Moon Knight: From the Dead, de Warren Ellis, Declan Shalvey e Jordie Bellaire: Porrada

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Moon Knight: From the Dead,
Warren Ellis, Declan Shalvey e Jordie Bellaire
[Marvel, 2014]
O Cavaleiro da Lua é o genérico de Batman da Marvel. Isso não é desmerecê-lo. Um dos grandes artífices de sua popularidade é Bill Sienkiewicz, que fez na primeira série própria do personagem seu primeiro grande trabalho — desenhista que começou como um Neal Adams [um desenhista que tem no Batman o seu trabalho mais popular], e no final deu tudo bastante certo para ele.
A “versão genérica” parte de um ponto conhecido e pode ir um pouco mais longe com a vantagem da familiaridade. Sienkiewicz, ao ponto de partida [Adams],  incorporou referências externas aos quadrinhos [listei uma pá delas na resenha de Demolidor: Amor e Guerra: Klimt, Robert Rauschenberg, Bernie Fuchs, Ralph Steadman…], o que resultou no estilo pelo qual ele é conhecido. O Cavaleiro da Lua, na sua versão original, incorporou ao ponto de partida ESQUIZOFRÊNIA.
A série de Sienkiewicz e Doug Moench [que está saindo em uns Epic Collection que eu te EXORTO a comprar] é excelente, mas, aparentemente, não deu muito certo no longo prazo: esse aqui é o SEXTO relançamento do personagem [os anteriores aconteceram em 1980, 1985, 1989, 2006 e 2011]. Só dois deles passaram do terceiro ano de duração.
Moon Knight: From the Dead reúne as seis únicas edições de Warren Ellis, Declan Shalvey e Jordie Bellaire na série do personagem lançada em 2014 [e que agora já está quase na vigésima edição]. Nela, o propósito tábula rasa fica evidente. Cada edição começa com um aviso, uma forma impactante de se dizer que você não precisa saber grandes coisas sobre os 25 anos de histórias do personagem para subir nesse bondinho:

É, portanto, um re-reinício para o personagem. Um re-reinício que tem por TWIST a PORRADARIA: Moon Knight tem tom meio sobrenatural, delirante, noturno [o Cavaleiro da Lua se transformou em um protetor “daqueles que viajam à noite”] e urbano, colocado a serviço da troca de socos na cara.
CRIANDO AMBIENTAÇÃO EM UMA PÁGINA, COM UM
RECURSO [OS “EXTRATOS” DO SUBTERRÂNEO] QUE
É USADO EM GIBIS DA TURMA DA MÔNICA.
SHALVEY, TU É O CARA.

O personagem enfrenta os problemas frontalmente, na base dos ossos fraturados — chutaria que apenas UMA PÁGINA do encadernado mostra algo parecido com uma investigação. O senso de humor só aparece de forma incidental: no início da quarta edição, por exemplo, aparece um Habibi’s da cultura nórdica, seguido de uma ironia sobre o technobabble característico de Ellis [“I wouldn’t expect you to know what any of that means”, diz um personagem depois de uma exposição rebuscada do motivo pelo qual se espera que o Cavaleiro da Lua troque socos com alguém]. No resto do tempo, tudo é muito sério e não irônico: herói é herói; vilão é vilão; vítimas inocentes são vítimas inocentes.

A partir daqui, a resenha tem spoilers a rodo.

As seis edições são auto-contidas: na primeira, o Cavaleiro da Lua vai ao subterrâneo da cidade em busca de um serial killer com uma obsessão por corpos em forma; na segunda, um franco atirador que tem por alvos uns empresários da indústria militar [arrependidos].

São as duas únicas histórias que tem preocupações mais… políticas: o vilão da primeira edição é um soldado veterano de guerra, que a colorização associa aos próprios Estados Unidos, que ficou louco porque… bom, porque é evidente que ele ficaria, onde já se viu, um soldado que não quer virar uma máquina de matar pessoas e canibalizar corpos. Né. Na segunda, tem uma pequena crítica a esses caras malvados que lucram com a guerra [é uma preocupação política meio monótoma, como você vê].

Logo depois isso tudo sai do caminho. Na terceira edição, os vilões são uns fantasmas punks verdes. A quarta edição é uma história cabulosa: o Cavaleiro da Lua vai em busca de um ASSASSINO ONÍRICO. Na quinta, temos o auge do minimalismo: ele parte para a porrada para libertar uma colegial sequestrada, mantida em prédio abandonado [ou: uma princesa no topo de uma torre em versão urbana decadente]. Na sexta, ele enfrenta o anti-Cavaleiro da Lua: um policial amargurado com mania de grandeza que se disfarça de super-herói, todo de preto, em busca de HOLOFOTES.
Como a maioria das páginas são dedicadas à porradaria que deriva dessas tramas, Moon Knight: From the Dead sofre um pouco com páginas que estão lá para explicar a história e tirá-la do caminho da ação. As histórias tem uma sequência expositiva inicial, onde algum personagem explica o mistério. E uma sequência expositiva final, onde outro personagem RESOLVE o mistério. Veja, por exemplo, a primeira edição:

BLA BLA BLA DESCE PARA O SUBTERRÂNEO BLA BLA BLA PAU COME
Até isso vai ficando mais estilizado. Na quinta edição, a introdução expositiva funciona sem nenhuma palavra:
DIFÍCIL SER MAIS DIRETO QUE ISSO.
Mas nem mesmo as duas primeiras histórias relativizam os papéis dos personagens. Olha só o jeito desses vilões e me diz se ela deixa algum espaço para a ambiguidade:

#1] MONSTRENGO, É ILUMINADO PELAS CORES AMERICANAS
#2] FEIOSO, TEM DENTIÇÃO ESTRANHA
#3] MONTE DE PUNK, ESPANCAM UMA VELHINHA
#4] OMITIDO PORQUE É PLOT TWIST
#5] CHAPÉU DE GOON, SEQUESTROU UMA COLEGIAL
#6] CARA DE PSICOPATA, NÃO ERA AMADO PELOS PAIS

Isso não significa, é claro, que o Cavaleiro da Lua seja aqui o Super-Homem de um gibi dos anos 50: ele é um herói solitário e durão, na linha Batman de O Cavaleiro das Trevas [o gibi]/Bryan Mills [o protagonista de Busca Implacável]. Daria para escrever um artigo só sobre esse heroísmo de agressividade profissional quase robótica que aqui brilha com um viés mais aristocrático [anda por aí em uma limusine que lembra de de Cosmópolis, o filme do David Cronenberg, e vestindo um terno branco de três peças] e com uma abordagem mais FRONTAL: a graça das histórias está na forma pela qual ele busca o confronto direto. Na primeira edição, um policial pergunta se, com um terno todo branco, os criminosos não vem ele chegar; “essa é a parte que eu gosto”, ele responde.

Isso é acentuado pela arte: é impossível não enxergá-lo. O Cavaleiro da Lua não é colorido, mas preto e branco, ainda que arte-finalizado de um jeito mais hachurado [como você pode ver nas imagens da resenha em que ele aparece]. Faz com que ele esteja sempre o elemento mais destacado da página e no centro da atenção do leitor, ao mesmo tempo que a arte-final impede que ele pareça fantasmagórico ou desvinculado do cenário [e também faz com que o desenho de Shalvey lembre Jordi Bernet mais do que o normal].

Shalvey sabe usar isso a seu favor em outro nível. O espaço negativo, especialmente quando o personagem está com o seu uniforme mais super-heróico, é utilizado para guiar o leitor pela página. Também tem isso aqui:
É como se a borda do quadrinho tivesse ido lá dar uma banguarnada nos cornos do cara.
Falando em artifícios narrativos visuais interessantes, a segunda edição de Moon Knight começa com um: as oito primeiras páginas tem um layout fixo de oito quadrinhos, divididos em duas colunas. Cada quadrinho segue, de forma estável, um personagem [o quadrinho do canto superior esquerdo segue um; o do canto superior direito, outro; e assim sucessivamente]. Quando o personagem “titular” de cada quadrinho morre, o seu quadrinho é “desligado” e substituído por texto de apoio.

Mas, como eu disse antes, Moon Knight é um gibi de porradaria e a maior parte do espaço vai para as cenas de ação. Nelas, Shalvey também usa um arsenal narrativo. Até o layout dos quadrinhos entra na jogada: talvez você tenha percebido pelas ilustrações desta resenha que a maioria das páginas é dividida em 5 ou 6 quadrinhos widescreen, mas isso é enganador: existem elementos dentro do quadrinho que servem para dividi-lo com fins narrativos. Para reutilizar uma página que já ilustrou a postagem:

Mais uma:

AS ENTRADA DO BECO FORMA UM QUADRINHO PARA
O CAVALEIRO DA LUA;
A PAREDE ILUMINADA FORMA UM QUADRINHO PARA
O DETETIVE

Nenhuma mostra a extensão da caixa de ferramentas de Shalvey como a #5. É basicamente uma cena de ação inteira, com o Cavaleiro da Lua subindo um hotel abandonado andar por andar, quebrando a cara de quem cruza o caminho. A própria capa já é uma referência: a trama lembra um jogo de beat’em up, o que ângulo objetivo e lateral da capa original soube encapsular perfeitamente:

Olha só, nessa sequência, como ele usa o movimento da leitura e a composição da página [que mantém a coerência do lugar que o corpo do capanga ocupa no quadrinho, a pesar da mudança no ângulo câmera] da para dar movimento ao personagem:
E aqui, como há o próprio personagem serve de elemento de coerência entre um quadrinho e outro [o seu corpo ocupa um espaço lógico e contínuo entre os quadrinhos], embora o fluxo de movimento da ação seja em sentidos contrários [flechas azuis]:
Uma coisa que você deve ter percebido é que as cenas de luta também tem ambientação [como na imagem aí de cima, onde deixei o primeiro quadrinho de propósito] e protagonistas bem definidos [aqui de novo entra na jogada a roupa e a colorização diferenciada do protagonista]. São, portanto, CLARAS, até mesmo literalmente [bem iluminadas].
Além disso, Shalvey não se mixa em mostrar a consequências dos golpes do Cavaleiro da Lua. Temos quadrinhos para mostrar o chute atingindo o alvo, com o alvo vomitando, a sua perna quebrando, a cara se esborrachando no chão. Isso não é só tática de choque: Shalvey quer que você entenda a luta e, mostrando o impacto, sinta o golpe.
O “KRACK” FOI DENTRO DA TUA CABEÇA

É o contrário da lógica pela qual os filmes Hollywoodianos de ação atuais operam. Neles, o impacto não é mostrado: acontece fora do enquadramento, perceptivelmente não acontecem ou há um corte imediatamente antes do golpe aterrissar na fuça destinatária, com a sequência seguinte se iniciando imediatamente depois disso acontecer. A fotografia é escura, os cortes são rápidos demais, etc. Assista essa sequência de Os Mercenários 2, que nem é PG-13, sem o som [se você diminuir a velocidade do vídeo também ajuda; para isso, você tem que habilitar o player HTML5] para ver o que eu quero dizer — a peleia começa aos 2 minutos e 30 segundos exatamente:

Agora, compare-a com essa outra de Operação Dragão [melhor exemplo aos dois minutos; um dos extras que tenta segurar o coitado que levou esse chute quebrou o braço, a propósito]:
Entre o aviso inicial, a equipe criativa cool, o status do personagem [B] e o objetivo de re-reinventá-lo, grande parte do resenhismo perdeu de vista o que Ellis, Shalvey e Bellaire estavam tentando fazer e se dedicou a comparar a série, desfavoravelmente, com o Hawkeye de Matt FractionDavid Aja e Matt Hollingsworth.
Mas as duas séries tem diferenças ÉTICAS. Hawkeye, conforme você pode ler aqui, é um gibi irônico: ele se dedica a fazer piadas com elementos típicos de um gibi de aventura [o herói é um fracasso, os vilões não são ameaçadores, etc]. Ou seja: a novidade era o deboche, a metalinguagem e a auto-paródia.

Ellis, Shalvey e Bellaire optaram pelo caminho inverso: herói enfrenta vilão, em um gibi violento, noturno, urbano, sobrenatural e cheio de cenas de luta que lembram um clássico do Bruce Lee — só que ainda mais gráficas, e com a vantagem de que ninguém precisa ir para a fila do INSS depois das gravações. Devem ter deixado a série com medo de que a fórmula episódica se tornasse repetitiva, o que é uma pena: te desafio a encontrar adjetivos melhores do que aqueles para colar em um Batman genérico possuído por um deus lunar egípcio. [RESENHAS[QUADRINHOS]

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