Plastic Man: The Eyes Have It!, de Jack Cole: Tortura infantil como paródia

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The Eyes Have It! [Police Comics #22]
Jack Cole
[Quality Comics, 1943]

Hoje é o centenário do nascimento de um dos melhores quadrinistas americanos da primeira metade do século passado: Jack Cole. Tinha planejado fazer um MEMÓRIA com uma história do Homem Borracha, a sua criação mais conhecida, em homenagem. Me empolguei e isso aqui virou uma mini-resenha.
Primeiro, contexto: Cole estreou no mundo dos quadrinhos em 1934, com o curso por correspondência da Landon School of Illustration and Cartooning [que também teve entre seus alunos Carl Barks e Milton Caniff] na bagagem. Até 1939, escreveu diversas tiras diárias [usando o pseudônimo Ralph Johns], até que começou a trabalhar na Lev Gleason Publications. Lá, desenhou personagens da Era de Ouro como Daredevil [não confundir com o da Marvel] e The Claw e séries policiais como True Crime Comics.
Nos anos 40, além de trabalhar no estúdio de Will Eisner, Cole desenhou diversos gibis para a editora Quality Comics Group, como Midnight, um The Spirit genérico, e o Homem Borracha [Plastic Man] que em seguida nos ocupará. Na década seguinte, Cole ainda desenharia cartuns para a Playboy [Females by Cole, que deu origem ao SEGUNDO merchandising comercializado pela revista, uma coleção de guardanapos para coquetéis] e a tira de humor doméstico Betsy and Me. A sua carreira acabou em 13 de agosto de 1958, quando Cole se suicidou.
Criado para a revista Police Comics #1 [agosto de 1941], o Homem Borracha ocupou Cole por grande parte da década de 40 e merece ser analisada com lupa: reúne diversas características de sua obra — a começar pelo senso de humor surreal. Jeet Heer, ao resenhar em setembro de 2003 os Plastic Man Archivesque a DC tinha publicado até então, escreveu esse belo artigo sobre o personagem fazendo essa relação [originalmente, saiu no The Comics Journal #255]. Art Spiegelman inclusive teve um livro publicado em 2001 sobre Cole e o Homem Borracha — Jack Cole and Plastic Man: Forms Stretched to Their Limits, com design de Chip Kidd e disponível em diversas livrarias cadastradas no AbeBooks.
E, se Plastic Man é uma boa amostra da obra de Cole, The Eyes Have It!, a história da postagem, é uma boa amostra de Plastic Man. Publicada em Police Comics #22 [de setembro de 1943], republicada no próprio Jack Cole and Plastic Man de Spiegelman e no Plastic Man Archives v. 2, The Eyes Have It!mostra o Homem Borracha e o seu sidekick/alívio cômico Woozy Winks salvando um garoto órfão das mãos de uma quadrilha que vende crianças para pessoas que querem desesperadamente serem pais.
Os elementos desse resumo da trama [o herói é extremamente heróico, o vilão, cruel e a vítima, inocente] fazem parecer que The Eyes Have It! é uma história de super-heróis quase exemplar. Mas essa é uma primeira impressão falsa. Os vilões de rosto caricato, resguardados em um porão que é retratado de um jeito que parece uma versão de dez centavos de um fotograma de um filme expressionista alemão…
…a vítima que tem por principal atributo o olhar inocente e o Homem Borracha que é uma versão caricata da figura de um herói tradicional [o queixo chamativo, os ombros largos] protagonizam uma história violenta e pesada que mostra de um jeito nada sutil uma criança sendo torturada:
Waterboarding um bebê.
O vilão é decapitado por uma armadilha para ursos, em um quadrinho que lembra um remake de Jogos Mortais encenado pelos personagens da Turma do Pernalonga:
Oops.
Existe pelo menos um outro elemento irônico. As situações de perigo são exageradas [inclusive pela narrativa] e superadas em um passe de mágica, como cliffhangers continuamente frustrados por um colchão de ar ex machina:
Aliás, toda a narrativa é exagerada: os personagens se movimentam de um jeito teatral e distorcido, o próprio cenário é distorcido para se adaptar à narrativa, existem ângulos inclinados, fechados, elementos em primeiríssimo plano… um arsenal de recursos narrativos utilizados para fazer com que a história seja empolgante e ágil. Cole é conhecido pela sua habilidade na composição de páginas — muito mais pela disposição dos elementos do que pela estrutura da grade. Perceba como ele usa isso em seu favor para estabelecer continuidade e sensação de movimento nos três primeiros quadrinhos da segunda página [a primeira depois da página título], uma piada visual que abre a história, e o uso da cerca na formação de um sub-quadrinho com outra ação no espaço deixado dentro do painel pela condução do olhar do leitor [que, por sua vez, tem as suas fronteiras rompidas pelos personagens]:
O final é o melhor exemplo disso, dos truques da narrativa à ironia da trama: uma criança de olhos gigantescos conta para o personagem alívio cômico como foi torturada pelo seu próprio pai, o que é graficamente retratado de um jeito cartunesco, enquanto que o herói da história salva um monte de criancinhas sem qualquer explicação minimamente lógica.
A história, é o que dá para tirar disso, é uma piada com os gibis de super-heróis. Cole está rindo do fato de que o gênero ignora os moradores fictícios dos prédios destruídos por heróicos super-golpes, enquanto produz empolgação de glacê — e ele fez isso escolhendo um tema tão sensível que nem o mais tarado dos fãs de super-heróis poderia ignorar que ele é gerador de sofrimento genuíno.
É a mesma lógica que opera naqueles gibis da década de 80 que eu, você e todo mundo adora — só que em 1943, de um jeito engraçado e politicamente incorreto [Cole, no final das contas, está usando a violência contra as crianças para fazer piada com gibis de super-heróis, algo que hoje em dia geraria muito mimimi] e em apenas 15 páginas.
Leia a história [que, a propósito, eu encontre no excelente Cole’s Comics] aí em baixo e dê umas risadas com ele.
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