As Tartarugas Ninja de Kevin Eastman e Peter Laird: “Nós tartarugas não somos cães sem honra”

Outubro de 2009. O Nickelodeon compra os direitos das Tartarugas Ninja do estúdio Mirage, [formado pelos criadores dos personagens, Peter Laird e Kevin Eastman. Fevereiro de 2012. Michael Bay, o cara que é odiado por nove de cada 10 pessoas que se levam a sério demais, é anunciado como produtor do filme. Março de 2012. Bay anuncia que as tartarugas do filme não serão mutantes [como em teenage mutant ninja turtles], mas alienígenas e que o filme será chamado de Ninja Turtles [o que dá a entender que elas também não serão teenage]. A Internerd explode.

Relendo as primeiras histórias dos personagens, reunidas nesse encadernado bonitão da IDW, isso só pode causar certa perplexidade [reação do próprio Eastman, aliás; Laird, o mais anal-retentivo da dupla, se desesperou]: as Tartarugas Ninja tiveram a sua origem em uma piada. Como ele explica na primeira annotations dessa edição, “quando Peter estava assistindo ao seu programa de TV favorito, o meu trabalho era incomodar ele, então eu fiz isso naquela noite rascunhando uma tartaruga de pé, com uma máscara e nunchaku amarrados aos seus braços. Apelidei ela de ‘Tartaruga Ninja!’ e nós demos umas risadas. Algumas horas depois, em uma típica noite de loucura de estúdio, nós tínhamos um desenho finalizado de quadro personagens das artes marciais com poses dramáticas e um título, ‘Teenage Mutant Ninja Turtles’”.

Parte desse APPROACH ficou quando os personagens ganharam uma história: saiu o deboche, ficou o improviso, entrou o NERDISMO: as Tartarugas Ninja de Laird e Eastman são uma mistura de tudo aquilo que eles gostavam no entretenimento pop-nerd, mais preocupado com que o resultado seja EMPOLGANTE do que com a sua coerência.

A prova está nesse Teenage Mutant Ninja Turtles: The Ultimate Collection vol. 1, primeiro de cinco encadernados da IDW que reúnem todas as histórias da dupla na primeira série dos personagens, publicada fanzineiramente pelos dois no seu estúdio, o Mirage. São oito histórias, publicadas entre 1984 e 1986, sete da série regular e uma [a quarta do encadernado] em Raphael, primeira edição de uma micro-série de quatro, cada uma dedicada a um dos personagens.

O IMPROVISO se percebe nos roteiros — que funciona à base de uma coincidência milagrosa por história. A quantidade de diálogos expositivos, artimanha fácil para contar a história em vez de mostrá-la, é suficiente para deixar Stan Lee desconfiado de que houve um EXCESSO.

Os personagens são unidimensionais. Donatello, April e Splinter são atalhos para o roteiro: o apego por eletrônicos do primeiro “justifica” algumas das coincidências do roteiro; a segunda é um gerador de frases de preocupação que anda [o que, por sua vez, é um recurso para criar dramaticidade na história]; e o terceiro é um McGuffin [seis das histórias envolvem encontrá-lo] no formato mestre em perigo. Rafael e Leonardo são os únicos que chegam perto de ter uma personalidade — o relacionamento entre os dois, o irascível e o líder, é uma das molas propulsoras da história. Michelangelo não é nada, nem o party-on man do desenho animado [também ausente: pizza].

E, ao mesmo tempo, nada disso importa. A terceira história do encadernado se divide em duas partes: a primeira usa dez páginas [de dezesseis] em uma perseguição de KOMBI. Isso não acontece porque Laird e Eastman estavam preocupados com o drama: acontece porque perseguições de carro são LEGAIS.

Esse é o espírito que move a dupla, só que em versão NERDISMO QUADRINISTA DOS ANOS 80. A primeira é uma história de origem — um atrás das câmeras da origem do Demolidor [é uma continuação do acidente que deu a Matt Murdock os seus poderes], com diversas referências à fase de Frank Millerna série do personagem. Para ficar nas NOMINAIS: Splinter [“farpa”] é uma referência ao mestre ninja do Demolidor, Stick [“bastão”]; os inimigos das tartarugas, o Foot Clan [“Clã do Pé”], ao clã ninja inimigo do Demolidor, The Hand [“A Mão”, apresentado em Daredevil #174, de 1981].

Volto para Miller logo mais. Para continuar no argumento: a quinta edição é uma grande homenagem a Guerra nas Estrelas, incluindo um quebra-pau generalizado em uma versão Manhattan alienígena-oitentista da cantina Mos Eisley, com direito a um Império cujos soldados copiaram o visual dos oficiais chefiados por Darth Vader.

A MUSIQUINHA TÁ TOCANDO NA TUA CABEÇA QUE EU SEI

A sexta, acrescenta triceratops antropomórficos com exoesqueletos [além do Fugitoid, um Richard Kimball robótico] no MIX, no momento em que a série mais chega perto de ser… séria. O conflito Human Federation, aka o Império, contra os Triceratons é literalmente comparado com a Guerra Fria na sexta edição. A comparação é levada a sério por UM QUADRINHO e é seguida de uma batalha entre as tartarugas e triceratops gladiadores em uma arena romana alienígena.

Esse copia e cola de referências ao entretenimento nerd é ainda mais perceptível na arte, uma homenagem declarada [conforme os próprios criadores reconhecem nas annotations que acompanham a edição da IDW] a Jack Kirby e ao já citado Frank Miller.

De Kirby, além da estrutura linear e densa, acumulando novos personagens e conceitos exagerados para povoar o TMNT-verso [abundam: quadrinhos-panorama, planos abertos situando o contexto da história], a dupla copiou a apresentação da história — só uma edição não começa com um splash-page seguido de um splash-page duplo, que os próprios reconhecem ter copiado dos gibis do Kirby nos anos 70, projetado para jogar o leitor em uma história que já começa na quinta marcha. Assim:

NOVOS DEUSES [em Superman Pal’s Jimmy Olsen #133, de 1970]

Outra técnica kirbyana também ajuda que tudo seja tão INTENSO, os quadrinhos 3D. É uma forma de usar a perspectiva, distorcendo as proporções dos elementos em primeiríssimo plano, o que faz com que pareça que essas estão se projetando para fora da página.

OU O MOUSER QUE DEVERIA SER DO TAMANHO DO BRAÇO DO RAFAEL TÁ GIGANTE,
OU EU NÃO SEI MAIS USAR O PAINT

Por outro lado [isso aqui é o momento conhecido como LOGO MAIS], que os nomes dos personagens sejam uma referência ao Demolidor de Miller é parte de uma homenagem maior, temática: a mistura de imaginário ninja com ambientação decadência urbana. As histórias urbanas das Tartarugas Ninja sempre acontecem no lado chumbrega da cidade [e elas moram no esgoto]. E o imaginário ninja está no título, na história, nos vilões e no VOCABULÁRIO: as armas usadas são chamadas katanas, nunchakus, bos e sais, não de espadas, tacos e, sei lá, estrelinha ninja.

No lado estético, o jeito rascunhado do desenho é uma versão de Ronin. Perceba como as hachuras das figuras e a irregularidade das bordas dos quadrinhos parecem versões exageradas do épico ninja futurista de Miller:

Aliás, sobre as hachuras: pra fazê-las, Laird e Eastman usaram um papel especial, o Duo-Shade da Graphix. É um papel que reage a duas tintas químicas, que produzem, cada uma em um sentido, essas pequenas linhas paralelas que você pode ver nas páginas aí de cima. No vídeo aí de baixo, Laird mostra como funcionava o processo:

Isso, por um lado, faz com que a referência a Ronin pareça traduzida por uma máquina pop-fanzinera — hachuras mecânicas, reproduzidas por algo um pouco melhor que a xerox, homenageando um gibi cheio de pretensões estéticas. Por outro, deixa essa edição da IDW ainda mais bacana: as folhas do Duo-Shade tem mais ou menos 43 por 55 centímetros, e com cada uma a dupla fazia três páginas do gibi. Isso faz com que a edição tenha praticamente o tamanho das páginas originais, 20 por 30 centímetros.

Voltando para Miller, Laird e Eastman também copiaram dele alguns recursos narrativos: a composição de algumas páginas e das cenas de luta. Algumas páginas são formadas com uma grade mais tradicional, até mesmo com o três por dois que Kirby começou a usar a partir de sua fase no Quarteto Fantástico. Essas são as mais carregadas no texto [expositivas, servem para contar a história]. Outras, no entanto, são irregulares e construídas a partir de seqüência independentes, algumas com base em quadrinhos horizontais/widescreen ou a partir do rompimento da quarta parede, ou ainda do fluxo de movimento de uma determinada seqüência [ou tudo isso junto]. Olha só essa página aí em baixo.

Ela pode ser dividida em duas partes, a primeira formada pelo ataque do vilão genérico ao Donatello [e o respectivo contra-ataque], a outra pelo plano aberto que situa o herói em uma emboscada. A transição dos quadrinhos que formam a primeira seqüência são do tipo ação-para-ação [ninja pula pelas costas; ninja lança shuriken; Donatello se defende do shuriken; Donatello lança bo contra ninja]. Os shuriken lançados rompem a quarta parede e insinuam o movimento esquerda-direita — repetido no quadrinho widescreen, só que com uma mudança na inclinação e no ângulo [o câmera man se “desequilibrou”], além da distorção na perspectiva sobre a qual eu falei antes, tudo colaborando para que o impacto do bo na fuça do ninja tenha mais intensidade.

O objetivo dessas páginas irregulares é MOSTRAR a luta da forma mais dinâmica possível, fazer uma espécie de BALÉ — o que denúncia uma hierarquia na qual as ARTES NINJA versão BAITA LEGAL, VÉI estão no topo. E outro dos artifícios que mostram isso são as seqüências de lutas retratadas com enquadramentos objetivos [plano aberto ou americano, nenhuma inclinação na “câmera”; ação retratada lateralmente], copiadas do… Demolidor de Frank Miller:

[Daredevil. v. 1 #183, de 1982]

Como Laird e Eastman colaboravam de forma tão orgânica, é difícil de saber quem é responsável pelo quê: os dois ficavam frente a frente, passando as páginas para lá e para cá, de forma que todas elas fossem desenhadas e arte-finalizadas pelos dois. Mas, conforme as annotations, desenhar o maquinário, que tem um jeitão kirbyano [parece um amontoado de formas geométricas] era tarefa de Laird, que teria o traço mais limpo — o que faz presumir que a SUJIDADE-milleriana era coisa de Eastman.

Com o dinheiro que ganhou com as Tartarugas, Eastman fundou a editora Tundra [que publicaria Big Numbers, de Alan Moore e Bill Sienkiewicz, foi a falência e levou uns dez milhões de dólares pelo ralo junto] e comprou a Heavy Metal, o que parece indicar que ele abordava o assunto de um jeito mais CONCEITUAL — Laird, por outro lado, não voltou a desenhar quadrinhos [fora projetos isolados relacionados às próprias Tartarugas Ninja] e criou a fundação Xeric, que financia a publicação de gibis auto-editados.

Os dois, no entanto, transbordam EMOÇÃO. As Tartarugas Ninja não são uma sátira: o método é de paródia, mas a intenção não é irônica. É uma homenagem bem-humorada. Laird e Eastman fizeram aqui o que Robert Rodriguez fez pelos filmes de terror b em Planeta Terror, o que James Gunn fez pelos filmes de aventura espacial dos anos 80 em Guardiões da Galáxia. Não é deboche, porque é bem intencionado, e exige dedicação, mas também reconhecer que essas coisas não são… intocáveis. Envolve não levar as Tartarugas Ninja a sério como seus xarás renascentistas: os seus próprios criadores não fizeram isso com o seu entretenimento pop favorito para reprocessá-lo, homenageá-lo e pari-las.

Teenage Muntant Ninja Turtles: The Ultimate Collection v. 1
Kevin Eastman e Peter Laird
[IDW, 2011]