[PARA OS FORTES #3] * * * [24/5/2013]
Homem-Aranha 2099: Início
Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson,
Kelley Jones e Mark McKenna
[Panini, 2013]
Houve um tempo em que a Marvel tentou fazer uma linha
FUTURISTA, ambientada no ano de 2099. Um bom resumo seria que começou bem e
terminou mal, mas você pode ler mais sobre isso aqui. Um dos melhores ESFORÇOS
empreendidos foi o Homem-Aranha 2099: Peter David [+] e Rick Leonardi,
responsáveis pela maioria das edições, conseguiram dar para Miguel O’Hara, o
amigão da vizinhança do futuro, uma personalidade própria, transformando-o em
mais do que um CLONE DO FUTURO.
A Marvel e a Panini foram malandrinhas e, aproveitando a iminente aparição do Homem-Aranha 2099 na série regular do Amigão da Vizinhança
[no Superior Spider-Man #17, de setembro], lançaram um encadernado com as 10
primeiras histórias do personagem [a Panini ainda nos fez o favor de usar um
preço digno, R$ 22,90].
Homem-Aranha 2099: Início é escrito por Peter David. Rick
Leonardi [desenhista] e Al Williamson [+] [arte-finalista], por outro lado, não
desenharam apenas a edição nove, que ficou por conta de Kelley Jones e Mark
McKenna.
Começo pelos desenhistas. Rick Leonardi tem um estilo
bastante dinâmico e impactante, com várias imagens que extrapolam as fronteiras do quadrinho, quadrinhos não limitados por linhas e figuras que parecem "planar" sobre a página. Tome duas páginas que exemplificam as três coisas:
Leonardi tá em em modo Bill Sienkiewicz, com um traço mais
anguloso e menos arredondado do que o seu normal, com um certo TALENTO para a composição de página.
Com o passar das edições, também vai ficando cada vez mais
anguloso, menos representativo e mais caricato/abstrato [perceba os rostos dos policiais da página da direita].
Edições #1 e #10, a propósito |
Definida a MATÉRIA PRIMA do seu trabalho em termos caricatos
e rabiscados, Al Williamson foi uma escolha bizarra para a arte-final:
quadrinista clássico, que, quando desenhava, estava mais para Alex Raymond [+]
do que para Bernard Krigstein [+]. Leonardi nunca deve ter visto o seu desenho
ficar tão hachurado. Se tudo soma a isso tudo uma colorização digital
carnavalesca [Steve Buccellato, colorizador da maioria das edições, foi um dos
fundadores do estúdio Electric Crayon], podemos dizer que o resultado final é
uma espécie de maçaroca na qual eventualmente o Homem-Aranha pula pra te dar um
soco na cara.
Já é mais do que se pode dizer da nona edição, a desenhada
por Kelley Jones e arte-finalizada por Mark McKenna. Jones, uma espécie de
LIEFELD [+] SEM CHARME, transformou o personagem NISSO:
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PLOT-TWIST: Homem-Aranha 2099 tem tumores na costela! |
É difícil ARROLAR tudo o que não funciona na arte dessa
edição, por isso que eu não vou nem tentá-lo. Limpe seus olhos com isso e siga em frente:
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Jack Kirby [+] :~~~~ |
Essa maçaroca inspirada trabalha em dez edições, divididas
em três histórias, um fill-in e uma espécie de conclusão, que formam um arco
maior de surgimento de herói: além de origem propriamente dita [três primeiras
edições], o que nos é contado é o processo pelo qual Miguel O’Hara deixa de ser
um CÍNICO NHÉ-NHÉ-NHÉ e SE ACEITA como defensor dos fracos e oprimidos,
enquanto, paralelamente, David estabelece as bases do universo 2099.
O primeiro arco [três primeiras edições] é uma autêntica
tragédia no sentido TÉCNICO: herói em situação idílica [O’Hara, o Mestre
Splinter da divisão genética da Alchemax, a Nike das empresas malvadas do
futuro] que, cego pela arrogância, viola algum tipo de LEI MORAL [manipulação genética e conseqüente morte de um preso
cobaia] e ruma à desgraceira, impulsionada, direta ou indiretamente, pelo vilão [Tyler Stone, presidente da empresa].
Tio Ben 2099. |
Funciona assim: depois de sete páginas nas quais Leonardi se
esbalda coreografando uma luta no ar entre o Homem-Aranha, pronto e montado, e
agentes do Olho Público, algo como a polícia do futuro [lição #1: eles VIGIAM TUDO], que chega em casa para ouvir
mensagens holográfico-telefônicas [A.K.A apresentar personagens secundários: o
irmão, a namorada, o vilão, a assistente pessoal que é um holograma de Marylin
Monroe] e atualizar o seu DIÁRIO -- no futuro, geneticistas são MENINAS DE 12
ANOS e David precisava de um motivo para um FLASHBACK para contar a origem do
personagem.
É aí que a história fica figurativamente trágica: depois de
transformar o pobre ex-presidiário em um monstro e vê-lo morrer como resultado,
O’Hara desenvolve escrúpulos – uma COMMODITY com pouca procura na Alchemax
[lição #2: no futuro, grandes corporações são malvadas...]; tê-la, pode ser
bastante ruim para a tua balança comercial pessoal [...e CONTROLAM O BATATAL].
No caso de O’Hara, significou que Stone, que dele não podia prescindir, o
transformou em um VICIADO EM ÊXTASE, a droga do futuro que, ao ser consumida
pela primeira vez, te transforma em um Mark Renton na parte estomacalmente
complicada de Trainspotting, ao se incorporara ao CÓDIGO GENÉTICO do usuário
[lição #3: porque usar uma droga que, se não te transforma em um viciado
perpétuo, falhou, é uma OPÇÃO VÁLIDA para o FINDI do futuro].
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OH WAIT |
Dá pra imaginar o que resulta da soma desses fatores:
O’Hara, usando uma FANTASIA de DIA DOS MORTOS que comprou em suas FÉRIAS NO
MÉXICO lutando contra um CAUBÓI-CIBORGUE [lógica na história: ela é feita de
moléculas instáveis; lógica estrutural: é um momento tão bom quanto qualquer
outro para não fazer sentido]. Incidentalmente, é ajudado por um Thorite [lição
#4: os heróis do passado são objeto de culto religioso] e que a Alchemax meio
que controla o Olho Público [lição #5: a Alchemax é a OCP da Marvel].
O que de alguma forma nos leva à segunda história, edições
quatro e cinco da série. Essa é curta e segue um esquema mais tradicional às
histórias de super-heróis: herói x vilão, mocinha [a namorada do irmão de
Miguel O’Hara: contemple a TENSÃO ROMÂNTICA]. Só que a mocinha é uma ativista,
prestes a ter o seu código genético manipulado pela Alchemax [vide LIÇÃO#2] e a
ameaça enfrentada pelo Homem-Aranha se apresenta na forma de um
SAMURAI-CIBORGUE [versões ciborgue de arquétipos culturais são algo muito IN no
futuro], produzido pela concorrente da Alchemax, a Stark-Fujikawa [lição #5: as
corporações malvadas? Elas são VÁRIAS e GLOBALIZADAS].
A história não exige tanto trabalho da sua capacidade de
relevar truques para fazer o roteiro funcionar como a anterior e tem uma função
principal: arremessar o Homem-Aranha no SUBMUNDO, o lugar onde mora a MASSA
DESPOSSUÍDA da Nova Iorque [lição #6: a massa despossuída e marginalizada
existe; digamos que sejam os primeiros andares de uma cidade de arranha-céus e
prédios voadores], o cenário do TERCEIRO ARCO [edições seis e sete].
As duas edições que compõe a história tem uma divisão clara:
a primeira nos apresenta o submundo como uma terra de CHOQUE E TERROR -- ao menos, na escala possível para um gibi de super-herói do futuro. O
Homem-Aranha passa a edição toda AUSENTE [grogue pela queda], presenciando tentativas
de estupro, tentando DAR NO PÉ, e descobrindo que o Abutre 2099, líder de uma
das gangues que dominam a área [e inicialmente apresentado como uma espécie de
herói], é um canibal devorador de carne podre [lição #7: lá não há lei]. Pra fechar com o ARCO MAIOR do
encadernado, o irmão de O’Hara e a sua namorada passam a edição tentando
resgatar o Homem-Aranha – EM BUSCA DE UM HERÓI, se você percebe a sutileza da
metáfora.
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Submundo: é tipo um açougue em Alvorada. |
Se você não percebeu, também não se preocupe, que a edição
seguinte tá aí exatamente pra ser PÁ-E-BOLA: o Homem-Aranha se recupera bem em
tempo para mais uma edição HERÓI x VILÃO, com direito a STAND-BY de seus
respectivos PARÇAS, que ficam acompanhando a batalha elevada do Homem-Aranha
2099 – que termina com o equivalente a NÃO É O HERÓI QUE MERECEMOS, MAS O QUE
PRECISAMOS, quando ele deixa Abutre cair dos céus para a [suposta] morte
[off-panel, tipo nos gibis das antigas].
Seria essa a pose mais utilizada em gibis da década de 90? |
E aí que chegamos à edição décima [a nove é a de Kelley
Jones: não se preocupe, ela serve apenas para estabelecer algumas sub-tramas],
algo como um EPÍLOGO: O’Hara visita a sua MÃE e se inspira em se transformar no defensor da plebe rude. Mães, às vezes, tem esse feito na gente. Se
toda a história desse encadernado fosse lida como uma tragédia, aqui nos
teríamos o protagonista aprendendo a lição [algo que, para ficar no original,
Stan Lee fez Parker passar por um quadrinho e uma frase, "com grandes poderes
vem grandes responsabilidades", aqui TRANSMUTADA em "com grandes poderes vem
grande culpa"]. Detalhe pro traço de Leonardi, em modo não representativo total: todos os personagens se comunicam através de CARRANCAS.
Admire a expressão caricata, inveje o bigode. |
É fácil ver nas lições aprendidas aí um tchã-nã-nã
anti-corporativismo, a partir do qual o lendário LEITOR AFOITO poderia fazer um
salto hermenêutico anti-capitlaista, enxergando no confronto povo da superfície
x submundo uma luta de classes mal disfarçada, Abutre como um capitalista selvagem que domina o lugar sem regras, Tyler Stone como um empresário do mal e
O’Hara como CHE GUEVARA ARACNÍDEO.
Isso tudo é verdade, mas também o são OUTRAS COISINHAS: Tyle Stone é uma espécie de Eike Batista do futuro: na EDIÇÃO DOIS já são
estabelecida as suas conexões com o governo e o seu monopólio [garantido por
aquele, MISES me ensina] na produção de êxtase. Se o Abutre é um capitalista
selvagem, a sua VILANIA está na falta de valores. Aliás: uma das coisas que
retrata a degradação do futuro é a idolatria de religiões farsescas. E o 2099
de David é uma distopia composta com retalhos de 1984, o livro de George Orwell
[aliás: o Homem-Aranha se estabelece como herói na última edição destruindo uma
câmera de vigilância, um símbolo do estadismo totalitário], que não é
exatamente um livro anticapitalista.
1984 se beneficiaria com um pouco mais de KRAKK [resenhismo incidental] |
Como ficamos? Com o nosso ADORNO INTERIOR defraudado: David, provavelmente, é um escritor inteligente o suficiente para saber que um pouco de ambiguidade é melhor para a qualidade de suas histórias. Com razão: o universo de Homem-Aranha 2099, enxergue nele uma distopia UBER-CAPITALISTA ou o sonho úmido da NOVA ORDEM MUNDIAL, é o seu maior trunfo.
2 comentários:
Excelente análise sobre o Homem Aranha 2099 que é um sucessor digno de Peter Parker ao contrário de Ben Reilly ou Otto Octavius que mancharam a imagem do herói.Aconselho que faça também um artigo sobre o Doutor Destino 2099 que também é um material muito interessante por mostrar que ser vilão ou herói é uma questão de ponto de vista.
Obrigado!
Tô de olho no Doutor Destino 2099, que tá até sendo relançado em encadernados lá fora e era, na época em que originalmente lançado, o meu favorito da linha.
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