The Mocker, de Steve Ditko: Quadrinho underground objetivista

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The Mocker

Steve Ditko
[2001]
Steve Ditko é um cara com admiradores ilustres. Em In Search of Steve Ditko, o documentário televisivo que Jonathan Ross produziu para a DC, temos uma coleção deles: o próprio Ross, Mark Millar, Joe Quesada, Neil Gaimane Alan Moore [que, aliás, usou os personagens criados por Ditko para a Charlton para escrever Watchmen]. Some Frank Miller, outro fã, à dupla final e perceba: os três quadrinistas mais importantes dos quadrinhos dos anos 80 recomendam o trabalho de um cara que… sumiu do mapa precisamente naquela década.
Tome essa edição de The Mocker como exemplo. São 110 páginas [não numeradas, o número é aproximado] impressas em papel newsprint — o jeito técnico de descrever a opção mais chumbrega disponível. O design da edição é… NENHUM: a lombada tem The Mocker by Steve Ditko, o ISBN [quem diabos coloca o ISBN na lombada?] seguido de um “Robin Snyder and Steve Ditko”, tudo em Times New Roman preto, com fundo branco [Snyder, a propósito, é o único editor com o qual Ditko ainda trabalhava].
É uma coletânea publicada em 1990 [a minha, especificamente, é uma reimpressão de 2000] com todas as histórias do personagem título lançadas ao longo da década de 80 e diversas revistas. Quer prova do calibre do OCASO? A primeira delas foi contratada como uma história preto e branco em formato magazine por Richard Howell, editor da New Media, vendida sem o conhecimento de Ditko para a Pacific Comics e publicada como backup no número dois da revista Silver Star [uma cópia de X-Men criada por Jack Kirby] em formato americano colorido — quase o oposto do projeto original.

Mas o que Gaiman, Miller e Moore enxergaram nele? Em In Search of Steve Ditko, Moore fala da paranóia, da claustrofobia, dos personagens à beira de uma revelação ou de ataque de nervos e sim, os gibis dele tem tudo isso e tudo isso é ótimo. Mas é difícil separar as hqs de Ditko e os seus personagens cada vez mais estranhos do próprio Ditko e as suas idéias: ele escrevia SOBRE ALGO. Como a trinca, enxergava nos quadrinhos algo além do escapismo.
Nessas alturas do campeonato, Ditko tinha uma idéia bem definida sobre como deveriam ser os seus gibis de super-heróis. Envolve duas coisas: uma] os super-heróis são modelos de comportamento e nos mostram como nós deveríamos agir; duas] esse “como” é algo objetivo. Melhor: Objetivista. O parâmetro é a filosofia anti-relativista de Ayn Rand.
As duas coisas estão diretamente relacionadas. No documentário de Ross, Moore meio que tira uma onda da cara do Ditko pelo anti-relativismo: “existe preto e existe branco e não existe nada no meio”. Nem Ditko, nem Rand, ignoram que as relações humanas são complexas — é precisamente por isso que eles defendem a existência de um código moral que separa o certo do errado: para que as pessoas, diante de uma situação complexa, possam “separar os elementos que sejam certos dos errados”.
Onde The Mocker se encaixa nisso? No meio. The Mocker é mais realista do que a segunda metade do Homem-Aranha de Ditko. Na história, Tyler Rayne é um assistente de Promotoria que é preso ao cair em uma armação montada por um senador corrupto, que por ele era investigado, pai de sua namorada [Ella Durn]. Na prisão, Rayne faz um acordo com o mafioso Ziger: esse promete entregar provas de sua inocência; em troca, Rayne deve buscar, fora da prisão, informações que são do interesse das operações de Ziger. Isso se organiza em dez histórias de dez páginas. Em cada uma delas, Rayne enfrenta um vilão/cumpre uma missão, tenta descobrir porque Ziger quer ajudá-lo, é perseguido pelo policial Bram e confronta Ella, que se recusa a aceitar que o seu pai é corrupto. O Mocker do título é o seu alter-ego super-heróico, cuja existência e relação com Rayne os outros personagens ignoram.
Isso tudo acontece em um contexto mundo real: os personagens são promotores, policiais a paisana, senadores e mafiosos — um elenco amplo e engravatado [perceba como na capa, lá no início da postagem, só tem um personagem mascarado]. Mocker é um dos poucos seres super-poderosos do gibi. Seu super-poder consiste em deixar ambientes mais escuros e fundir-se com as sombras, “mocking their eyes”, além de “contaminar” capangas com a escuridão, processo muito útil para interrogá-los.

A minoria dos vilões usa trajes espalhafatosos e tem, no seu nome, uma definição [o da segunda história, Fang, é um homem vestido de… cobra. Não deixa de ser um pouco mais realista que o Lagarto, que era um homem que se transformava em um lagarto]. O papel deles, ainda, é secundário [fora a primeira história]. Na primeira edição, Mocker desmascara um candidato a senador, Owen P. Peck: “não se preocupe, doutor, ela tem quase 14 anos – a idade da sua filha. Você tem a mente aberta como ele!”, diz para um de seus apoiadores, depois de despejar fotos do comitê de campanha do candidato. “É uma armadilha! A oposição está por trás disso!”, grita Peck.
Também se percebe na narrativa. Os quadrinhos de The Mockerretratam ações concretas. Só em três oportunidades, são abstratos — para mostrar diferentes ações simultâneas em um mesmo quadro; para mostrar diversos personagens refletindo ao final de uma história; e durante uma sequência onírica. Ninguém esmurra um conceito dentro de uma nuvenzinha [como nos gibis mais panfletários de Ditko]. O quadrinho de abertura abstrato que resume a história de forma simbólica, frequente nos gibis dos quadrinistas da Era de Prata, não é utilizado.
Só que não dá para escrever uma história realista com personagens idealizados. É por isso que o Batman de O Cavaleiro das Trevas, o gibi de Miller, reclama tanto de dor nas costas. Rayne enfrenta diversas dúvidas, além da desconfiança de praticamente todos os outros personagens da história. Mas esses são problemas que ele enfrenta com um propósito: suportar. Permanecer íntegro. Noutras palavras: mostram como Rayne é MODÉLICO e VIRTUOSO. Olha só o discurso que ele dá quando Ziger revela os seus planos e lhe promete o mundo, mulheres, riquezas etc pela sua ajuda:
Para o Objetivismo, o critério moral básico é o egoísmo racional: o indivíduo deve preocupar-se com a própria sobrevivência [objetivo último da vida humana], individualmente. E a única forma de fazê-lo é não sacrificar-se por ninguém, nem sacrificar ninguém. É um critério, assim como os problemas que a sobrevivência enfrenta, objetivo: você pode ignorá-los, mas não pode evitar sofrer as consequências de fazê-lo [o que faz do conhecimento, aliás, uma ferramenta de sobrevivência].
Você encontra tudo isso de forma bastante mastigada no livro The Virtue of Selfishness [especialmente nos artigos The Objectvist Ethics e The Cult of Moral Grayness]. Dentro desse esquema, a própria Rand descreve algumas posturas possíveis — que Ditko transforma em personagens de The Mocker. Rayne, claro, é o herói: não sabe tudo, mas não ignora que deve fazê-lo, nem os parâmetros morais que devem orientar o seu agir.

Bram e Ella ignoram a “realidade” e não são fortes o suficiente para enfrentá-la – o primeiro, por culpa, a segunda, por apego a uma noção que Rand certamente consideraria subjetiva e atrasada: laços sanguíneos. Fraquezas que o comportamento de Rayne incentiva a superar:

Ziger, o senador Durn e Larry [o novo funcionário da Promotoria e namorado de Ella] são “brutos”: ignoram o egoísmo racional, os dois primeiros ao tentar sacrificar os outros em proveito próprio, e se destroem ao fazê-lo [única consequência possível].

Esse aí é o senador Durn tomando uma sova de um dos seus lacaios.
No lado narrativo da coisa, o que o gibi não tem de abstração, tem de FRAGMENTAÇÃO. Pensadas para o formato magazine, as páginas frequentemente tem mais de QUINZE quadrinhos. Como a maioria dos quadrinhos tem planos fechados, e as cenas são formadas por poucos, de ângulos variados [principalmente para aumentar destacar o impacto da ação de um quadrinho; aliás, a iluminação também não se guia pelo realismo, servindo apenas a propósitos dramáticos], e frequentemente sem continuidade direta entre um e outro, a narrativa é bastante rápida e pesada — muita história avança em poucas páginas, e em cada página há pelo menos três cenas, em que a transição não acontece de forma muito clara.

VINTE E UM quadrinhos.

A exceção de uns dois ou três “enquanto isso” [ou a sua variação, “em outro lugar”], também não há textos de apoio. Os personagens pensam em voz alta, frequentemente de uma forma que parece codificada em palavras-chave [“…waited long enough… have to try it… feel the odd sensation…”].

Os cortes bruscos convivem com outros quadrinhos, que são a minoria, em que Ditko fixa o ângulo da câmera por três ou quatro deles. O contraste entre essas sequências e as normais força a sensação de FLUIDEZ. O resultado é bastante cinematográfico. Para ajudar, Ditko não usa onomatopéias:
Nessa última sequência aí, olha só como funciona a continuidade entre um quadrinho e outro [e compare com a página anterior, onde praticamente não há continuidade]:

Mocker ocupa mais espaço dentro do quadrinho [como você pode ver pela linha verde] e Fang [o vilão homem-cobra], menos. Existe também uma pequena diferença entre a altura da cabeça do personagem, o que dá a impressão de crescimento: no primeiro quadrinho, ela não aparece na mesma posição [o ângulo é diferente]; no segundo, não aparece inteiramente; no terceiro, completamente, um pouco mais alto. E veja como também existe uma continuidade forte entre o braço de Fang no primeiro quadrinho e o de Mocker no segundo, o que faz com que a mudança de ângulo pareça muito mais natural.

Fragmentado e denso, The Mocker é uma tese em quadrinhos: é sobre certo e errado, a importância de fazer o que é certo, sobre responsabilidade individual. Vai ver que a explicação de Paul Gambaccini para o sumiço de Ditko, de novo no programa de Ross, é a certa: os jovens de hoje em dia não gostam de ouvir que estão errados. [RESENHAS]