Homem-Aranha 2099: Início, de Peter David e Rick Leonardi: Escolha a sua distopia

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Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
Homem-Aranha 2099: Início
Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, 
Kelley Jones e Mark McKenna
[Panini, 2013]
Houve um tempo em que a Marvel tentou fazer uma linha FUTURISTA, ambientada no ano de 2099. Um bom resumo seria que começou bem e terminou mal, mas você pode ler mais sobre isso aqui. Um dos melhores ESFORÇOS empreendidos foi o Homem-Aranha 2099: Peter David [+] e Rick Leonardi, responsáveis pela maioria das edições, conseguiram dar para Miguel O’Hara, o amigão da vizinhança do futuro, uma personalidade própria, transformando-o em mais do que um CLONE DO FUTURO.
A Marvel e a Panini foram malandrinhas e, aproveitando a iminente aparição do Homem-Aranha 2099 na série regular do Amigão da Vizinhança [no Superior Spider-Man #17, de setembro], lançaram um encadernado com as 10 primeiras histórias do personagem [a Panini ainda nos fez o favor de usar um preço digno, R$ 22,90].
Homem-Aranha 2099: Início é escrito por Peter David. Rick Leonardi [desenhista] e Al Williamson [+] [arte-finalista], por outro lado, não desenharam apenas a edição nove, que ficou por conta de Kelley Jones e Mark McKenna.
Começo pelos desenhistas. Rick Leonardi tem um estilo bastante dinâmico e impactante, com várias imagens que extrapolam as fronteiras do quadrinho, quadrinhos não limitados por linhas e figuras que parecem “planar” sobre a página. Tome duas páginas que exemplificam as três coisas:

Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
Edições #1 e #10, a propósito

Leonardi tá em em modo Bill Sienkiewicz, com um traço mais anguloso e menos arredondado do que o seu normal, com um certo TALENTO para a composição de página. Com o passar das edições, também vai ficando cada vez mais anguloso, menos representativo e mais caricato/abstrato [perceba os rostos dos policiais da página da direita].

Definida a MATÉRIA PRIMA do seu trabalho em termos caricatos e rabiscados, Al Williamson foi uma escolha bizarra para a arte-final: quadrinista clássico, que, quando desenhava, estava mais para Alex Raymond [+]do que para Bernard Krigstein [+]. Leonardi nunca deve ter visto o seu desenho ficar tão hachurado. Se tudo soma a isso tudo uma colorização digital carnavalesca [Steve Buccellato, colorizador da maioria das edições, foi um dos fundadores do estúdio Electric Crayon], podemos dizer que o resultado final é uma espécie de maçaroca na qual eventualmente o Homem-Aranha pula pra te dar um soco na cara.
Já é mais do que se pode dizer da nona edição, a desenhada por Kelley Jones e arte-finalizada por Mark McKenna. Jones, uma espécie de LIEFELD [+] SEM CHARME, transformou o personagem NISSO:
Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
PLOT-TWIST: Homem-Aranha 2099 tem tumores na costela!
É difícil ARROLAR tudo o que não funciona na arte dessa edição, por isso que eu não vou nem tentá-lo. Limpe seus olhos com isso e siga em frente:
Jack Kirby [+] :~~~~
Essa maçaroca inspirada trabalha em dez edições, divididas em três histórias, um fill-in e uma espécie de conclusão, que formam um arco maior de surgimento de herói: além de origem propriamente dita [três primeiras edições], o que nos é contado é o processo pelo qual Miguel O’Hara deixa de ser um CÍNICO NHÉ-NHÉ-NHÉ e SE ACEITA como defensor dos fracos e oprimidos, enquanto, paralelamente, David estabelece as bases do universo 2099.
O primeiro arco [três primeiras edições] é uma autêntica tragédia no sentido TÉCNICO: herói em situação idílica [O’Hara, o Mestre Splinter da divisão genética da Alchemax, a Nike das empresas malvadas do futuro] que, cego pela arrogância, viola algum tipo de LEI MORAL [manipulação genética e conseqüente morte de um preso cobaia] e ruma à desgraceira, impulsionada, direta ou indiretamente, pelo vilão [Tyler Stone, presidente da empresa].
Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
Tio Ben 2099.
Funciona assim: depois de sete páginas nas quais Leonardi se esbalda coreografando uma luta no ar entre o Homem-Aranha, pronto e montado, e agentes do Olho Público, algo como a polícia do futuro [lição #1: eles VIGIAM TUDO], que chega em casa para ouvir mensagens holográfico-telefônicas [A.K.A apresentar personagens secundários: o irmão, a namorada, o vilão, a assistente pessoal que é um holograma de Marylin Monroe] e atualizar o seu DIÁRIO — no futuro, geneticistas são MENINAS DE 12 ANOS e David precisava de um motivo para um FLASHBACK para contar a origem do personagem.
É aí que a história fica figurativamente trágica: depois de transformar o pobre ex-presidiário em um monstro e vê-lo morrer como resultado, O’Hara desenvolve escrúpulos – uma COMMODITY com pouca procura na Alchemax [lição #2: no futuro, grandes corporações são malvadas…]; tê-la, pode ser bastante ruim para a tua balança comercial pessoal […e CONTROLAM O BATATAL]. No caso de O’Hara, significou que Stone, que dele não podia prescindir, o transformou em um VICIADO EM ÊXTASE, a droga do futuro que, ao ser consumida pela primeira vez, te transforma em um Mark Renton na parte estomacalmente complicada de Trainspotting, ao se incorporara ao CÓDIGO GENÉTICO do usuário [lição #3: porque usar uma droga que, se não te transforma em um viciado perpétuo, falhou, é uma OPÇÃO VÁLIDA para o FINDI do futuro].
OH WAIT

Claro que isso só deixa o nosso protagonista com uma opção: RE-ESCREVER seu código genético, o que não é apenas possível, como é exatamente o que ele tenta fazer com os funcionários para a Alchemax no seu trabalho… para lhes dar PODERES ARACNÍDEOS, uma importante vantagem competitiva no complexo JOGO DE INTRIGAS CORPORATIVAS do futuro […por algum motivo].

Dá pra imaginar o que resulta da soma desses fatores: O’Hara, usando uma FANTASIA de DIA DOS MORTOS que comprou em suas FÉRIAS NO MÉXICO lutando contra um CAUBÓI-CIBORGUE [lógica na história: ela é feita de moléculas instáveis; lógica estrutural: é um momento tão bom quanto qualquer outro para não fazer sentido]. Incidentalmente, é ajudado por um Thorite [lição #4: os heróis do passado são objeto de culto religioso] e que a Alchemax meio que controla o Olho Público [lição #5: a Alchemax é a OCP da Marvel].
O que de alguma forma nos leva à segunda história, edições quatro e cinco da série. Essa é curta e segue um esquema mais tradicional às histórias de super-heróis: herói x vilão, mocinha [a namorada do irmão de Miguel O’Hara: contemple a TENSÃO ROMÂNTICA]. Só que a mocinha é uma ativista, prestes a ter o seu código genético manipulado pela Alchemax [vide LIÇÃO#2] e a ameaça enfrentada pelo Homem-Aranha se apresenta na forma de um SAMURAI-CIBORGUE [versões ciborgue de arquétipos culturais são algo muito IN no futuro], produzido pela concorrente da Alchemax, a Stark-Fujikawa [lição #5: as corporações malvadas? Elas são VÁRIAS e GLOBALIZADAS].
A história não exige tanto trabalho da sua capacidade de relevar truques para fazer o roteiro funcionar como a anterior e tem uma função principal: arremessar o Homem-Aranha no SUBMUNDO, o lugar onde mora a MASSA DESPOSSUÍDA da Nova Iorque [lição #6: a massa despossuída e marginalizada existe; digamos que sejam os primeiros andares de uma cidade de arranha-céus e prédios voadores], o cenário do TERCEIRO ARCO [edições seis e sete].

Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
Submundo: é tipo um açougue em Alvorada.

As duas edições que compõe a história tem uma divisão clara: a primeira nos apresenta o submundo como uma terra de CHOQUE E TERROR — ao menos, na escala possível para um gibi de super-herói do futuro. O Homem-Aranha passa a edição toda AUSENTE [grogue pela queda], presenciando tentativas de estupro, tentando DAR NO PÉ, e descobrindo que o Abutre 2099, líder de uma das gangues que dominam a área [e inicialmente apresentado como uma espécie de herói], é um canibal devorador de carne podre [lição #7: lá não há lei]. Pra fechar com o ARCO MAIOR do encadernado, o irmão de O’Hara e a sua namorada passam a edição tentando resgatar o Homem-Aranha – EM BUSCA DE UM HERÓI, se você percebe a sutileza da metáfora.

Se você não percebeu, também não se preocupe, que a edição seguinte tá aí exatamente pra ser PÁ-E-BOLA: o Homem-Aranha se recupera bem em tempo para mais uma edição HERÓI x VILÃO, com direito a STAND-BY de seus respectivos PARÇAS, que ficam acompanhando a batalha elevada do Homem-Aranha 2099 – que termina com o equivalente a NÃO É O HERÓI QUE MERECEMOS, MAS O QUE PRECISAMOS, quando ele deixa Abutre cair dos céus para a [suposta] morte [off-panel, tipo nos gibis das antigas].
Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
Seria essa a pose mais utilizada em
gibis da década de 90?
E aí que chegamos à edição décima [a nove é a de Kelley Jones: não se preocupe, ela serve apenas para estabelecer algumas sub-tramas], algo como um EPÍLOGO: O’Hara visita a sua MÃE e se inspira em se transformar no defensor da plebe rude. Mães, às vezes, tem esse feito na gente. Se toda a história desse encadernado fosse lida como uma tragédia, aqui nos teríamos o protagonista aprendendo a lição [algo que, para ficar no original, Stan Lee fez Parker passar por um quadrinho e uma frase, “com grandes poderes vem grandes responsabilidades”, aqui TRANSMUTADA em “com grandes poderes vem grande culpa”]. Detalhe pro traço de Leonardi, em modo não representativo total: todos os personagens se comunicam através de CARRANCAS.
Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
Admire a expressão caricata, inveje o bigode.
É fácil ver nas lições aprendidas aí um tchã-nã-nã anti-corporativismo, a partir do qual o lendário LEITOR AFOITO poderia fazer um salto hermenêutico anti-capitlaista, enxergando no confronto povo da superfície x submundo uma luta de classes mal disfarçada, Abutre como um capitalista selvagem que domina o lugar sem regras, Tyler Stone como um empresário do mal e O’Hara como CHE GUEVARA ARACNÍDEO.
Isso tudo é verdade, mas também o são OUTRAS COISINHAS: Tyle Stone é uma espécie de Eike Batista do futuro: na EDIÇÃO DOIS já são estabelecida as suas conexões com o governo e o seu monopólio [garantido por aquele, MISES me ensina] na produção de êxtase. Se o Abutre é um capitalista selvagem, a sua VILANIA está na falta de valores. Aliás: uma das coisas que retrata a degradação do futuro é a idolatria de religiões farsescas. E o 2099 de David é uma distopia composta com retalhos de 1984, o livro de George Orwell [aliás: o Homem-Aranha se estabelece como herói na última edição destruindo uma câmera de vigilância, um símbolo do estadismo totalitário], que não é exatamente um livro anticapitalista.
Homem Aranha 2099: Início, de Peter David, Rick Leonardi, Al Williamson, Kelley Jones e Mark McKenna [editora Panini, 2013]
1984 se beneficiaria com um pouco mais de KRAKK
[resenhismo incidental]
Como ficamos? Com o nosso ADORNO INTERIOR defraudado: David, provavelmente, é um escritor inteligente o suficiente para saber que um pouco de ambiguidade é melhor para a qualidade de suas histórias. Com razão: o universo de Homem-Aranha 2099, enxergue nele uma distopia UBER-CAPITALISTA ou o sonho úmido da NOVA ORDEM MUNDIAL, é o seu maior trunfo.