O Reino do Amanhã, de Mark Waid e Alex Ross: O domínio dos medíocres

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Kingdom Come
Mark Waid e Alex Ross
[DC Comics, 1996]
Muitas pessoas já descreveram para ti O Reino do Amanhã, [+] minissérie da DC, publicada em 1996 [e agora relançado pela Panini em uma “edição definitiva”] e de CREDIBILIDADE CULTURAL, como uma resposta saudosista de Mark Waid [+], fã da Era de Prata, ao cinismo dos heróis do início da década de 90, desenhada por um Alex Ross [+] que é um gênio da renascença revivido e dedicado aos quadrinhos.
Pois bem: muita gente já te mentiu. O Reino do Amanhã não é nada disso.
Começo pelo que mais me indigna: Alex Ross, talvez o principal responsável pela série e seu sucesso. Ross tem uma grande virtude: é capaz de produzir splash-pages que dão medo e inspiram grandiosidade ao mesmo tempo. Assim:

Essa virtude está alicerçada na escala, no apego pelo épico [abundam contra-plongées] e na inércia — Ross não retrata ações em seus splash-pages, apenas momentos de impacto. Só que parte desses fatores, no resto do gibi, aparecem como VÍCIO DE FOTONOVELA: os quadrinhos de Ross raramente fluem entre um e outro [a não ser para funcionar como zoom], são uma sequência de momentos estáticos. E todos esses momentos transcorrem em câmera lenta, resultado da soma de sua incapacidade em retratar movimento…
O ÔNIBUS FLUTUANTE

…com a abundância de planos abertos/médios nas cenas de ação, usados na narrativa em quadrinhos precisamente para estender a sua duração no tempo.

Repare, também, na expressão facial dos personagens. São rostos, de novo, congelados de forma a sinalizar do jeito mais claro possível a emoção do “ator”. Ross tem problemas na hora de transmitir expressividade através dos olhos: os personagens parecem peixes que morreram de overdose:

Incredulidade, maconherismo, surpresa, medo, raiva, raiva, raiva banguela.

Tudo isso, somado aos uniformes hiper-coloridos, faz com o que era épico nos splash-pages se torne confuso, repetitivo e caricato. Não ajuda que o Super-Homem pareça um tiozão fordo, hippie e de pijama quando está em movimento.

Ross compensa a inércia de seus quadrinhos com a composição de página, principalmente nas cenas de luta. Perceba como na batalha final da edição quatro, as páginas nas quais o bicho pega não são regulares. Os quadrinhos estão inclinados e “dançam” pela página:
De resto, elas abraçam a inércia. Via de regra, variam em torno de um padrão com um quadrinho sem bordas, que retrata o contexto no qual transcorrem os momentos retratados nos quadrinhos, agora com borda, que circulam aquele:
A primeira edição é praticamente toda assim.

Ross provavelmente também seja o responsável pela estrutura da história — o que diz a historiografia nerd é que ele apresentou uma proposta de 40 páginas, intitulada The End of the Heroic Age, que acabou nas mãos de Mark Waid e virou O Reino do Amanhã. Desses dois títulos já se pode antever que o gibi não é uma apologia à Era de Prata e uma crítica ao heroísmo noventista, nem em versão apocalíptica, nem como paródia realista. É uma tentativa de superar isso.

A trama, tome um pouco de erudição nas paletas, é como uma comédia de Aristófanes. Pense em As Aves, coloque um pária [o Super-Homem] no meio e acompanhe comigo: a sociedade da primeira edição de O Reino do Amanhã, com seus heróis irresponsáveis, é absurda; o Super-Homem retorna, e junto com a Mulher Maravilha lidera um esforço para impor uma nova sociedade, de heroísmo paternalista — o esforço se revela igualmente absurdo. O Batman age nos bastidores para eliminar as diferenças, ainda que de forma cínica. No fim, o protagonista tem uma revelação [o nome técnico é anagnorisis] que leva ao surgimento, aí sim, de uma nova sociedade, que não é nenhuma das duas anteriores, mas na qual todos os personagens que apareceram ao longo da história tem o seu lugar.
Claro que Waid substituiu o deboche por citações bíblicas do apocalipse [que funcionam muito bem em um momento, no splash-page de abertura da primeira edição e no de abertura da quarta: os anjos e demônios da primeira se revelam super-seres na última], para dar à história um jeitão transcendente/ominoso não-humorístico. A pertinência da Bíblia na história pára por aí: Reino do Amanhã sequer tem um confronto entre heróis e vilões definidos [a grande batalha final tá mais pra confronto entre vilões e vilões]. Perceba como a rendição de Magog [aliás, outra citação bíblica] está fora de lugar e é anticlimática — o herói-vilão que encarna perfeitamente tudo que há de errado nos anos 90 [é um CABLE COM CHIFRES], apesar da semelhança física com o Super-Homem [ambos são “interpretados” por Frank Kasy], seria um péssimo dublê de Anti-Cristo [fan-theory bacana: Magog seria o Superboy pós-O Retorno do Super-Homem].
Cadê sangue e fúria cadê
Se visto como uma comédia grega, quase tudo se encaixa. Na terceira edição, existe praticamente um debate entre a opção paternalista e a irresponsável [através de 666 resistindo à doutrinação no interior do Gulag]. Se você quer vilões, eles são os personagens que obstaculizam o advento da sociedade feliz [em inglês, são chamados de “blocking characters”]: Lex Luthor [tem objetivos “próprios”, a Mulher Maravilha [entre a fúria assassina e a construção de uma prisão chamada de GULAG, não sobra muito espaço para dúvida; aliás, ela, sozinha, prova que ler Reino do Amanhã apenas como uma crítica ao noventismo é fazê-lo de forma manca], 666 e Von Bach [que servem de representantes dos heróis modernos, um sadomasoquista amoral e um brutamontes incompreensível].
Heróis? O Super-Homem é herói e protagonista; ele é o personagem que foi purgado da sociedade, como um bode expiatório [perceba como, em sua primeira aparição, ele parece carregar uma cruz], que deve ser reintegrado na sociedade nova. Batman é o outro — e a sua caracterização segue de perto às características do dolosus servus, personagem típico da comédia grega: trabalhador de classe baixa [perceba como a caracterização do Batman está desglamourizada em relação aos demais heróis tradicionais], porém mais inteligente; é quem ativamente promove o final feliz [em Reino do Amanhã, ele rastreia e anula os blocking characters um por um].

E, de forma geral, é o THE GODDAMN BATMAN
Existem, no entanto, alguns elementos atípicos: um deles é o tom sério [reforçado pelo caráter profético e pela ausência de personagens-piada. Isso, é claro, se você relevar as pessoas muito muito muito sérias voando de pijama]; nas comédias gregas, o choque entre os “tipos” de sociedade é geracional, só que em O Reino do Amanhã isso está invertido [a sociedade existente é comandada por jovens; o normal é o contrário]. Mas o ponto é: se história faz apologia a algo, esse algo é a sociedade idealizada que se forma no final. Os heróis se desmascaram, se colocam no mesmo nível dos humanos e se encaixam.

A Mulher-Maravilha se torna rainha da Ilha Paraíso [onde um herói moderno recebe uma lição de bons modos], o Bruce Wayne leva o seu sarcasmo para a administração de um hospital de caridade. Mais significativo é o que acontece com o Super-Homem e com o Lanterna Verde: um se torna o Agricultor de Aço, colocando a sua força não mais a serviço do da verdade e da justiça, mas do trabalho braçal; o outro, vai das galáxias à ONU, onde se torna um super-funcionário público. No “Reino do Amanhã” imaginado por Waid e Ross, o mundo está a salvo do heroísmo individual, livre para a mediocridade. [PARA OS FORTES]