Dr. Estranho: Em Shamballa, de J. M. DeMatteis e Dan Green: trilha sonora da Enya

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Dr. Estranho: Em Shamballa
J. M. DeMatteis e Dan Green
[Abril, 1989]
Se eu não fosse partidário do RESENHISMO MIL FOLHAS, te definiria Dr. Estranho: Em Shamballa assim, ó: 1986. Originalmente publicada em setembro de 1986 [ainda que só chegasse ao Brasil, pelas mãos da Abril, em novembro de 1989], exatamente um mês antes da última edição de Watchmen [+]: a graphic novel é a cara de sua década.
Dois são os elementos tipicamente oitentistas dessa graphic novel. Primeiro, o “Em Shamballa”. “Shamballa” é uma dimensão paralela [em linguagem rebuscada: “Há uma plenitude, depois, um vácuo. Do vácuo, vem a palavra: Shamballa”], “onde a história é ditada; eventos humanos, moldados. Onde as almas dos maiores Mestres a história habitam. Eles observam e guiam a Humanidade”. Na história, o Dr. Estranho chega nesse lugar em busca de iluminação depois de receber um presente do Ancião, seu antigo mestre místico – uma caixa enigmática que se revela um portal para essa outra dimensão.
Nela, o Dr. Estranho recebe INSTRUÇÕES: deve completar um feitiço que produzirá o “cataclisma final” [a Terra será “consumida em fogo e doenças!” e “três quartos da humanidade” vai “morrer”] e iniciar “o Período de Ouro”, a “primavera de uma nova raça, que portará a Perfeição”.
Você deve ter sacado o paralelo óbvio com o final de Watchmen [não foi a toa que eu citei o gibi de Alan Moore [+] e Dave Gibbons [+] ali em cima]. Ao contrário da obra maestra de Moore [um gibi com muitas facetas, uma das quais é a reflexão ambígua sobre os limites da utopia revolucionária], no entanto, J. M. DeMatteis optou por uma saída mais… simples.

No final [essa história foi publicada no Brasil tem quase 25 anos, se você está preocupado com o spoiler], a parte SANGUE E DESESPERO do CATACLISMA FINAL não era, bom, sanguinolento e desesperante. Acontece “internamente” e não “externamente: “O purgatório ocorrerá em cada coração. Os fogos queimarão em cada alma. O Período de Ouro profetizado vai chegar a cada um a seu tempo. E Maya não perecerá! Não! Nossas ilusões serão os meios… da purificação”.
É, evidentemente, uma saída pela tangente: de duas uma, ou o Dr. Estranho passou toda a história procurando soluções para um dilema que não existia e o tal do cataclisma é inócuo ou alguém ainda tem que me explicar porque é heróico e belezinha mudar 2/3 da forma pela qual as pessoas pensam de forma invasiva e sem o seu consentimento. Pode ser que 2/3 do que eu penso seja bobagem sobre gibis, mas, ei, me deu certo trabalho acumular toda essa bobagem sobre gibis.
Mas não é uma saída pela tangente qualquer, mas uma com cara de misticismo de auto-ajuda. É aí que aparece o primeiro elemento tipicamente oitentista do qual eu estava falando: o jeitão New Age. Em Shamballa tem uma cara de misticismo indefinido [que se vê da “revolução interna” ao “Há uma plenitude, depois um vácuo”], que pega algo de simbologia oriental [Shamballa e Maya são palavras do sânscrito; não é nem estranho, já que DeMatteis se auto-intitula de discípulo de Meher Baba, o guru nascido na Índia que passou para a história com o bordão “don’t worry, be happy”] e da física [o feitiço conjurado pelo Dr. Estranho envolve a manipulação de pontos energéticos e o Sistema de Ley], para “defender” uma revolução global pela via de um “crescimento purificador humano” [“os fogos queimarão em cada alma”] que parece de auto-ajuda.
O outro fator tipicamente oitentista de Dr. Estranho: Em Shamballa é o “Dr. Estranho” — ou, mais especificamente, a sua caracterização. Uma das principais características dos gibis de super-heróis americanos daquela década é o tratamento irônico dado exatamente aos heróis [um dos jeitos de compor uma narrativa realista, a propósito]: eles erram, duvidam de sua própria capacidade [com motivos] e, de forma geral, são mais frágeis e menos míticos.
Um bom exemplo disso é, de novo, Alan Moore e Watchmen, onde cada herói é pirado de uma forma diferente, mas também pode ser percebido dos X-Men de Chris Claremont [+] [aquela gente é um poço de insegurança], Batman: Ano Um [que se sustenta em grande parte no amadorismo do personagem] e no Super-Homem de John Byrne [+] [cujo charme, em grande medida, vem da desmitificação do personagem].
Lá no início, cometei que Dr. Estranho: Em Shamballa se sustenta sobre um dilema moral [meio fajuto]. E por “se sustenta”, o que eu quero dizer é que essa é uma história que passa com o Dr. Estranho mergulhado em dúvidas sobre o que fazer. Tem mais: ele também se desvia de sua missão ao cair em tentação [pelos “pecados da carne”, para justificar o selo graphic novel na capa]. Pra fechar, a desmitificação é bastante expressa: ao entrar em Shamballa, a reação do Dr. Estranho é um “putz” que ganha um splash-page. O próprio DeMatteis faz questão de explicitar a ironia disso no texto de apoio: “’Putz!’, Stephen? Que pronúncia mundana para o Mago Supremo! Eu esperava ‘Pelas faixas de Cyttorak!’, ‘Víboras de Valtor!’ou… outra sua favorita… ah, sim: ‘Sombras de Serafim!’. Mas… ‘Putz’? Nada original”.
Agora, você deve ter estranhado que nós já estamos no terço final da resenha e isso aqui ainda não está atulhado de imagens. O motivo é o seguinte: Em Shamballa quase não é um gibi. Dá pra contar na mão quantas páginas tem balões de diálogo. É praticamente um relato ilustrado, com muito texto de apoio [inclusive diálogos] que pouco interage com o desenho.
Dito isso, e desprovido de grande relevância narrativa, o desenho de Dan Green tem duas funções: ser bonito, o que ele faz usando aquarela, e repercutir a temática New Age, o que ele faz com apego à natureza de jeito místico…
Pra ser sincero, essa página sozinha
justificou os dez reais que eu paguei no gibi.
…e usando quantidades de azul até então somente encontradas em capas de discos da Enya:
Com o desenho descolado e um roteiro nada sutil, Dr. Estranho: Em Shamballa funciona como uma espécie de revista pôster. Mesmo assim, eu precisaria esperar o New Age voltar à moda antes de recomendá-la abertamente para alguém. [PARA OS FORTES]