Batman: A Piada Mortal, de Alan Moore e Brian Bolland: o polemismo e além

No início da semana passada, a INTERNERD rugiu graças à fábrica de polemismo que responde pelo nome de Grant Morrison [+]. O escritor escocês, no podcast de Kevin Smith, disse que A Piada Mortal [+], de Alan Moore [+] e Brian Bolland [+], é o gibi definitivo sobre o confronto entre o Batman e o Coringa porque, no final, o segundo morre.
 
A declaração foi seguida de alguma histeria [leitores de quadrinhos, aprendam: pessoas encarando histórias clássicas por novos ângulos é algo BONITO e NECESSÁRIO], alguma miopia [afastar a TESE MORRISON com base na literalidade do roteiro de Moore, uma mistura de intentional fallacy com desconsideração por Bolland e aversão ao PROCESSO INTERPRETATIVO], algum [pouco] debate de qualidade [que acabará respingando no NFN DIÁRIO] e, principalmente, PRETEXTO PARA RESENHISMO.
 
A TESE FATALISTA é encabeçada de forma um pouco mais articulada por Julian Darius [articulista habitual do Sequart e escritor do livro Understanding Batman: The Killing Joke], com uma pequena variação: o Batman não quebra o pescoço do Coringa, como diz Morrison, mas mata ele com o veneno do sorriso que o vilão usa logo no início do gibi.
 
Dá pra ampliar clicando.
O EMBASAMENTO FÁTICO você vê nessa pilha de quadrinhos aí do lado. Na primeira fila, o diálogo em que o Batman prevê o final: “Estive pensando ultimamente. Sobre você e eu. Sobre o que vai acontecer conosco no fim. Vamos acabar matando um ao outro, não?”. Na segunda, o veneno do Coringa em ação e a agulha envenenada sendo descartada no parque.
 
Nas terceira a na quarta filas [parte da mesma sequência], o Batman parece encontrar alguma coisa [perceba como ele olha fixamente para a sua própria mão no primeiro quadrinho da quarta fila]. E, por fim, a sequência final do gibi, onde Batman “ataca” o Coringa, que para de rir subitamente [a risada é interrompida enquanto que a sirene do carro de polícia prossegue].
 
Como você deve ter percebido, em nenhum desses quadrinhos se MOSTRA que o Batman matou o Coringa: essa é apenas uma conclusão possível a partir da CONJUGAÇÃO DE FATORES. Só que isso não é assim porque faltaram quadrinhos para o final da história: não conheço os detalhes do processo de produção, mas até onde eu sei não houve um incêndio no meio do processo de impressão, nem a DC ligou a tecla foda-se e colocou o que tinha em mãos na banca sem uma página. Pode-se dizer que é um ponto ambíguo, em uma história que é exatamente isso, ambígua.
 
De início, A Piada Mortal é uma história que não é protagonizada por nenhum MOCINHO. Nela, o Coringa rapta o Comissário Gordon com o objetivo de torturá-lo – não por diversão, mas para provar uma tese: a única coisa que separa alguém normal de um psicopata como o próprio Coringa é um dia ruim. O Batman, esse exemplo de normalidade, vai ao resgate. No processo, temos flashbacks do que seria a origem do Coringa, um comediante frustrado que, pobre e com o nascimento do primeiro filho iminente, se envolve com o crime, com péssimos resultados.
 
Como você pode ter percebido nesse meu HÁBIL RESUMO, três são os personagens que podem ser considerados os protagonistas da história: o Coringa, o comediante fracassado dos flashbacks e o Batman.
 
Desses, o principal é o Coringa: pra começo de conversa, ele fica com todas as frases legais. Em A Piada Mortal, ele é um personagem típico de sátiras: um pícaro, alguém que pretende revelar a hipocrisia do mundo real. Espero não precisar te explicar porque o PALHAÇO DO CRIME não é um mocinho, apesar de ser o protagonista.
 
O “Coringa do passado” não é nem um pouco heróico: a palavra certa, na verdade, é patético, uma pessoa ordinária vitimizada pela sua própria fraqueza. Ele é uma espécie de bode expiatório. A função dele na história é tomar uma surra em uma espécie de ritual purgativo que tem um resultado anti-catártico: em vez de redimir qualquer coisa, acaba por personificar o próprio niilismo que o vitimou.
 
Mas até agora isso aí foi interpretação nível Massinha I. E o Batman? Bom, preciso que você se desapegue da aura do morcego e veja o gibi comigo. O Batman é um inepto, cuja capacidade investigativa está reduzida a esperar um convite do Coringa para ir resolver o crime.

 

 

Senhoras e senhores, o maior detetive do mundo.
 
 
 
 
Ele também é um hipócrita: representa perfeitamente a tese do Coringa; a diferença é que está cego a ela. De fato, como a piada que o vilão conta no final da história deixa óbvio, o Batman de A Piada Mortal também é um maluco, uma espécie de versão distorcida do Coringa [tome simbolismo: o primeiro encontro dos dois, nessa história, acontece precisamente quando o “vilão” entra na “Sala dos Espelhos” do parque de diversões onde grande parte da história transcorre; e o Batman surge, precisamente, de trás de um dos espelhos]: a diferença é que vive em negação, impondo a “sanidade” que esse pretende desmascarar.

 

 

A sua principal função é ser debochado: percebam como o personagem é caricato [metade de suas frases parecem saídas de um policial genérico de filme B] e, em alguns momentos, monstruoso:

BU!
 
Isso tudo é assim porque A Piada Mortal é uma SÁTIRA. E o objeto dessa sátira [pelo menos o imediato] é o próprio gênero “super-heróis em quadrinhos”, caracterizado por um confronto maniqueísta contínuo que, conforme esse gibi, é coisa de maluco. Não fique triste: chegar a essa conclusão é o mote principal de grande parte da obra de Alan Moore. Tem dado certo pra todos os envolvidos.
 
Além da mensagem e do caráter satírico, temos outra característica MOORIANAS em A Piada Mortal: o approach quadrinístico da coisa toda. É uma narrativa em quadrinhos, que se vale de diversos recursos próprios da linguagem dos quadrinhos. Por exemplo, a repetição de imagens como forma de transição:
 
Eu poderia passar a tarde juntando quadrinhos assim,
mas acho que você entendeu.

Mas também é mais complexo do que isso: A Piada Mortaltambém é metalinguagem. A história tem diversas meta-referências à sua “localização” na cronologia “oficial” dos personagens e ao absurdo da existência de tudo isso. O ponto de partida é que esse é um dos milhões de enfrentamentos entre os personagens: o fato de que o primeiro e o último quadrinho sejam idênticos, além do discurso inicial do Batman, ressaltam isso.

 
A isso, você deve acrescentar o álbum de recortes de jornal do Comissário Gordon, com direito a uma [anacrônica, no contexto da história] referência à capa de Detective Comics #27 [a primeira aparição do morcegão, em 1939]:
 
1939, Comissário. Não é Alzheimer, é anacronismo mesmo.

Percebam como o próprio Comissário Gordon se pergunta em que ano aconteceu o primeiro encontro do Batman e do Coringa, uma forma de colocar em evidência o absurdo da cronologia: como ele poderia se lembrar que os dois se enfrentam desde a década de 40, quando quase não eram os personagens que protagonizam o gibi?

 
Um elemento importante nisso era a colorização original de John Higgins. A dessa edição é do próprio Bolland, que recoloriu a história para o seu relançamento “de luxo” em 2008 [aliás: que coisa mais caipira essa de colocar “Edição Especial de Luxo” na capa do gibi, Panini]. Originalmente, a colorização seguia os parâmetros espalhafatosos dos gibis mensais da época, com ênfase no uso de verde e roxo, cores tradicionalmente utilizadas por vilões [como o próprio Coringa]. Isso, ao mesmo tempo em que destacava a relação da história com a cronologia do personagem [que transcorre, como você deve saber, nos gibis “de linha”], insinuava o anti-heroísmo da história. A nova colorização não faz uma coisa nem outra, mas, bom, é bonita.
 
O gibi, de qualquer forma, tem a sua importância cronológica: nele, a Batgirl é aleijada e a origem do Coringa, revelada. Nisso, no entanto, há novamente ambigüidade. O próprio personagem levanta a dúvida. Depois do último quadrinho de flashback, o Coringa “do presente” diz que não se lembra de como ficou maluco: “não tenho certeza absoluta… às vezes lembro de um jeito. Outras vezes, de outro… Se eu posso ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha!”.
 
É mais do que uma piada: a “falsidade” da história de origem é sugerida na sua própria narrativa. Nela, os personagens agem de forma a sinalizar corporalmente o seu ânimo [e passo a usar a colorização original para fins comparativos]…
É como se os comparsas gritassem “estamos dissimulando”,
e o Coringa, “estou nervoso”.

…o bar em que parte dela transcorre é exageradamente sórdido, como se fosse cenográfico e a reação dos vizinhos de mesa do Coringa à sua tragédia é demoníaca de uma forma caricata [o tom avermelhado da colorização original, substituído por Bolland por um frio preto e branco, reforça a ideia de inferno particular]:

 
Some isso aos detalhes alegóricos da cena…
…noutras palavras, o camarão…

…e o que você tem é uma certeza: mesmo que os fatos narrados tenham acontecido, o que você vê é a sua versão filtrada pela mente teatral [e não particularmente estável] do Coringa.

TÃ-CHAN!

Como deve ter dado pra ver, A Piada Mortal é um gibi que tem mais NÍVEIS que muito joguinho do Atari. Ambíguos como aqueles que enchem as 48 páginas que completam o gibi, naqueles quadrinhos você pode ver muitas coisas: que o Batman mata o Coringa é uma delas. É uma conclusão com a qual eu não concordo [por ser incompatível com parte disso tudo que escrevi aí em cima], mas que não é particularmente errada. Errado é reduzi-la a essa discussão.

Batman: A Piada Mortal
Alan Moore e Brian Bolland
[Panini, 2011]