Os Homens-Aranha de Steve Ditko: Essential Spider-Man vol. 1 e 2

Existe um antes e depois de Steve Ditko na história do Homem-Aranha. O paradoxo só é aparente: ainda que Ditko seja o primeiro desenhista regular do personagem, ele o encontrou assim para devolvê-lo assim.
 
As diferenças entre as duas imagens superam a PISTOLA DE TEIAS: ao contrário da primeira versão, de Jack Kirby [pelo que se diz, uma versão genérica de The Fly, personagem que o rei co-criou com Joe Simon], o Homem-Aranha de Ditko parece um adolescente escorregadio e ameaçador, não um ícone sólido e inspirador.
 
Mas isso é o nível PLAYMOBIL de CRITICISMO SUPER-HERÓICO. O que nos mostra a leitura das 41 edições de gibis do Homem Aranha que Steve Ditko desenhou [Amazing Fantasy #15, 38 edições de Amazing Spider-Man, e os dois primeiros anuais da série], todas recolhidas em preto, banco e papel chinelo nesses dois Essentials, é que existe um antes e um depois DENTRO DELAS; e que esse “depois” está muito mais perto de uma versão Ditkoniana de um ÍCONE do que de um ADOLESCENTE.
 
A mudança acontece gradualmente, mas se eu tivesse que apontar o lugar concreto em que a mesa virou, sinalaria Amazing Spider-Man #23. Antes dessa edição, o Homem-Aranha protagonizava histórias que eram aventuras super-heróicas cujo charme estava no contraste desmistificador entre as fantásticas aventuras do herói mascarado e a cômica [às vezes trágica] vida de Peter Parker. Veja, por exemplo, essa página [de Amazing Spider-Man #1 [o Homem-Aranha acabou de evitar uma tragédia espacial, daí a cápsula no início da página]:
 
 
 
As histórias basicamente seguem uma estrutura fixa: surge um vilão de roupa espalhafatosa [a moda é a temática animal: Abutre, Escorpião, Camaleão, Kraven], que de alguma forma representa um risco para a cidade; paralelamente, Peter Parker enfrenta problemas em sua vida pessoal, normalmente relacionados a algum obstáculo à concretização de seu INTERESSE ROMÂNTICO [Liz Allen ou Betty Brandt, dependendo da altura do campeonato] — como em uma comédia romântica super-heróica.
 
As edições #4 e #8 são bons exemplos. Na primeira, temos a primeira aparição do Homem-Areia [um vilão-vilão, com direito a risada maligna, não o ladrão com bons sentimentos do terceiro filme de Sam Raimi]:
 
 
Logo após derrotá-lo, Peter Parker vai da vitória ao fracasso — a aventura fantástica é contrastada com a sua vida de adolescente “normal”, e o seu interesse romântico é frustrado:
 
 
Na segunda temos uma batalha em tom de galhofa entre o Homem-Aranha e um COMPUTADOR SUPER-INTELIGENTE. A história puxa para o humor [perceba como o vilão é ameaçador] e não por acaso é ambientada na própria escola em que Peter Parker estuda — a sua vida estudantil é o alívio cômico da série. Flash Thompson é sempre um fanfarrão [a sua vaidade excessiva e vazia faz dele um personagem cômico arquetípico, o Miles Gloriosus]; nessa edição, ele é retratado com caretas dignas de um gibi do Archie:
 
 
O outro NÚCLEO CÔMICO dessas histórias é o Clarim Diário, o que você deve reconhecer como o jornal para o qual Peter Parker, fotógrafo free-lance, habitualmente vende suas fotos. A dinâmica é a mesma [fanfarrão e interesse romântico continuamente frustrado], em versão ALITERADA.
 
Apresento para vocês J. J. Jamenson e Betty Brandt, se eu fui sutil demais.
 
Duas histórias, por outro lado, fogem a essa regra: tanto Amazing Fantasy #15, a origem do personagem, quanto Amazing Spider-Man #6, primeira história [e origem] do Lagarto são tragédias com uma lição moral explícita [aliás: a história de origem de personagens de arte popular normalmente são tragédias com uma lição moral].
 
Acompanhe: vida feliz…
 

…erro arrogante…

…castigo…

…e lição moral:

 
Com a edição #23, as mudanças nesse esquema começam a se tornar perceptíveis. Primeiro, ainda que a procissão de espancamento de vilões continue, esses se tornam cada vez mais realistas e menos coloridos. O Duende Verde se associa com mafiosos [quer se tornar um proto-Rei do Crime, #23]; Mysterio volta, mas em uma história que é mais manipulação psicológica paranoica e menos troca de porrada [#24]; as suas atividades são desenvolvidas em lugares mais SINISTROS; saem os vilões com poderes de animais, entram outros com roupas “normais”:
 

Enquanto que os vilões se tornam menos coloridos, mais ardilosos e ligados ao submundo, o Homem-Aranha fica mais ASSERTIVO, seguro de si e HERÓICO. Paralelamente, a sua vida pessoal se torna menos cômica e mais… injustiçada. Logo, o personagem vira o que se transformaria no típico protagonista dos gibis de Steve Ditko: heroico e decidido [em uma edição, oferece as suas fotos para o jornal concorrente, para obrigar J. J. Jamenson a dar-lhe um aumento], mas também solitário, incompreendido e rodeado de invejosos:

 
Não são os únicos elementos Ditkonianos dessas histórias: a essas alturas, Ditko já era um Objetivista, defensor da filosofia anti-relativista de Ayn Rand. Perceba como os policiais que ajudam o Homem-Aranha na edição #27 são corajosos e dedicados…

 

 

…ao mesmo tempo em que o juiz da #35 é um palerma e o vilão, Magma, irreformável:

 
 
Isso, claro, não é coincidência. A primeira edição em que Ditko foi creditado como plotter [encarregado de elaborar a trama da história; Stan Lee recebe crédito como escritor por ter se encarregado dos diálogos; aliás, e que diálogos: expositivos, normalmente narram o que as imagens mostram e oscilam entre dois registros, o infame e o pomposo] foi a #26. Como se sabe, isso foi o reconhecimento de uma situação pré-existente: a responsabilidade de Ditko pela criação da história só fez crescer ao longo da série. A inconsistência sobre a identidade do Planejador Mestre na edição #30 [o texto diz que é o Gatuno; nas edições seguintes, descobrimos que é, SPOILER, o Dr. Octopus, FIM DO SPOILER] mostra que, logo depois, de Ditko ser creditado como plotter, os dois sequer conversavam mais.
 
Mas o crescimento das atribuições de Ditko não foi em vão: a história do Planejador Mestre [Amazing Spider-Man #31 a #33], seu ápice em relação ao personagem e culminação de uma história que se desdobrava como pano de fundo a meses [outra coisa típica de Ditko, aliás] é presença obrigatória em qualquer lista de melhores histórias do Homem-Aranha.
A trama é simples: a eterna Tia May está doente, a beira da morte [fruto de uma intoxicação radioativa, decorrente de uma transfusão de sangue em que foi doador o seu sobrinho, Peter Parker: e não se esqueçam que ele é um personagem definido pela culpa de ter deixado o seu Tio Ben, esposo de May, morrer]. Para seu tratamento, necessário um remédio que exige, para sua elaboração, um elemento-McGuffin – que, comprado por Parker, é roubado pelo Dr. Octopus.
 
São duas edições de um Homem-Aranha EM CHAMAS, FUSTIGANDO o mundo criminoso enquanto apanha como um condenado, mediadas por uma sequência de superação da qual o personagem ressurge “curado” da culpa pela morte do Tio Ben, em uma das sequências mais hiper-analisadas da história dos quadrinhos.
 
BATISMO.

Ao longo de sua passagem pelo personagem, a evolução no traço de Ditko também é perceptível, ainda que sem um solavanco repentino como o da edição #23 em relação ao desenvolvimento do personagem. Algumas características são mantidas: Ditko [ao contrário de Kirby] desenha um Homem-Aranha ARACNÍDEO, com uma vocação por andar por tetos, esgueirar-se por cantos e aparecer em ângulos inusitados, com aspecto borrachesco e com um enquadramento subjetivo e ligeiramente torto. As cenas de luta são acrobáticas: no seu transcurso, poucas vezes o personagem coloca os pés no chão:

No entanto, o Homem-Aranha vai se tornando cada vez mais “ombrudo” e Peter Parker, menos NERD TARJA PRETA – o que acompanha, na trama, a consolidação do personagem como um HERÓI maiúsculo.

 

Os quadrinhos também ficam maiores e menos atulhados [uma característica dos gibis de Ditko dos anos 50/início dos anos 60]: as páginas deixam de se organizar em um layout de três colunas e três filas, e passam para um esquema de duas colunas de três quadrinhos.
 
Mas a diferença maior está no uso de abstração. Ainda que o realismo puro e duro seja frequentemente sacrificado em prol da narrativa [cenas de reflexão, por exemplo, encontram-se ambientadas no topo de arranha-céus, sem que exista a menor preocupação em estabelecer um motivo coerente para o personagem ter chegado lá], no início, Ditko reserva desenhos abstrato-esquemáticos apenas para a página de abertura da história [aquela que funciona como uma sub-capa, ou uma manchete do resto da história]. Com o tempo, no entanto, começam a aparecer cada vez com mais freqüência dentro da própria história, ao mesmo tempo em que os personagens se aproximam cada vez mais de idéias corporificadas [heroísmo, inveja, parasitismo, etc].
 
Kraven se disfarça de Homem-Aranha para ameaçar
J. J. Jamenson: a trama em um quadrinho abstrato.

Depois disso tudo, Amazing Spider-Man #38 parece uma piada provocativa: um confronto entre o Homem-Aranha e um vilão evidentemente genérico e abobado, que ganha poderes de uma forma absurda [um acidente em um SET DE FILMAGEM de um filme de FICÇÃO CIENTÍFICA], com direito a uma página para espinafrar HIPPIES; e um Homem-Aranha com dor de cotovelo que chega em casa segundos depois de Mary Jane partir [filha de uma amiga de sua tira, a guria tem a beleza de uma estrela de cinema, mas o destino insiste em não reuni-los no mesmo lugar]. É quase como se todos os elementos da primeira fase estivessem presentes, em versão propositalmente exagerada e debochada.

É a última história de Ditko com o personagem. Na edição seguinte, John Romita Sr. passa a desenhá-lo. Na quinta página, Harry Osborn, Gwen Stacy e Peter Parker se tornam grandes amigos. Ditko logo deixaria a Marvel, para somente voltar vinte anos depois, pela porta dos fundos e por pouco tempo. 

Essential Spider-Man vol. 1 e 2
Stan Lee, Steve Ditko e John Romita Sr.
[Marvel, 2006 e 2011]