Action Comics v. 2, de Grant Morrison e Rags Morales: Super-Homem vs. Mundo das Ideias

Aviso: essa resenha foi escrita com base nos três encadernados que a DC lançou com as 18 primeiras edições da Action Comics v. 2 [o relançamento da série por conta do relaunch do Universo da editora e os Novos 52]. Eles incluem as histórias curtas que acompanharam cada edição, mas eu não falei nada sobre elas na resenha [não se pode abraçar o mundo, etc]. Não me dignei, inclusive, nem a creditá-los ali em cima. Dessa forma, o conteúdo da resenha é perfeitamente pertinente ao encadernado Superman: À Prova de Balas, da Panini, cujo único defeito é ter sido lançado depois que eu já tinha comprado esses encadernados importados.
 
Sim, é verdade: o Super-Homem da Action Comics de Grant Morrison é um “vingador social” e isso é uma espécie de homenagem ao personagem nos anos 30, quando era escrito e desenhado por Jerry Siegel e Joe Shuster. Ele soluciona problemas “reais” na base da porrada. Não é, no entanto, a única referência que Morrison faz. Na verdade, a fase toca em diversas versões do personagem e do seu mito, em diferentes níveis e propósitos, de forma mais ou menos direta.
 
A primeira edição já tem uma pilha delas: o Super-Homem é atropelado por uma locomotiva [uma forma inteligente de Morrison usar o clássico “mais forte que uma locomotiva” para mostrar o status do poder do seu Super], entorta canos de armas com as mãos e sai na porrada com uma bola de demolição e um tanque, o que é genérico, mas também enfrenta o líder da Galaxy [primeira aparição: Superman’s Pal Jimmy Olsen #133, a primeira edição de Jack Kirby], encontra um sargento Casey [personagem habitual na década de 40], trabalha no Daily Star [também nos anos 40] e o toque celular do Jimmy Olsen é “zee zee zee” [como o relógio da Era de Prata], o que é bem mais específico.

Dá para continuar: na época do lançamento da edição nos EUA, o comentário nos message boards do CBR [em um thread que agora está fora do ar, já que o site “limpou” o seu fórum em no ano passado] era que a história da edição #2 era uma referência às tiras dominicais do personagem de 1941. Lyra Lerrol, atriz krytponiana citada na primeira página de Action Comics v. 2 #3, saiu de Superman #141, de 1960 [a história é Superman Return to Krypton, de Jerry Siegel e Wayne Boring] e também deu as caras em Para o Homem que Tem Tudo, a homenagem de Alan Moore e Dave Gibbons ao Super-Homem da Era de Prata e de Bronze.
 
Edições #7 e 8: Bryak é o planeta de origem de Braianic em Action Comics #24T2 [de 1958] e Superman #167 [de 1964, a última vez que a expressão foi utilizada]. George Taylor, editor do Daily Star, apareceu pela primeira vez em Superman #2, de 1939. The Smallville Sentinel era o jornal de Pequenópolis na série New Adventures of Superboy, da década de 80.
 
Nem tudo é tão direto e obscuro [e não se preocupe: eu não pesquei todas aquelas referências; apenas pesquisei o que o parecia mais chamativo]. Algumas referências são mais narrativas e estéticas. Perceba como Rags Morales, nas primeiras edições, incorpora elementos típicos dos anos 30 no cenário: tipo a cadeira elétrica na edição #2, alguns dirigíveis, ou os prédios art déco de Metrópolis [aliás, também do logo da série].
 
A narrativa funciona em ritmo acelerado, quase o contrário do que você poderia esperar de um gibi moderno [que tendem à descompressão]. Existe uma trama maior, certo, mas ela é arquitetada em torno de edições individuais [o Super-Homem enfrenta uma série de ameaças que depois descobrimos que são coordenadas], com diversos saltos narrativos [um período de tempo longo é retratado em poucos quadrinhos] e com aquela cara de wacky Silver Age.
 
Na edição #4, o Super-Homem enfrenta umas 3 ameaças diferentes — uma delas, o Metallo [Metal-Zero = Metal-0 = Metallo, sacaram?] desaparece entre quadrinhos. Perceba quanta coisa acontece em apenas uma página da edição #3:
 
Nesse quadrinho da primeira edição acontecem QUATRO ações diferentes:
 
A narrativa, aliás, é bastante voltada para a ação — como você pode ter percebido pela espetacular tirada de gato de cima da árvore ali em cima. Morrison claramente quis fazer valer o “action” de “Action Comics” e isso se nota logo na primeira edição é formada por uma sequência de cenas de ação. Percebam esse diálogo da edição #3, “físico” e anguloso:
 
Voltando: referências à Era de Prata. Na edição #11, o Super-Homem simula a sua própria morte e vira um bombeiro chamado Johnny Clark por… PÁGINAS. Deem uma olhada na capa da edição #2 e me digam: isso não parece um daqueles gibis da DC dos anos 60, em que a capa promete um negócio muito louco que não se concretiza exatamente?
 
 
Mais: Exército anti-Super-Homem, formado por pessoas que odeiam o herói [um deles, aliás, é uma referência direta a um marido que batia na esposa e teve que se ver com o Super de Siegel e Shuster em 1939], cada um com um poder saído de uma kryptonita diferente [outra coisa Silver Age: kryptonitas coloridas]. A oitava edição acaba com o Super-Homem sorrindo para o leitor, clichê das histórias antigas do personagem que eram alvo de piadas frequentes dos fãs de quadrinhos.
 
Isso é feito com um FILTRO. Algumas coisas são usadas de forma trivial; outras, são re-interpretadas com base nas preferências e objetivos de Morrison. O Brainic, por exemplo, combina elementos do seu visual da Era de Prata com a versão oitentista [criado por Ed Hannigan para a Action Comics #544, de 1983], com as idéias de Bruce Timm e Alan Burnett, para Superman, The Animated Series [taí uma série que tenho vontade de rever], e os desenhos da Liga da Justiça, versão essa que o próprio Morrison já afirmou ser a sua favorita, com um visual insectóide que é típico dos vilões alienígenas do escocês:
 
Isso pode ficar incrivelmente complexo. Voltando à questão “Super-Homem como vingador social”:  ela não é feita com o mesmo ângulo de Siegel e Shuster. O criadores do personagem enxergavam nele uma válvula de escape: é uma fantasia de poder adolescente, daí que ele enfrente problemas “reais” — começa com o herói enfrentando a burocracia estatal [simbolizada de forma nada sutil por uma porta de cofre] e termina com ele perseguindo um lobista que quer empurrar os EUA para a guerra [ahh, o isolacionismo americano pré-Segunda Guerra Mundial].
 
A visão de Morrison para isso é muito mais ideologizada e vitrólica: o Super-Homem é meio dado a discursos e Clark Kent é um jornalista blogueiro que revela falcatruas dos “ricos e poderosos” [a semelhança física com Edward Snowden deve ser uma coincidência, no entanto]. Os Kent se transformaram em agricultores pacatos do Kansas com um passado de ativismo político [#8].
 
No primeiro arco, isso tem mais cara de século XIX do que a própria versão original do personagem. O papel de vilão-ricaço habitualmente exercido por Lex Luthor fica com Glen Glenmorgan — enquanto o primeiro faz mais o gênero investidor-moderno-nos-bastidores, Glenmorgan é um industrialista que fabrica TRENS [#3] e máquinas pesadas. O vilão da edição #4 é um robô Transformers de uma FÁBRICA:
SUPER-LUDISTA?
Existem versões do próprio Super-Homem que passam por esse filtro — e viram vilões. Exemplo um, o Capitão Cometa, principal vilão do segundo encadernado [nominalmente, a versão Novos 52 do personagem criado por James Robinson]. Ele é textualmente chamado de “o primeiro Super-Homem”, então a relação entre o vilão e uma versão do Super-Homem é literal, e é recriado por Morrison como o Super-Homem que foi criado por agricultores religiosos do interior do Kansas [noutras palavras: o Super-Homem tradicional, pré-Novos 52, não ativista]. Tudo isso em uma página fica assim [a edição é a #12]:
 
Não é, a propósito, o único jab de Morrison ao Cristianismo: em uma das edições [a #14], os vilões são anjos. Não é nem um salto interpretativo: o próprio Super-Homem chama eles assim. Também tem o fato deles se vestirem e parecerem… bom, anjos:
 
Outro vilão que é uma crítica a determinada versão do personagem: o Super-Doomsday. Ele é a versão Morrisoniana para o Super-Homem “corporativo” e “comercial” [visualmente, é um Doomsday com o logo do personagem]. Foi criado por três jovens idealistas [Clark, Lois e Jimmy de uma Terra paralela] que, em busca de dinheiro para criá-lo [movidos pelo altruísmo. Questionados sobre o seu valor, responde Clark: “para mim é mais importante a oportunidade de mudar vidas e inspirar pessoas”], vendem ele para uma corporação gananciosa. São passados para trás por não terem um advogado].
 
Ele é o vilão da primeira história do segundo encadernado, Action Comics #9 [de onde saiu a história do parágrafo anterior]. É uma história ambientada na Terra-23, um universo blaxploitation onde todos os personagens são negros – inclusive o Super-Homem Calvin Ellis, o presidente dos EUA de lá. É, obviamente, a visão que Morrison tem de Barack Obama: um “super-herói” negro que combate a América corporativa. Como, aliás, o próprio Morrison falou nessa entrevista, de forma quase mais direta do que eu: “quando estava escrevendo, ouvi uma piada que Obama fez sobre ter nascido em Krytpon e sido enviado pelo seu pai Jor-El para salvar o mundo. Achei que seria um bom fim para toda a escuridão da América recente”; “espero escrever mais sobre esse personagem Obama”.
 
Não são os únicos pontos em que o nerdismo mainstream [você sabe, aquele que se atira sobre mega-eventos como a Morte do Super-Homem que serviu de referência para o Super-Doomsday, ou aquele que gosta mesmo do Super que tem raízes no Kansas] toma uma botinada de Morrison. A obsessão de Brianiac, inicialmente apresentado como O Colecionador de Mundos [The Collector of Worlds, Action Comics v. 2 #8], por salvar memorabilia de diversos planetas em embalagens herméticas [o que dá origem à Cidade Engarrafada de Kandor] só pode ser um ponta pé no nerdismo colecionista, aquele que compra gibis para ensacá-los sem ler. Dá para perceber pela vocação e pelo vocabulário: “mint condition” é expressão de colecionador.
PRATICAMENTE UM GAROTO PROPAGANDA
PARA O CGC
Isso tudo não é livre de ironias. Uma delas é externa: diversas resenhas chamaram essa versão do personagem de “idealista”. É que com a confusão conceitual reinante, “idealismo” se tornou sinônimo de militância, e um adjetivo passível de ser colado em qualquer… materialista.
 
O Super-Homem da Action Comics de Grant Morrison é um militante: além de tudo aquilo que eu já falei no início da resenha e de entrevistas de Morrison nesse sentido [“queria fazer uma história do primeiro ano do Super-Homem em Metrópolis, quando ele era mais parecido com um ativista político de esquerda”], posso citar a edição #10, quando o Super-Homem tenta convencer a Liga da Justiça para marchar pelo mundo promovendo “change, fairness, and justice”.
 
Registro que esse é o único momento da série no qual o personagem é tratado de uma forma um pouco ambígua: Batman insinua que essas idéias podem fazê-lo, no futuro, cruzar a linha. Claro que o próprio Homem-Morcego fala com sotaque “liberal”, ainda que com viés anti-imperialismo Americano: “não quero ser parte de uma gangue de armas vivas autoritárias da América” [“I don’t want to be part of a gang of authoritarian living weapons from America”]; “Não vou marchar para outros países sem ser convidado para ‘arrumar’ problemas que nós quase não entendemos” [“I won’t march into countries uninvited to ‘fix’ problems we barely understand”].
JUSTICE LEAGUE OF DCE
 
As histórias, por outro lado, são materialistas. Eu sei que, no final das contas, o vilão é um diabo da Quinta Dimensão — que é a própria Imaginação, como diz Bat-Mite em Batman #680, escrito por Morrison:
 
 

Também sei que essa saga aqui é comumente considerada como a execução de uma idéia que o escritor teve após a conclusão de All-Star Superman: uma história que fosse “Superman vs. Satan”. Vyndktvx, o grande vilão da saga, é o “satan” da história — ele não apenas é chegado em um pacto faustiano, como tem o visual claramente inspirado no capeta:

E sei que nada disso parece lá muito materialista. Mas não dá para descolar isso da visão de Morrison para essas coisas. Ainda que o Diabo seja um símbolo religioso, Vyndktvx é um demônio totalmente dessacralizado [mais ou menos como os anjos anteriormente citados]. Não é só, já que a visão de Morrison para as religiões é materialista e a Quinta Dimensão joga um papel cientificista nisso: as religiões são uma etapa a ser superada no progresso da humanidade rumo a uma iluminação meio New Age — a Quinta Dimensão, um estado de consciência “cientificamente” comprovável.

Compare comigo o que ele diz em uma entrevista para o Newsarama com um artigo do Marxists.org [“Religião do Ponto de Vista Materialista”; não sei se dá para ser muito mais dogmático do que isso em relação ao materialismo] que você vai entender o que eu quero dizer:

 
Newsarama: “Acho que a religião, por si só, é uma mancha terrível no progresso da humanidade rumo às estrelas. Ao mesmo tempo, ela, ou alguma coisa como ela, é uma fonte inegável de conforto, significado e esperança para a maioria dos pobres infelizes que já viveram na Terra, então não quero descartá-la completamente. Apenas queria que mais pessoas fossem educadas para um padrão no qual elas entenderiam o que a religião é e como ela funciona. Sim, ela nos conduziu pelo escuro durante um tempo, mas, no final, é uma dessas coisas feias e estúpidas e atrasadas da qual nós provavelmente poderíamos nos livrar agora, aqui no Planeta dos Macacos”.
 
“Em uma consciência atemporal e fora do espaço, uma mente humana se confunde com uma experiência direta da totalidade de toda a consciência que já foi ou que será. Parece com falar com Deus, mas vejo isso como uma forma de ciência, não de religião”.
 
Marxists.org: “A religião é, por um lado, o resultado da necessidade que teve o homem de compreender e conhecer os fenômenos da natureza, dos quais ele dependia inteiramente, por outro lado, de sua inexperiência e incapacidade em compreendê-los”.
 
“A “religião”, no sentido atual da palavra, se acha ligada á correspondente organização social — a Igreja, colocando-se a serviço das classes dominantes, servindo como meio de escravização e de obscurantismo”.
 
“É evidente que quanto mais experiências o homem acumula, tanto mais deixa ele de explicar teologicamente os fenômenos. Ele começa a interpretar cientificamente os fenômenos, e aí é que começa o processo histórico de se destacarem diversos campos, que saem do domínio da religião”.

De idealista, portanto, a Action Comics de Morrison não tem nada: um Super-Homem despreocupado com questões ideais enfrenta um vilão que é uma versão materialista de um símbolo religioso.

A outra ironia, agora interna, também envolve tudo isso. Acho que é meio óbvio que o próprio Morrison se atribui um papel nessa história de revelação. Ele já disse que visitou a Quinta Dimensão. Ele é um mágico [ao menos se define como um atualmente] e um artista [o que, você sabe, deveria levar ao uso da imaginação,  que pode indicar que ele tem uma afinidade especial com a Quinta Dimensão] que frequentemente se projeta em suas histórias:

VOCÊ VÊ ONDE QUERO CHEGAR?
 
O plano de Vyndktvx, o grande vilão das 18 primeiras edições da Action Comics pós-Novos 52, consiste em recrutar vilões para jogá-los contra o Super-Homem, atacando o herói em diversos pontos de sua história… “ao mesmo tempo”, digamos assim. É uma idéia que está em sintonia com o que Morrison entende ser o ponto de vista de alguém que atingiu a consciência da Quinta Dimensão e que, por isso, enxerga as coisas de uma forma atemporal. Também não é muito diferente daquilo que ele fez com o Super ao escrever a história, “atacando” diferentes pontos de sua história para recompô-lo.
 
Não dá para esquecer também que Morrison tem em seu currículo algumas mega-sagas marketeiras [Crise Infinita] e já foi acusado de defender o lado mais corporativo e moedor de criatividade da DC — e Super-Doomsday, o peão final de Vyndktvx, é um símbolo exatamente disso. O que eu quero dizer é o seguinte: seria Vyndktvx uma espécie de retrato diabólico do próprio Morrison — involuntário, mas revelador? Uma espécie de ato falho autoincriminante?
 
Se você gosta do Super-Homem “Truth, Justice and the American Way”, ou é um colecionador empedernido, a resposta certamente é sim.

Action Comics, v. 1: Superman and the Men of Steel
Grant Morrison, Rags Morales, Brent Anderson, Gene Ha e Andy Kubert
[DC, 2012] 
Action Comics, v. 2: Bulletproof
Grant Morrison, Rags Morales, Gene Ha e Brad Walker
[DC, 2013] 
Action Comics, v. 3: At the End of Days
Grant Morrison, Rags Morales, Gene Ha e Brad Walker
[DC, 2013]