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Demolidor: Amor e Guerra
Frank Miller e Bill Sienkiewicz
[Editora Abril, 1988]
A melhor forma de começar essa resenha de Demolidor: Amor e Guerra, de Frank Miller e Bill Sienkiewicz, é te pedindo um SALTO DE FÉ. É que a primeira página do gibi retrata as suas principais características. Mas só posso colar ela depois da quebra de página para não ferrar com a formatação da postagem.
Então, você aí que acessou o site pela página inicial: clica ali no “Continua na pg. 2 »”. Te garanto que o texto tá massa.
Obrigado. Bom, dá uma olhada na imagem aí de cima. O texto de apoio é um monólogo interno do Rei do Crime, na consideravelmente suavizada versão da Abril: “Eu edifiquei um império sobre o pecado humano. Sou temido por homens honestos e corruptos. Não me importa se é um policial de alta patente ou um medíocre criminoso… Todos me obedecem. Tenho tudo que desejei. Tudo que desejei… até conhecer você…”.
[No original, por curiosidade: “I have built an empire on human sin. I am feared by the honest and the wicked. Elected officials obey my will as swiflty as the lowest pimps and pushers. I have everything I desired… Everything I desired… until I met you].
Como Sienkiewicz desenhou isso o centro desse IMPÉRIO DO PECADO? Com uma torre gigantesca, que domina a skyline novaiorquina, iluminada e dourada — não exatamente uma cor demoníaca. É uma constante em Amor e Guerra: A imagem mostra uma coisa; o texto, outra.
Não é que Sienkiewicz e Miller tivessem brigado: como o texto do gibi é invariavelmente escrito em primeira pessoa, o que a contradição entre texto e imagem faz é nos mostrar que a impressão subjetiva dos personagens não é confiável. Você deve duvidar deles. E isso reflete a proposta do gibi: Amor e Guerra tem mais dos anos 80 do que os apliques de cabelo e as ombreiras dos personagens: é desconstrucionismo de heróis; são personagens que traem as expectativas.
Na história, que se divide grosso modo em três linhas narrativas, o Rei do Crime decide contratar um psiquiatra famoso, Paul Mondat, para tratar de sua esposa catatônica, Vanessa [1]. Claro que ele faz isso à moda do REI DO CRIME: enviando um psicopata instável, Victor, para sequestrar a esposa do psiquiatra, Cheryl — uma forma de garantir o engajamento daquele no tratamento. Victor faz isso e se apaixona por ela, que consegue escapar — a sua tentativa de reencontrá-la é a linha narrativa 2. Você deve ser capaz de supor o que o Demolidor pinta nesse quadro: o papel dele é libertar Cheryl e Paul [3].
Superficialmente, é fácil encaixar cada um desses personagens em um papel arquetípico. Reorganizando o resumo, temos uma história em que o Rei do Crime é o vilão, Cheryl e Paul são as vítimas [ela uma dama; ele, casado com ela mas bastante mais velho, a figura paterna impotente ou “o rei doente”], e o Demolidor é o cavaleiro de armadura reluzente.
Só que Amor e Guerra não funciona assim. As ações do Rei do Crime são movidas por amor e, no final, ele se revela como um altruísta — escolhe a cura de Vanessa a custa do seu próprio sofrimento. A doença de Vanessa é um castigo pelo seu modo de vida [do qual ela quer “escapar”]. E personagens que caem em desgraça por culpa de um erro moral são típicos protagonistas de tragédias.
[Parênteses para quem quer se perder em caminhos Jung-Campbellianos: o Rei do Crime é constantemente retratado na história como um círculo. O círculo é o símbolo junguiano da integração psicológica — para o que nos interessa, a integração da personalidade que segue à jornada do herói. Percebam que o Wilson Fisk já concluiu a sua jornada: ele “edificou um império”.
As crises de frustração do personagem são retratadas por Sienkiewciz como uma ruptura ou uma sombra desse/nesse círculo:
Seria essa forma que o desenhista encontrou de retratar que o personagem está na iminência de sofrer uma desintegração de personalidade — PIRAR NA BATATINHA? Ajudem-me. Fim do parênteses].
O papel de Cheryl como dama em perigo parece especialmente óbvio, pela forma como ela é retratada…
…e descrita: Victor, que se vê como um cavaleiro, chama ela de “minha rainha”; está empenhado em salvar a sua honra”; a compara com a Bela Adormecida e com Helena de Tróia. Só que tanto Cheryl quanto Paul conseguem escapar de seus captores graças às suas próprias forças: a primeira, ao ser “abandonada” pelo Demolidor [que, depois de libertá-la, involuntariamente conduziu Victor ao seu encontro de novo]; o segundo, ao conquistar a confiança de Vanessa e virar a mesa pra cima do Rei do Crime [o Demolidor chega para salvá-lo… bem a tempo de encontrar um quarto vazio].
Já deu para perceber que o Demolidor tem em Amor e Guerra o momento mais inútil [para não dizer abertamente contraproducente] de sua carreira, o que comprovaria o meu ponto de que ele o seu papel, aqui, é de herói falível e falhado — e a primeira vez que ele aparece na história é como um brutamontes fanfarrão. Assim:
Só que é pior do que isso. Victor, o psicopata [e uma versão com cara de babuíno e delírios de grandeza de Marv, o protagonista do primeiro
Sin City], se enxerga como o cavaleiro medieval que vai salvá-la. Isso é literalmente dito:
Victor é um psicopata [Sienkiewicz nos diz que ele sofre de múltiplas personalidades multiplicando o seu rosto no mesmo quadrinho durante as suas crises psicóticas, cada um com uma expressão facial diferente; em um outro momento, um diálogo interno, “rabiscando” uma de suas pupilas, que se torna cada vez maior na medida em que o debate entre as suas personalidades se acelera”] e o Demolidor não, mas a diferença entre os dois é muito mais uma questão de histeria e feiura: os dois são auto-centrados, ineficientes e nutrem sentimentos românticos por Cheryl, uma mulher casada que não faz outra coisa além de estar desmaiada.
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Te segura aí, magrão. |
Os dois justificam as suas ações, para si mesmos, da mesma forma: são heróis que devem salvar Cheryl, a princesa indefesa. A inaptidão do Demolidor e a inversão dos papéis [o vilão que não é tão vilão, as vítimas que não precisam ser resgatadas] mostram que a história é uma paródia. O paralelo entre o Demolidor e Victor mostra o alvo: o contrário do que Miller chama de heróis noir [“cavaleiros com a armadura coberta de sangue” e que “sujo, faz o seu melhor para negar que é um herói“], os heróis de sentimentos nobres e armaduras brilhantes, retratados aqui como uns farsantes.
Mas tem mais coisas que já se insinuam naquela primeira página: Sienkiewicz em modo liquidificador de referências traduzidas aos quadrinhos. Ele começou a carreira emulando Neal Adams [com quem, aliás, trabalhou no projeto do palco do Dark Side of the Moon Tour, de Roger Waters, em 2006]. Parte disso nunca ficou para trás — os ombros largos, os rostos expressivos, a teatralidade dos movimentos, etc.
Mas esse gibi é de 1986 [dois anos antes, aliás, de
A Piada Mortal, o outro clássico oitentista que também parodia o papel do herói já
resenhado por aqui, ainda que em outros termos]. Posterior, portanto, à sua fase em
New Mutants, que deixou ele assim:
De cara, na primeira página, a convivência entre a tridimensional torre do Rei do Crime e outros prédios menores, quadrados, rabiscados e bidimensionais, lembra um rascunho de um quadro do Klimt sem o jeitão art noveau. Também entre os artistas modernos dá para perceber a influência de Robert Rauschenberg. Temos uma página formada a partir de colagens de fotos e jornais; as que, como esse splash-page aí em cima, são tão texturizadas que parecem impressas em relevo, por outro lado, são… TODAS.
Sobra também para ilustradores comerciais. As cenas mais bucólicas entre Matt Murdock e Cheryl, posadas e com cara de fotografia envelhecida, lembram as ilustrações de Bernie Fuchs. Algumas fontes, e o onipresente respingo de tinta, lembram Ralph Steadman [mais conhecido por ser capista habitual de Hunter S. Thompson]. Saca só esse WHUMP:
Nem tudo é tão artê. Sienkiewicz usa, com frequência, convenções que sinalizam exatamente o que aquela imagem quer dizer [os olhos de Victor como retratos de sua personalidade e a iluminação não natural do rosto da mocinha quarta imagem desta resenha, que lhe dá um ar angélico, pra ficar em dois exemplos já usados]. Na cena em que Cheryl é sequestrada por Victor [em versão coadjuvante de Spy vs. Spy], essas convenções parecem de um desenho do Pernalonga:
Isso tudo tem consequências narrativas. Sienkiewicz trata as suas páginas como unidades coerentes, frequentemente agrupadas. Isso é uma forma rebuscada de se dizer que a mesma página não retrata ações de linhas narrativas diferentes, a não ser que estejam se cruzando. Assim, depois daquela primeira página, nós temos três dedicadas ao Rei do Crime atormentado no quarto de sua esposa, seguida de outras três que mostram o sequestro de Cheryl, duas que apresentam o Demolidor e assim por diante.
Na metade do gibi, o ritmo até acelera: as sequências duram apenas uma página; passá-las significa trocar de linha narrativa [pelo menos uma vez em um vai e volta]. Mas, mesmo assim, a mesma página não mostram ações não diretamente relacionadas — o aconchego ao modo Fuchs da casa do Demolidor não divide espaço com a sujeirada das cenas ambientadas na rua.
Essa mistura [de referências, não de linhas narrativas] só acontece no final. O gibi termina com uma sequência de quatro páginas [seguidas de outras duas que funcionam epílogo]: Cheryl escapa de seu “salvador” Victor. É o único momento em que os quadrinhos de ângulos retos são sistematicamente preteridos [em favor de uma grade mais… pontiaguda].
Como a primeira página, as últimas também dizem muito sobre o gibi: cada quadrinho usa uma das referências listadas aí em cima para mostrar como a dama indefesa, sexualmente acossada, envia para um delírio post-mortem aquele que se vê como o seu salvador pelo método do ferro em brasa enfiado na cara. Um momento de truculência que mostra quem é que tem que salvar quem na história.
[PARA OS FORTES]