Guerra Civil, de Mark Millar, Steve McNiven e Morry Hallowell: Tentativa e erro

 
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Guerra Civil,
Mark Millar, Steve McNiven e Morry Hollowell
[Salvat, 2014]

Aviso: para escrever essa resenha, li, apenas, o encadernado da Salvat. Ele inclui as sete edições da série Civil War, todas escritas por Mark Millar, desenhadas por Steve McNiven e coloridas por Morry Hollowell.

É possível, até mesmo provável, que os outros CEM gibis que compõem o evento em sua totalidade contradigam, respondam ou esvaziem algumas das considerações que eu faço — o contrário não é nem mesmo CRÍVEL, já que cada equipe criativa deve ter agido com interesses próprios em mente [ainda que articulados dentro de um campo delimitado]. Mas é impossível que a minissérie principal não contenha elementos próprios que não possam ser interpretados sem a leitura de CEM outros gibis.

Incidentalmente: haverão spoilers. Fim do aviso.

Guerra Civil, o evento [eufemismo para crossover que está na moda] marvético de proporções épicas [eufemismo para A Grande História que Muda Tudo no Século Nessa Semana] de 2006, deixou o fanboysmo de super-heróis e os resenhistas universitários igualmente enlouquecidos.

Não é difícil entender as razões dos dois grupos. Na história, metade dos super-heróis da Marvel, capitaneada pelo Homem de Ferro, enfrenta a outra metade, capitaneada pelo Capitão América. No centro da disputa, uma lei que obriga todos os super-heróis a se registrar em um cadastro governamental — reação a uma tragédia provocada pelos Novos Guerreiros [envolve: super-vilão desnecessariamente provocado se explodindo em uma escola]. O fanboyismo, que vê quebra-pau entre seus super-heróis favoritos e possibilidades infinitas de discussões do tipo “o Homem de Ferro é melhor que o Capitão América”, fica feliz. O resenhismo universitário, que vê a América pós-11 de setembro extrapolada de forma crítica na cultura popular, também.

A trama de Guerra Civil segue a mesma estrutura de Reino do Amanhã, a aclamada [ehem] minissérie de Mark Waid e Alex Ross. É meio óbvio e essa comparação abunda na Internet: as duas colocam grupos de heróis frente a frente; as duas retratam uma sociedade que, no início do gibi, é injusta; o caminho entre as duas é percorrido através de enfrentamentos entre as duas idéias; existe um final feliz em que existe uma “nova sociedade” em que cada personagem tem o seu lugar.

Aqui, e dentro desse esquema, nós temos, de um lado, o Homem de Ferro, o personagem que tem a visão pragmática sobre como a nova sociedade deve ser e trata de implementá-la. Do outro, nós temos o Capitão América, a representação do mundo anterior, no qual os super-heróis não tem controle.

Temos, também, personagens secundários que marcam o TOM da história. Claro, Guerra Civil empilha personagens em um esforço de marcar o caráter épico da história. Poucos, no entanto, tem um papel na história maior que o de MULETA para diálogos [Demolidor e Luke Cage; aliás, não é estranho que o HERÓI DE ALUGUEL se oponha à idéia de TRABALHAR POR SALÁRIO? Deve ser o seu lado empreendedor…] ou BUCHA DE CANHÃO [aquela galera que aparece no fundo das cenas de porradaria].

Dos que fogem dessas categorias, três [bom, dois e um grupo] tem funções narrativas específicas. A Maria Hill, primeiro, está lá para mostrar que a SHIELD não é confiável: a maior organização de espionagem da Marvel está mais para polícia secreta violenta que constrói divergências e, de forma geral, dificulta o trabalho do Homem de Ferro.

O Quartato Fantástico, segundo, aparece para dar destaque ao fator disputa fraticida da história: a “Primeira Família” da Marvel é dividida no meio pelo confronto. Uma pena que a motivação da separação seja tão MIMIMISTA: a Mulher-Invisível resolveu sair de casa porque o maridão, empenhado em salvar o mundo, não a enxergava. E o Homem-Aranha, terceiro, está lá para mostrar como a disputa é volátil e incerta e como a história é “importante” — ele faz isso trocando de lado e revelando a sua identidade secreta.

Entendida a dinâmica da história, podemos interpretar melhor algumas coisas. A primeira delas é que a história tem um mocinho. Não é verdade, como freqüentemente se lê, que Millar tenha tentado retratar “os diversos pontos em disputa” de uma forma equilibrada: o Homem de Ferro é evidentemente apresentado como aquele que tem razão.

O próprio Millar disse isso nessa entrevista para o Newsarama [agora mesmo, e infelizmente, apenas disponível no Internet Archives: é a melhor coisa que você pode ler para entender o gibi]. Você pode achar que a idéia do Homem de Ferro é idiota, como eu acho, que isso afasta o fato de que ela seja é a coisa certa dentro da lógica do gibi.

Muito embora ele cometa erros [e atue de um jeito meio violento, o que não significa nada: como bom gibi do Millar, todo mundo em Guerra Civil é meio violento], ele é o cara que está empenhado em construir o consenso.

Ele recebe o apoio ostensivo de Sharpe, que está lá para lembrá-lo que os seus erros tem respaldo moral,…

…ele é o único personagem que constantemente apresenta argumentos para justificar as suas ações. Diabos, na segunda edição é matematicamente comprovado que é preciso controlar os super-heróis.

x = (kπ) / 2 (k Є Z), LOGO, CAIU A CASA

Cartada final: o Homem de Ferro é o principal responsável pela sociedade feliz do final do gibi, uma prova de que ele efetivamente tinha razão. Já li resenhas dizendo que o final da série é ambíguo, mas nada é menos ambíguo que do que reconciliações e uma mãe confortada por um herói em uma redoma de vidro olhando, literal e figurativamente, para o horizonte cheio de possibilidades positivas.

Vitória do bem!

O Capitão América, por outro lado, não tem qualquer argumento. Trai o Homem de Ferro em pelo menos uma oportunidade. O Homem Aranha compara ele com o Justiceiro — e ele se recusa a ver o paralelo por não conseguir ser contrário às ações da “velha” América. Não pense nele como um VILÃO: ele é o pai da mocinha em uma comédia romântica, o representante da injusta e velha sociedade do início do gibi — é associado a uma bandeira chamuscada logo no seu início:

TAMBÉM PODE SER QUE ELE TENHA
ESQUECIDO DE LAVAR O PIJAMA

Isso tem, é claro, ecos ideológicos, ainda que não intencionais. Millar evitou que os personagens “falassem” argumentos que pudessem ser ligados a grupos políticos concretos, mas formatou os personagens de acordo com o seu imaginário [de novo, isso é algo que o próprio reconheceu naquela entrevista do Newsarama], “colorindo” a história.

Miriam Sharpe, por exemplo, é uma versão melhor-vestida e impoluta de Cindy Sheehan, a ativista política anti-Guerra do Iraque. A paranóia do Capitão América é libertarian, termos nos quais Millar consegue “entendê-lo”: a sua motivação é puramente anti-governamental. Patriotismo e democracia não entram na sua equação.

“WE THE PEOPLE O C@R&LH$”

A sua motivação é válida dentro do contexto da história quando é anti-SHIELD: a agência tem um modus operandi fascistóide, com a sua força de trabalho é formada por “mata-capas”, homens vestidos de preto que operam na calada da noite e usando força desproporcional contra a sua própria população:

Ela representa algo como o Patriot Act “do mal”. O Homem de Ferro, por outro lado, coloca a SHIELD no seu lugar [a coleira], torna o Capitão América obsoleto [a sua paranóia anti-governamental não faz sentido com a pessoa “certa” no poder], tem um plano moderado [o objetivo da SHIELD é caçar os super-heróis; o do Capitão, ignorar o problema; o de Stark é registrá-los]. É o Patriot Act “do bem”, que a história associa com uma versão 2.0 do “verdadeiro” ideal americano:

GANHOU ATÉ UMA BANDEIRA NOVA, SÓ PRA ELE!

Não é de se estranhar, portanto, que o resenhismo universitário que curtiu o gibi tenha citado Ronald Dworkin e Erich Fromm em seus textos: essa lógica, anti-establishment e pró-concentração de poder nas mãos do líder “certo” tem uma inclinação “de esquerda”, ainda que um pouco “hawkish”.

Mas isso não pode ser tirado do contexto. Como eu disse, Millar, ativamente, evitou que os personagens usassem referências políticas, até mesmo com prejuízo à história — é esse o motivo pelo qual os personagens anti-registro se preocupam com bobagens como “nós vamos ter férias?” enquanto que a NRA [que está aí, há anos, brigando para que massacres em escolas não se traduzam em controle na venda de armas, uma analogia óbvia] não entra na história nem indiretamente.

Mas isso não pode ser tirado do contexto. Como eu disse, Millar, ativamente, evitou que os personagens usassem referências políticas, até mesmo com prejuízo à história — é esse o motivo pelo qual os personagens anti-registro se preocupam com bobagens como “nós vamos ter férias?” enquanto que a NRA [que está aí, há anos, brigando para que massacres em escolas não se traduzam em controle na venda de armas, uma analogia óbvia] não entra na história nem indiretamente.

É que Guerra Civil é um gibi de ação, não um tratado político. O enfrentamento entre as duas “sociedades” acontece quase sempre através da troca de SOPAPOS, não de argumentos. Quando há diálogo, a ênfase são as FRASES DE EFEITO: as discussões são desconjuntadas e empilham argumentos emocionais.

Tudo isso, no entanto, é CAMUFLADO por alguns problemas. Talvez por ter sido escrita por várias mãos [editores dando pitaco], ou por ter sido reescrita várias vezes [o próprio Millar reconheceu, em entrevista ao Newsarama, que cada edição foi um parto], Guerra Civil é um gibi cheio de INCONSISTÊNCIAS.

Pra começar pelo pior caso: por que diabos o Homem-Aranha revela a sua identidade secreta? Um dos argumentos do Homem de Ferro para convencer os outros heróis consiste em dizer precisamente que isso NÃO SERÁ NECESSÁRIO e que as suas identidades secretas estarão protegidas; uma das principais preocupações dos “rebeldes” é que o vazamento de suas identidades é um risco que eles não estão dispostos a correr! É, como eu disse antes, uma forma de dar “gravidade” à história — só que é uma forma que não faz o menor sentido dentro da lógica do próprio gibi [daria para dizer “dentro da lógica” e ponto: exigiu um pacto com o demônio para ser desfeita].

A Mulher Invisível protagoniza outras duas. Primeiro, você vê o Tocha Humana, em sua identidade “civil”, sendo espancado por uma turba enfurecida. Foi ruim e tal:

PASSOU NA TV.

Três páginas depois, a irmã dele diz que esse negócio de identidades secretas não é tão importante assim:

“…ALÉM DISSO, MEU IRMÃO É UM BABACA”

Dois: dá para entender que ela se sinta ofendida quando o seu marido se recusa a falar sobre o seu plano “confidencial”…

“NÃO É COMO SE EU PUDESSE COMPARTILHAR COM QUALQUER PIRANHA”

…com os quais “Frank”, o cara do “estoque”, está familiarizado sete páginas depois:

O desenho [somando aí o traço de McNiven e a a contribuição do colorista Hollowell], quase sozinho, daria para a história o jeito épico-colorido-grim’n’gritty: ao mesmo tempo que os personagens usam as suas roupas tradicionais, hiper-coloridas, o traço é realista — elementos não concretos não são retratados [até mesmo as linhas de movimento são tímidas, como veremos depois], há textura, pouca distorção anatômica, cenários ajustados por computador [perfeitos desde o ponto de vista da perspectiva], sem onomatopéias. Assim como o roteiro, a arte, mais do que reflexão, quer produzir excitação: os personagens são agressivos e tensos [os cenários não tem cadeiras, as pessoas latem e rangem os dentes], os confrontos, físicos, as mulheres, semi-nuas:

FICO FELIZ QUE A MULHER-HULK TENHA SE DADO O TRABALHO DE VIRAR A BUNDA
PARA O LEITOR LOGO DEPOIS DE TER CONVERSA COM O HOMEM DE FERRO
DE COSTAS

Na mesma linha, o ponto de vista do leitor nunca é neutro: abundam plongées e contra-plongées e pontos de vista inclinados. A transição entre os quadrinhos é sempre do tipo ação para a ação e qualquer coisa como 90% deles é widescreen. A grade de quadrinhos só varia na quantidade de filas [entre 3 e 5]. Chega a ser um pouco monótono: o vocabulário narrativo de McNiven [um capista deslocado na função de desenhista de arte interior] não é lá muito vasto e ele é todo dedicado a fazer com que a história seja dinâmica e cinematográfica.

Mas, de novo, temos problemas. Rola um EMPATE: McNiven não consegue transmitir movimento. O contorno dos personagens é formado com linhas são contínuas e longas, combinação perfeita para se dar a impressão que algo é estático. Não tem nem uma linha de movimento para ajudar — uma concessão ao realismo: elas são uma solução gráfica, não algo que existiria na cena. O resultado não teria como ser outro: inércia.

OU ISSO, OU O CAPITÃO AMÉRICA VIROU O NEO

McNiven provavelmente estava ciente disso e buscou algumas soluções. Usou, por exemplo, elementos “reais” como linhas de movimento, como a chuva na grande batalha da quarta edição. Em duas oportunidades, deslocou o mesmo objeto dentro de um quadrinho usando elipses, o que também é uma forma comum de representar movimento.

Hollowell, o colorista, também tentou ajudar. Usou dois recursos: introduzir linhas de movimento de forma sutil, na colorização de fundo [como no teu lado direito, junto ao Capitão, na imagem aí de cima] e “desfocar” objetos em movimento, como rodas de caminhão. Isso teve um resultado CANHESTRO: não dá a sensação de movimento e chama muito a atenção para si.

Não ajuda que mudança no ponto de vista de um quadrinho para o outro seja a regra. Cada um deles uma ação de um ângulo/ponto de vista diferente. Não existe nenhuma outra forma de interação entre os quadrinhos [continuidade no traço entre os elementos existentes entre diversos quadrinhos, etc]. Isso faz com que se tenha a impressão que entre cada quadrinho existe um “corte”, o que deixa a narrativa muito fragmentada. Funciona, porém, nas batalhas campais: dá a impressão de que existem muitas lutas confusas acontecendo ao mesmo tempo.

Fora isso, também temos inconsistências. Algumas vezes, os personagens não se relacionam muito bem com o cenário. Parece que eles não estão no ângulo certo ou a proporção dos elementos em relação ao cenário está errada. Talvez seja só culpa de Hollowell: a colorização é imune às sombras, passando a impressão que os personagens estão flutuando sobre o chão:

Não é o único momento que existe uma guerra civil [tun-dun-tssss] entre a colorização e o desenho. Os super-heróis [e vilões] são coloridos, enquanto o fundo é monocromático — é a contribuição das cores para o contraste realismo/roupas espalhafatosas que se vê no próprio traço de McNiven. Mas Hollowell dá aquela textura marmórea/plastificada para a pele dos personagens:

Isso é feio por si só, mas, somado ao próprio esforço do traço de McNiven em deixá-los detalhados e realistas, faz com que alguns personagens pareçam velhos:

VOVÔ RADICAL

Guerra Civil é, então, um gibi de super-heróis de pancadaria, um pouco tosco, nada ambíguo e de significado político involuntário. Se as pessoas realmente gostaram dele pelas razões do meu segundo parágrafo, a sua principal característica é ser engraçado: empolgou por aquilo que Millar, McNiven e Hollowell não quiseram e não souberam fazer.