check; ambientação em uma sucursal metafórica do Inferno, check; solução de problemas por um método amoral, check.
Hammett queria escrever detetives mais cínicos; Azzarello e Jemas queriam super-heróis mais cínicos. E Cage é cinismo puro: a mãe que contrata Luke para vingar a morte de sua filha encontra ele em um bordel; ele “traduz” mentalmente a história em termos desmistificados; passa a história de óculos vermelhos, uma fórmula gráfica engenhosa de mostrar a forma pela qual ele enxerga o mundo [através de lentes vermelhas].

No entanto, mesmo entre Safra Vermelha e Cage existe uma diferença: o cinismo de Hammett tem um pouco de crítica social; o de Cage, só quer ser cool. É mais ou menos a mesma diferença que existe o Demolidor de Amor e Guerra e John McClaine: os dois são um pouco patetas, mas o propósito da patetice é completamente diferente.

A série do Netflix é o contrário disso — nos dois casos. Luke pode ser um outsider silencioso, mas é inequivocamente um herói, tanto na capacidade de agir, quanto na motivação: tem superpoderes e discursa sobre Crispus Attucks. Ele é um super-mocinho-mocinho que faz crítica social.

Enquanto isso, em Cage, um dos elementos de tensão do gibi é a dúvida que a história suscita sobre os poderes do protagonista: a sua resistência a balas é tratada como um rumor que o personagem não quer desmentir; um rumor que é incoerente com o contexto realista da história [os vilões, por exemplo, são versões pé no chão de Lápide e Cabeça de Martelo]. A prova de erros trágicos ele não é: um dos plot twists de Cage é que Luke é responsável pela morte do seu par romântico, Reva [em Luke Cage, o plot twist é o contrário]. Ele também não teria como ser mais egoísta. Ele é um super?-gangsta-mercenário.

O contexto é diferente: em Cage, não existe nada como a barbearia do Pop. A relação de Luke com o contexto também é diferente. Enquanto que em Luke Cage ele é quase um ativista, em Cage ele é retratado como um alienado — mais ou menos em 2/3 da história, os óculos são espelhados, os fones de ouvido, onipresentes, e ele normalmente interage com as pessoas através dos reflexos dessas em espelho, como se o mundo real fosse algo que ele assiste:
No outro terço, o “mundo externo” força Luke a interagir na base de socos na cara. Noutras palavras, Luke está ou alienado ou no processo de trocar socos com alguém. No final, quebram os óculos dele e o personagem entra em modo berserker.

As duas séries têm elementos de blaxploitation, mas Azzarello, Corben e Villarrubia se concentram apenas no lado mais agressivo da cultura hip hop: uma faceta de um nicho da cultura negra americana. Em boa parte do tempo, Corben desenha Cage como normalmente desenhava os seus gibis dos anos 70: um traço caricato hiperdetalhado, com uma obsessão por músculos e um tipo físico feminino bem específico, como um Robert Crumb da fantasia heróica.

Luke, no entanto, não parece um Conan exagerado, mas um jacaré-gangsta caricato. Isso também influencia a narrativa: a composição de página e a colorização, ainda, são inspiradas em grafitis. Corben faz isso com quadrinhos acavalados, como as letras das tags…
…Villarrubia, com o contraste entre cenários cinzas de textura granulada, parecido com cimento, e roupas de cores berrantes:
O responsável pela edição de arte do encadernado pescou a referência, e ajustou os créditos da história de acordo. As capas dos single issues foram por um caminho diferente: cada uma dá ênfase para um elemento agressivo da composição do personagem, pelo menos três deles típicos do hip hop.
Cage também não é uma série acessível a novos leitores: a ambiguidade sobre os poderes de Luke só funciona como elemento de tensão se você sabe que ele deveria tê-los; como a sua participação na morte de Reva, só surpreende quem conhece o personagem. Já Luke Cage foi criada com o propósito de apresentá-lo do zero.
Azzarello, Corben e Villarrubia queriam escrever uma história ambientada em um mundo sem heróis e sem esperanças, e buscaram as referências que acharam pertinentes para fazer isso de forma “realista”: com Safra Vermelha, nada de superpoderes, grafitis e gangstas. Parte da crítica viu isso e chamou a série de racista: Cage chegou ao mundo dos quadrinhos americanos no momento em que esse deixou de ser antimoralista e começava a ser politicamente correto; o momento em que o grito de racista/homofóbico/machista ficou mais alto que o de “fulaninho arruinou a minha infância”.
Em Luke Cage, do Netflix, não temos nada disso: o herói é bem-intencionado, ainda que nem sempre compreendido. A série é direcionada para novos públicos e vacinada contra a patrulha pelo aceno a Trayvon Martin. Harlem é um lugar essencialmente honesto que merece ser salvo: no lugar de Hammett e grafitis, temos Attucks e Soul. [RESENHAS[QUADRINHOS]


Siga no New Frontiersnerd lendo mais resenhas. Siga-me nas redes sociais: FacebookTwitterPinterest e TumblrVocê também pode assinar o feed e me adicionar no Goodreads ou no Skoob