Monster, de Naoki Urasawa: Individualidades

AVISO: A resenha é um spoiler gigante. Pare de dar importância para isso e leia ela mesmo assim. Lembre-se, ao olhar para as páginas que ilustram a resenha, que a escrita japonesa vai no sentido contrário de leitura — portanto, os quadrinhos também tem que ser lidos no sentido contrário [da direita para esquerda]. A ordem das páginas, no entanto, é a ocidental.

Existe uma percepção geral que Monster, de Naoki Urasawa, foi bem recebido pela crítica. Olhando de perto, no entanto, você percebe que a crítica positiva ao mangá, pelo menos no ocidente, é minoritária, e costuma ser do tipo “resumo+gostei, é tenso”. Por motivos de regra 34, também tem bastante fanfic pornô gay. Não sei se isso conta como crítica positiva, hoje em dia.

Entre os que tentaram se aprofundar mais na análise da série, o que mais teve foi crítica negativa mesmo. E essa meio que se divide em dois grupos: 1] Monster é legal, MAS o final é um enjambre anticlimático; 2] Monster é ruim porque o seu protagonista é bom e o vilão, mau.

Os dois grupos sofrem do mesmo problema: acreditar que o gibi, um folhetim paranoico viciante que tem heróis e vilões, não tem significado. Só que o primeiro grupo não sabia que deveria procurá-lo: ficou só caçando buracos no roteiro. Já o segundo não gosta de histórias sem significado, a ser possível um significado crítico-biriri — o que rebaixa, já de cara, um gibi que começa com uma citação bíblica comparando o seu vilão ao Anticristo.

Monster realmente não tem muita ambiguidade. A história se inicia em 1986: Kenzo Tenma, o protagonista, é o principal neurocirurgião do Hospital Memorial Eisler de Düsseldorf. Também é genro e protegido do Diretor do Hospital. Esse, no entanto, empurra Tenma para operações em pessoas mais importantes, em detrimento de pessoas humildes que deram entrada no hospital em um momento anterior [e que sofrem de casos mais graves].

Isso faz com que Tenma enfrente uma crise moral, decidindo ignorar as ordens do diretor do hospital e operar uma criança órfã, aparentemente baleado por sua irmã gêmea, que chegou ao hospital com um tiro na cabeça, e não o prefeito da cidade [o nerdismo roteirista foi à farra: quantas neurocirurgias complicadíssimas precisam ser realizadas simultaneamente em Düsseldorf, ao longo de uma semana?]. Como esse negócio de contrariar autoridades em uma história escrita por japoneses não passa impune, o prefeito morre, a criança primeiro entra em coma e depois some e a trajetória profissional de Tenma é destruída.

Em seguida, no entanto, a diretoria do hospital morre em circunstancias misteriosas. A carreira de Tenma volta a decolar e, nove anos depois, ele se torna chefe da equipe de neurocirurgia. Descobre, no entanto, que Johan, a criança que ele salvou, é a responsável pela morte de seus superiores e se tornou um psicopata — o “Monster” do título. Tomado pela culpa, Tenma decide caçá-lo.

Como isso coloca ele sempre no rastro dos crimes de Johan, ele foi o único beneficiado pela morte dos diretores do hospital, não existem indicativos concretos da existência de Johan ou a sua participação nos crimes [Tenma foi o único a presenciar o assassinato da testemunha chave], e como a sua ex-noiva, Eva Heinemann, queimou o filme dele com a polícia, o próprio Tenma também se torna um fugitivo. No seu encalce vai o Inspetor Lunge da BKA [o FBI alemão]. Isso só é a história do primeiro tankōbon; no segundo, Nina, a irmã gêmea de Johan é reapresentada: vive em Heidelberg, com novos pais adotivos e sem lembrar-se de seu passado. São 18 no total.

Monster está entupido de referências à cultura ocidental, normalmente pop-zadas. Urasawa tem uma evidente fixação pela produção cultural pop ocidental: tem uma banda de rock [aliás: na página 6 do volume 3 da edição da Conrad tem um citação direta à banda Einstürzende Neubauten], já afirmou que prefere receber prêmios no Ocidente, etc. A proposta, conforme esse resumo, e o restante da história já denuncia uma: The Fugitive, a série de TV dos anos 60 [que foi adaptada para o cinema em 1993, em um filme muito bom com Harrison Ford e Tommy Lee Jones]. Como Richard Kimble, Tenma foge de um policial obstinado enquanto procura pelo verdadeiro responsável pelos crimes pelo qual é investigado; no processo, ele ajuda diversas pessoas que cruzam o seu caminho.

Inspirar as pessoas a serem melhores é uma dessas coisas que um herói faz. E, como eu disse e o resenhismo percebeu, Tenma é um herói idealizado. De fato, é ativamente comparado a um dos mais conhecidos santos católicos, São Francisco de Assis [referência #3, lembrando que Johan já havia sido associado ao Anticristo no primeiro capítulo]:

O próprio cabeçalho da série é uma referência cristã, uma espada de cruzado atravessando o “monster”, representação da cruzada pessoal do “santo” Tenma contra o “monstruoso” Johan:

Existem, também, referências à história do Ocidente. A ambientação [Alemanha pós-unificação] joga um papel importante: não apenas ecoa o tema da série [já chego lá], mas fornece elementos importantes para o desenvolvimento dos personagens. Com o avançar da história, Tenma transita pela Alemanha Ocidental e Oriental e pela República Checa.

No caminho, descobrimos que Johan é resultado de uma experiência: primeiro foi submetido a um condicionamento sutil, em Praga, conduzido por Franz Bonaparta, um psicólogo/autor de livros infantis [um Maurice Sendak do mal] que, trabalhando para o serviço secreto da República Checa comunista, manipulava a formação de crianças em um lugar chamado Mansão da Rosa Vermelha. Isso já é outra referência à cultural ocidental #4: rosas sugerem atividades secretas. A expressão latina “sub rosa”, por exemplo, indica atividades realizadas em segredo, inclusive sendo utilizada para designar ações CoveOpts. O objetivo era transformá-lo em um líder perfeito.

Depois, foi internado em um orfanato na Alemanha Oriental, o Kinderheim 511. Nele, foi submetido a métodos mais brutais de destruição da personalidade – não muito diferente do que aconteceu nas prisões para menores da RDA real. No presente, da história, organização neonazi tenta manipulá-lo para fazer dele o seu líder.

Além de Tenma e Johan [que são o motor da história], a série tem três personagens que são recorrentes: Nina, Lunge e Eva. Nina concorre com Tenma na corrida para encontrar e matar Johan, seu irmão gêmeo. O seu arco é de autoconhecimento: vai de ignorar o seu passado a “aceitá-lo”. O seu papel na história é alimentar o debate natureza x criação: Johan é um psicopata nascido ou produzido? Também é uma referência cultural [#5] direta: foi claramente inspirada na Mulher Biônica, a protagonista da série de TV dos anos 70.

Lunge é o Lt. Gerard de Tenma, em versão mais robótica. O seu arco é mais sentimental: a sua frieza calculista faz com que a sua família se afaste dele. Honesto suficiente ao perceber que estava errado em relação a Tenma, ao final da série faz esforços para ser reaproximar. A sua função na história é enfatizar o ângulo detetivesco: é um observador externo que vai reunindo provas dos crimes de Johan. Também é o badass de plantão:

Eva era a noive de Tenma até esse cair em desgraça. Com a morte de seu pai, tenta reatar o noivado – mas é vista por ele como uma interesseira e cai em uma espiral de desgraça e alcoolismo. Ela dispara o senso moral de Tenma, no início da série, se comportando como uma pessoa horrível…

DIZER QUE AS PESSOAS NÃO SÃO IGUAIS, SENDO UMA FILHINHA DE PAPAI
E BEBENDO CHAMPAGNE = SER UMA PESSOA HORRÍVEL

…mas o seu arco é de redenção: ao final, limpa a barra do bom doutor. Esta lá para reforçar o senso de responsabilidade individual que alimenta a história [Tenma se sente pessoalmente responsável pelos crimes de Johan]: no fundo do poço, coloca a culpa de todos os seus problemas nos outros.

Menos importantes, mas igualmente recorrentes, são Wolfgang Grimmer e Roberto. Os dois são antigos internos do Kinderheim 511, onde tiveram as suas personalidades destruídas. Grimmer, que virou um espião comunista, é incapaz de sentir emoções que não sejam a raiva, que “aprendeu” a sentir assistindo a série The Magnificent Steiner, como parte da experiência de supressão da personalidade que sofreu no orfanato. Essa é outra evidente referência cultural [#6] ao Hulk de Lou Ferrigno. A influência da experiência [assistir a série sobre condições de stress] sob sua personalidade também é retratada com uma referência [#7]: Poltergeist.

Roberto é a sua contraparte maligna: é o capanga de Johan. As experiências realizadas no Kinderheim 511 foram bem sucedidas em suprimir a sua personalidade. Isso é retratado pela sua feição impávida e pela sua própria história: quando criança, era um fã de chocolate quente, hábito que esqueceu ao se tornar adulto [o que ecoa a lição de um outro personagem secundário, Rosso, que passa pelo caminho de Nina: “Matar alguém é fácil. Basta esquecer o gosto do açúcar”, capítulo 32, “Cinco colheres de açúcar”, do volume 4 da edição da Panini].

Existem ainda outros personagens secundários que aparecem pontualmente. Eles cruzam o caminho dos protagonistas de Monster, cada um com uma historinha própria. Rosso é um exemplo: é um ex-assassino profissional, fã do filme Quando o Coração Floresce [de 1955, protagonizado por Katharine Hepburn], que deixou a profissão ao ver um dos seus alvos adoçar o café [daí a lição moral]. Hugo Bernhardt é outro exemplo. Ele cruza é o caminho de Tenma no capítulo 8 do volume 2 da edição da Conrad, “O Velho Militar e a Menina”: ele é o sodado que ensina o neurocirurgião a atirar.

Bernhardt é um soldado mercenário que, em uma missão em Myanmar, matou uma mulher diante de sua filha. Ele adotou a criança, levando-a para a Alemanha. A garota, no entanto, não expressa qualquer reação — até Tenma entrar na vida da família improvisada. Essa história é uma referência direta a um episódio da série Mulher Biônica [“Beyond the Call”, episódio 18 da segunda temporada, referência #8].

Já aqueles que cruzam o caminho de Johan frequentemente pertencem a alguma organização [neonazistas, polícia secreta checa] e tem uma aparência… excêntrica. Como o psicopata Peter Jürgens [cuja aparência foi inspirada no serial killer Edmund Kemper…

…referência #9] ou The Baby, líder neonazista inspirado no Homem de Outro Lugar de Twin Peaks [#10].

Outro neonazi da história é Günther Goedelitz, que tenta atrair Johan para a sua organização através de Nina. Essa ideia, e a sua persistência em oferecer frutas para Nina ao tentar convencê-la, são uma outra referência evidente [#11]: ela está sendo tentada.

Outro neonazi da história é Günther Goedelitz, que tenta atrair Johan para a sua organização através de Nina. Essa ideia, e a sua persistência em oferecer frutas para Nina ao tentar convencê-la, são uma outra referência evidente [#11]: ela está sendo tentada.

Além de provar o amor de Urasawa pela cultura ocidental, diversos desses elementos [espiões, serviço secreto, contexto geopolítico, condicionamento psicológico, internatos comunistas, assassino arrependido fã de um filme real, etc; e eu deixei de fora psicólogos, jornalistas, detetives…] dão à série, a pesar de sua estrutura simbólica, uma textura realista.

O desenho também funciona para favorecer isso: as ruas das cidades em que a trama transcorre são evidentemente desenhadas com referências fotográficas, conforme se pode constatar passeando pelo Google Street View.

O BANCO PROCHÀZKA [VOLUME 11, PÁGINA 44, EDIÇÃO DA CONRAD],
POR EXEMPLO, TÁ NA ESQUINA DAS RUAS NÁRODNÍ E PERLOVÁ, EM PRAGA

Um dos grandes talentos de Urasawa é a expressividade facial de seus personagens. O rosto deles é desenhado de forma cartunesca, mas de uma forma que retrata um grande espectro de emoções. É interessante, portanto, ver como ele consegue conciliar rostos cartunescos com cenários realistas — o que ajuda a explicar como esses ajudam a formar a textura realista da história.

Um dos truques é não retratá-los de forma conjunta: quando o cenário é realista, frequentemente não há personagens ou esses estão de costas; quando rostos aparecem, o cenário é desenhado de forma mais opaca ou simplesmente não aparece. Assim:

QUADRINHO 1] DESENHO REALISTA SEM PERSONAGENS
QUADRINHO 2] ROSTOS SEM CENÁRIO
QUADRINHO 3] COFRE REALISTA, SEM ROSTO
QUADRINHO 4] ROSTO EM PRIMEIRO PLANO, CENÁRIO REALISTA NO FUNDO
QUADRINHO 5] PORTA REALISTA, SEM PERSONAGENS
QUADRINHO 6] PERSONAGENS SEM ROSTO E CENÁRIO REALISTA
[VOLUME 11, PÁGINA 45, EDIÇÃO DA CONRAD]

Como isso funciona a favor do realismo? As referências fotográficas são normalmente utilizadas nos splash-pages que abrem os capítulos ou no início das cenas. Servem, portanto, de ambientação, inclusive “mental”: dão os elementos [realistas] pelos quais você vai interpretar o resto da cena [é o efeito Kuleshov, só que em quadrinhos].

PÁGINAS INICIAIS DE DIFERENTES CAPÍTULOS:
TODAS COMEÇAM COM UM GRANDE QUADRINHO REALISTA.
A PRIMEIRA É INTERESSANTE: É UM OLHO DESENHADO DE FORMA REALISTA,
E NÃO CARICATO, COMO SERIA O NORMAL DE URASAWA

Funciona, também, em outro nível. E quadrinhos grandes e hiper-detalhados reduzem a velocidade de leitura. Já quadrinhos pequenos e pouco detalhados aumentam a velocidade. Monster é um thriller: obrigar o leitor a passar as páginas, portanto, faz parte da missão.

E são muitos quadrinhos por página. Normalmente, cada um deles mostra uma pequena ação, ou uma reação de um personagem. Entre um quadrinho e outro, pouco se avança na sequência de fatos: a transição é quase de aspecto para aspecto. Você está indo de quadrinho em quadrinho em velocidade de cruzeiro, mas absorvendo uma grande quantidade de informação [nuances na reação dos personagens, etc] que criam um clima para uma determinada revelação. Veja, por exemplo, essa sequência: é um personagem subindo uma escada para abrir uma porta.

Perceba a mudança no ritmo [existe um salto no ritmo depois do segundo quadrinho, que inclusive leva à mudança na forma dos quadrinhos], como é indiferente a ordem de leitura de quatro dos cinco últimos quadrinhos [funcionam como ação para ação, mas também como aspecto para aspecto para mostrar o desespero do personagem] e conclua: não tem como do outro lado da porta não ter um cliffhanger.

A relação entre as páginas também te empurra adiante. A composição das páginas, internamente, não obedece um critério unificador: ela está lá para acomodar quadrinhos de diferentes tamanhos, sem que exista um elemento de coesão formal dentro da própria página.

Existe, no entanto, elementos que unem uma página à outra. Primeiro, é claro, através da aceleração do rimo que leva a um quadrinho “lento”: é o cliffhanger em ação, narrativamente. Além disso, o final de uma página não costuma coincidir com o final de uma cena. Algumas vezes, o final da cena que começou na página anterior está no meio da nova página, marcado por uma margem [“gutter”] maior do que o normal. Já a margem de início e de fim das páginas costuma ser menor do que o normal. Muitas vezes conta com um quadrinho vazado, para baixo [final da página] ou para cima [início da página]. Enquadramentos também são mantidos de uma página para a outra, dando continuidade a um movimento de câmera.

1] QUADRINHOS COM CORES IGUAIS MOSTRAM
O MESMO ENQUADRAMENTO COM ZOOM DIFERENTE
2] FLECHAS MOSTRANDO OS QUADRINHOS VAZADOS
3] MARGEM LARGA PARA INDICAR TROCA DE CENA
4] QUADRINHOS VERMELHOS MOSTRAM CONTEXTO:
REALISTAS E SEM ROSTOS DETALHADOS

As páginas, portanto, são pensadas de uma forma que estimula a conexão entre uma e outra. Você não tem folgas para interromper a leitura dentro de um capítulo. Monster é mais pergaminho do que gibi.

Ajuda que a história esteja entupida de personagens com arcos próprios e reviravoltas. De início, a impressão que se tem é que Johan é um monstro formado pelo comunismo soviético. MAS aí você descobre que quem foi submetido a esse condicionamento foi a sua irmã. MAS só depois que ela passasse as suas experiências, sem filtros, para Johan. MAS, diabos, alguém me dê uma resposta logo, parece que existe um fato anterior na formação de Johan que é a origem do seu niilismo:

Escolha de Sofia, referência #12

Essa é a forma pela qual aqueles elementos dão realismo à série e como ela, narrativamente, funciona como um thriller. Mas até aqui, esta resenha é uma versão estendida daquelas que foram escritas pelo grupo do “resumo+gostei, é tenso”, como se fosse um mangá capaz de, sozinho, compensar o estrago que o Ultimate Spider-Man de Brian Michael Bendis fez à moral da narrativa descomprimida.

Mas, como eu disse, Monster é uma história com um tema — e ele explica o final da série. No fim, Johan se entrincheira em uma pequena cidade da fronteira entre a Alemanha e a República Checa, Ruhenheim. O seu objetivo é o “suicídio perfeito”: levar a cidade à loucura, de forma que todos os seus habitantes se matem, e forçar Tenma a matá-lo.

Tenma, no entanto, “trava”: no momento em que tem Johan sob sua mira, enxerga o que esse chama de “cenário do fim do mundo” [aquilo que Johan enxergou ao atravessar a mesma fronteira com a sua irmã, quando eram crianças, após escaparem de Bonaparta e antes de serem adotados pela primeira vez] e não é capaz de disparar. Johan toma um refém, uma criança: ameaça matá-la caso Tenma não atire no próprio Johan. O pai da criança, um mendigo alcoólatra da cidade, acaba efetuando o disparo [é o primeiro problema que as pessoas enxergaram no final: ele é uma saída fácil para a “promessa” da série, mostrar se Tenma vai ou não matar Johan].

Tenma, o único neurocirurgião das redondezas, opera novamente Johan para salvá-lo. Johan sobrevive, ainda que em coma. Depois de um salto temporal indeterminado, descobrimos que Tenma rastreou a mãe dos gêmeos até o sul da França. Aparentemente, se encontra com ela periodicamente. Essa esclarece que os gêmeos tinham nome: conforme descobrimos ao longo da história, Johan é apenas um nome que foi atribuído ao vilão pelo seu primeiro pai adotivo, Helmut Wolf.

Tenma, então, encontra Johan no Hospital Penitenciário de Bayern, onde esse está internado, ainda em coma. Tenma diz para Johan que ele tem um nome “verdadeiro”. Ele desperta e conta para Tenma a história da escolha imposta à sua mãe por Bonaparta, e como ele não sabe se ela decidiu por entregar a sua irmã ou se confundiu: os dois eram vestidos e tratados da mesma forma, em um esforço para confundir Bonaparta [que não sabia que existiam duas crianças]. A conversa, no entanto, foi uma alucinação de Tenma: ele “desperta” e Johan segue em coma. No último quadrinho, no entanto, vemos Tenma do lado de fora do hospital… e a cama de Johan vazia [problema #2: ein?].

A chave para o significado do final e da história está na relação entre Tenma e Johan. Os dois, evidentemente, são opostos. Tenma é uma pessoa com personalidade própria. De fato, nós vemos na história o momento no qual ele a desenvolve:

Nesse momento, Tenma cria uma coluna vertebral: não é que ele acredite na igualdade total entre as pessoas; ele acredita que todas as individualidades são igualmente importantes [é a fórmula “você é especial como todos os outros”]. Ao longo da história, nas diferentes micro-histórias em que ele se envolve, o que ele faz é “salvar” pessoas reforçando as suas individualidades.

A sua jornada, portanto, é antiética. Ao dar-se a missão de matar Johan, Tenma age contra os seus próprios princípios: ele está negando a importância absoluta que ele mesmo atribui aos indivíduos no caso específico de Johan. 

Essa contradição é o que alimenta a tensão da história [Tenma conseguirá matar Johan]: quando mais próximo ele está do seu objetivo, mais próximo ele está de dissolver a sua própria personalidade. É um dilema que Nina entende, daí que ela não pretenda impedir a morte de Johan, mas apenas a sua execução pelas mãos de Tenma. Também é o motivo da evidente decadência física de Tenma ao longo da série: ele está se “desfazendo”.

Volume 1
Volume 9
Volume 18

Johan está no polo oposto: entre o agir de sua mãe [camuflando-lhe como sua irmã] e as diferentes formas de condicionamento mental a que foi submetido, a sua personalidade própria foi dissolvida: ele não tem nem um nome próprio.

E a visão de mundo de Johan, que é diretamente associada por Urasawa à do socialismo do leste europeu, é marcada pela ausência de personalidade própria: na verdade, Johan não tem nome ou “autodefinição”. Daí que ele não tenha medo da morte [nas suas próprias palavras, “você não pode matar o que não existe”], o seu plano suicida [ao matar os seus pais adotivos, Johan quer eliminar todos os traços da sua existência no mundo real, de forma que esse esteja na mesma página que a sua personalidade] e a sua facilidade em adotar diversas personalidades, como se fosse roupas, ao longo da história — inclusive se travestir.

Johan está deliberadamente alimentando o conflito de Tenma: quer fazer por ele o mesmo que fez com Wolf, que morreu sozinho, ignorado e “dissolvido”. O seu último pedido, inclusive, é que Tenma diga o seu nome:

Johan enxerga em Tenma alguém capaz de compreender o que é a dissolução da personalidade, possivelmente por ser alguém que tem uma própria. É por isso que Tenma consegue enxergar o “cenário do fim do mundo” [para onde ele “iria”, se puxasse o gatilho e matasse Johan] e Roberto, o assecla sem personalidade, não.

Como isso explica o final? Primeiro: ao fazer Tenma voltar a operar Johan, o que Urasawa faz é mostrar que o neurocirurgião percebeu a “armadilha” de Johan. Ao salvar novamente a sua vida, o que ele fez foi afirmar os seus princípios: é uma derrota para o vilão, que queria dissolvê-los. É uma saída muito mais marcante [e mais clara tematicamente] do que simplesmente negar-se a matá-lo.

Isso reforça, no entanto, o banguelismo de Monster: o protagonista da série é um humanista que defende a individualidade, com ênfase na proteção das minorias, com base na igualdade e utilizando o bom-mocismo como arma. A série não tem dentes: a mensagem é sobre o valor da individualidade, mas também sobre como a violência não leva a nada [que é a base na individualidade de Tenma].

Por outro lado, Tenma compreendeu Johan, conforme demonstrado pelo fato de que ele é capaz de enxergar o “cenário do fim do mundo” [uma alegoria para a visão que Johan tem do mundo]; ele contemplou a dissolução de sua própria personalidade. Por isso, não só é capaz de imaginar a conversa das páginas finais do gibi, como também percebe a importância de chamar Johan pelo seu nome verdadeiro [que não é revelado]. A cama vazia do último quadrinho, portanto, significa que Johan foi curado [ou, pelo menos, que o “monstro” foi exorcizado]: agora que ele sabe que tem um nome, e que é uma pessoa, pode seguir com a sua vida.

A pesar de sua sua modernidade [é uma história de construção de identidade], das referências pop e do leve sotaque politicamente correto, Monster se alojou em um ponto cego do resenhismo nerd ocidental: tá vagando pelo cenário do fim do mundo, sem que ninguém diga o que faz dela uma série única. Espero que isso não leve à sua dissolução no nada.

P.s.: Várias referências eu só pesquei com a ajuda do livejournal The Garden of Prosepine. Então fica aqui registrado o “obrigado”.

Individualidades
Monster
Naoki Urasawa
[Conrad, 2006/2008, e Panini, 2012/2015]