Habibi, de Craig Thompson: Escatologia e ironia

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Habibi [Capítulo Afogados]

Craig Thompson
[Companhia das Letras/Quadrinhos na Cia., 2012]
Porque o meu tempo, ao contrário da minha disposição para o NERDISMO, é finito, você está prestes a ler uma nova modalidade de RESENHISMO PARA OS FORTES: uma mais PONTUAL. A ideia, diante da impossibilidade de resenhar a totalidade de ALGO [Habibi, pra ficar no exemplo, tem mais de 600 páginas] é resenhar uma PARTE ou FACETA de algo [no caso, um capítulo: Afogados] que eu considere particularmente instigante. Espero que você me acompanhe nessa conclusão.

Existe uma constante no resenhismo de Habibi, o gibi-tijolo de Craig Thompson: as comparações com Will Eisner [+]. O segundo gibi de Thompson depois de Retalhos [entre os dois está Carnet de Voyage, ainda não publicado no Brasil], Habibi, com a sua escala épica, com o seu período indeterminado e com as suas referências religiosas certamente é mais pretensioso do que qualquer coisa que Eisner já fez [outra coisa é que seja tão bem sucedido], mas é fácil ver de onde vem a comparação.


Primeiro, no que se refere ao lado GRÁFICO, Thompson tem um traço cartunesco, que em alguns momentos parece uma versão angulosa do de Eisner. E tem também as composições de página, complexas e orgânicas. No que se refere à trama, ainda que o arco do gibi de Thompson seja maior, ele é dividido em várias histórias menores, que parecem no jeitão fábula moral com as de Eisner em seus gibis que seguem a linha de Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço. Em nenhuma parte do gibi isso é tão pertinente quanto no capítulo Afogados, que começa na página 433 da [excelente] edição da Companhia das Letras [da qual você pode ver uma prévia aqui].
A página é orgânica, o trocadilho é involuntário.

Nela, os protagonistas de Habibi, Zam e Dodola, uma espécie de versão multicultural, lírica e cheia de bons sentimentos do casal formado por Jack Barnes e Brett Ashley [de O Sol Também se Levanta, o clássico de Ernest Hemingway], chegam à periferia de Vanatólia, a cidade-estado fictícia que serve de cenário para o gibi. Chegam pelo esgoto: depois de anos separados, Zam salva Dodola da morte, descartada pelo sultão que está na ponta elite-poluidora-malvada-pedófila da luta de classes ambientalista que serve de pano de fundo para o gibi. Os dois são resgatados por Noé [apelido: Né], o protagonista do capítulo, que passa a abrigá-los em sua casa.

Certo, Eisner nunca escreveu uma história ambientada em uma cidade árabe fictícia de um período indeterminado, mas histórias de CORTIÇO e PERIFERIA são uma de suas especialidades — e Afogados é exatamente isso.
Mas se as crianças ranhentas que mendigam pelas páginas desse capítulo poderiam estar em Um Contrato com Deus, o mesmo não pode ser dito do resto dos elementos desta página:
O que você vê aí é o primeiro “plano geral” do cenário da história, e nada que Eisner fez em sua vida é tão sórdido quanto esta página é por si só. Mães vendem filhas para pedófilos, animais mortos no meio do esgoto [especialmente significativo: o bem-intencionado Thompson é um partidário da estética cute-cute no retrato da FAUNA; seus animais são seres quase mágicos que simbolizam o melhor dos humanos, como o panda desesperado pelo dilúvio no início desse mesmo capítulo] e um apreço por retratar, perdoem-me a falta de sutileza, gente cagando.
Essa escatologia é decorrente do REGISTRO da história, algo que muito bem evidenciado pelo seu protagonista, Né. Ao contrário de Um Contrato com Deus, gibi recheado de figuras trágicas [pessoas que cometeram um erro e perderam diversas posições no RANKING de FAVORITOS DO DESTINO], Afogados é uma história irônica.
Né não é um herói, e seus esforços para sê-lo são patéticos. Essa ausência de heroísmo [lembre-se que os protagonistas do gibi, Zam e Dodola, passam o capítulo inutilizados] combina com a SENSAÇÃO DE DESESPERANÇA que a EMPORCALHAÇÃO do cenário transmite.
Heroísmo. O contrário de.

Mas preciso falar mais de Né, a figura mais complexa do capítulo [e um dos melhores personagens do gibi]. Ele pode não ser trágico, mas a sua expressividade e as suas características são bastante exageradas [suas feições faciais são uma constante caricatura] e Eisner tem como marca o uso de personagens de comportamento igualmente exagerado e melodramático.

Os seus esforços em fazer o bem só poderiam funcionar se totalmente abstraídos da realidade em que estão inseridos: Né dá tênis velhos para um moribundo, ursos de pelúcia para crianças esfomeadas, e tem uma confiança na AÇÃO DIVINA diante do inevitável que é EXASPERANTE. Tudo isso está muito bem simbolizado NISSO:
Né é um pescador [e nós já falamos de pescadores aqui] que, na falta de PEIXES, se orgulha de tirar CARCAÇAS de peixes do ESGOTO, que usa como troféus. Nisso está resumida toda a ironia: ele não está salvando ninguém, como um herói deveria fazer [e o próprio pretende]; está apenas ignorando o óbvio e acumulando lixo nostálgico.
Dodola e Zam [e a continuidade do arco maior de Habibi] voltam para a história no seu final. Quando o comportamento de Né lhe levou ao óbvio, a sua ruína, e o personagem perdeu a esperança e aparentemente se descobriu como uma fraude, os dois resgatam o seu barco, literal e metaforicamente. No mesmo momento, a auto-enganação reinicia pela via da falsa esperança: Né pesca a maior carcaça de peixe de sua vida.
A intervenção dos dois tem contornos ex machina. Serve apenas para criar um final irônico e ambíguo como o protagonista de Afogados: ao devolver a Né a sua esperança cega, Zam e Dodola não resgataram um peixe podre? Talvez o bem-intencionado Thompson seja mais pessimista do que pareça – outro ponto em comum com o trágico Eisner. [PARA OS FORTES]